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17 de junho | 1962 – O Brasil conquista o segundo título da Copa do Mundo de Futebol

17 jun 2022

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Essa é a história de Gylmar, Djalma Santos, Mauro, Zózimo, Nílton Santos, Zito, Didi, Garrincha, Vavá, Amarildo e Zagallo. Isso só para falar dos titulares, todos sob a batuta de Aymoré Moreira. Pois esse foi o mistão de craques retirados principalmente do Botafogo e do Santos, e em menor escala do Fluminense e do Palmeiras, que garantiu o bicampeonato canarinho na Copa do Mundo de 1962, no Chile. Era quase a mesma equipe campeã de 1958, mantida para a sétima edição da contenda, e última sem a presença dos hoje populares mascotes. Após o Mundial de 1950, disputado no Brasil, os dois seguintes, de 1954 e 1958, ocorreram na Europa. No congresso da FIFA em Lisboa, em 1956, o Chile havia conquistado o direito de trazer o certame de volta para a América Latina, mas, em 21 de maio de 1960, o projeto quase foi para o brejo. Ou melhor, para os escombros: naquele ano um intenso terremoto atingiu a terra de Pablo Neruda. Saldo: dois milhões de desabrigados e cerca de cinco mil mortos.

Com a catástrofe, chegou-se a cogitar a troca de sede, que bem poderia ter sido a Argentina, mas necas: Carlos Dittborn Pinto, chileno nascido em Niterói, achava que justamente pelo desastre o torneio precisava ser mantido por lá. “Já que nada temos, tudo faremos”, disse, concluindo que só assim as simpatias e os investimentos do restante do mundo ajudariam o Chile, como um todo, a sair do buraco. Dittborn se desdobrou como presidente do Comitê Organizador da Copa, jogando na defesa da manutenção do país como sede e no ataque às dificuldades infraestruturais. E infelizmente não chegou a ver a Copa de 1962: em fevereiro daquele foi derrubado por um ataque cardíaco, motivado pelo estresse e pela intensa carga de trabalho. Daí que o estádio de Arica foi batizado com o seu nome. Essa arena, aliás, foi a única do torneio daquele ano totalmente erguida do zero, com o Estádio Nacional, na capital Santiago, e os estádios de Viña del Mar e Rancágua reconstruídas. De Dittborn a cada operário envolvido, a história do futebol é assim: cheia de herois extracampo. Dentro dele, por outro lado, só deu Mané Garrincha.

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Diante do drama chileno, o do Brasil, sofrido logo ao início do torneio, era até pequeno. Mas foi um drama, ao fim e ao cabo. Tratava-se da contusão de ninguém menos que o ídolo Pelé, a grande esperança santista no escrete tupiniquim, tal qual em 1958. Titular absoluto, o Rei anotou o segundo gol canarinho na partida de estreia contra o México em 30 de maio, no estádio Sausalito, em Viña del Mar, após Zagallo abrir o placar aos 56’. Mas no violento jogo seguinte contra a Tchecoslováquia, na mesma arena, a 2 de junho, levou um coice que o tirou da Copa, tamanha a gravidade da lesão. A preocupante botinada daquele dia, naquele empate feio sem gols, não foi exclusividade dos tchecos. Mas ali foi o fundo do raso poço brasileiro na disputa: depois, só vitória. Pudera: no que pese a qualidade de toda a equipe, ao lado de Pelé, no ataque, estava ninguém menos que Mané Garrincha. E se Pelé era rei, O Anjo das Pernas Tortas foi, ao menos ali, imperador: no auge, o descomunal atacante levou, merecidamente, a bola de ouro daquela Copa. Anotou no total quatro gols, fora os dribles sobrenaturais, os cruzamentos cirúrgicos e as cobranças envenenadas de faltas e escanteios.

Dava para entender El Mercúrio, o diário local, que perguntava: “Garrincha, de que planeta vienes?”. Ora, só nós sabemos que o botafoguense era do sugestivo planeta de Pau Grande, sistema de Vila Inhomirim, galáxia de Magé, universo da Baixada Fluminense. Sérgio Porto, o célebre Stanislaw Ponte Preta, foi apenas um dos gigantes da imprensa brasileira que estiveram em solo chileno por aqueles dias, assegurando a canonização da estrela alvinegra; cobrindo as seis partidas do selecionado da Confederação Brasileira de Desportos, suas crônicas, posicionando os personagens Lalau, Fifuca e Paulinho na torcida, são um primor de inteligência, humor e talento na escrita, reunidas mais tarde no livro “Bola na rede: a batalha do Bi”. Pois sim, foi mesmo uma batalha.

Para a alegria de Lalau e de meia América Latina, o Brasil terminou a primeira fase liderando o grupo 3. Depois da vitória contra o México e do fatídico empate com a Tchecoslováquia, na partida contra a Espanha brilhou a estrela de Amarildo, acostumado a infernizar as defesas que o Botafogo pegava pela frente, junto a Garrincha e Zagallo. O reserva de Pelé só faltou tocar castanholas em campo: 2x1 para a gente, e numa virada ocorrida no finzinho do segundo tempo. Haja coração.

A urucubaca no jogo contra a Tchecoslováquia seria em seguida quase esquecida por mais uma razão. Em toda Copa do Mundo tem uma seleção tradicional que desaponta e cai logo na primeira fase, correto? Pois em 1962, para deleite dos aficionados pela amarelinha, isso aconteceu com seus rivais históricos – inclusive aqueles que ainda nem o eram: o todo poderoso Uruguai havia ficado num grupo cabeludo, com a União Soviética, campeã europeia, e a Iugoslávia, campeã olímpica, o deixando para trás, no grupo 1 – a lanterna, no caso, ficou com a Colômbia, então debutante em Copas. A Itália e a Argentina também ficaram em terceiro lugar nos grupos 2 e 4, respectivamente, e voltaram para casa chupando o dedo. Deviam dar graças que não passaram pelo mesmo que a França, que sequer havia se classificado para a Copa, eliminada que foi pela Bulgária, estreante assim como os cafeteros. Cá deste lado da fronteira é disso que o povo gosta: jogo nosso bem jogado e adicional desgraça alheia.

Passada a fase inicial, o Brasil pegou pela frente a Inglaterra, em 10 de junho, ainda em Vinã del Mar. Naquela época ainda eram 16 as seleções disputando a Copa, ou seja: passada a primeira fase caía-se logo nas quartas de final. O escrete da terra da rainha havia se classificado por pouco no grupo 4, deixando a Argentina de fora da segunda fase no saldo de gols. Garrincha e companhia tiveram, enfim, que ensinar aos pais do esporte bretão como é que se fazia do jeito certo, cá nos trópicos: após um primeiro tempo terminado em 1 a 1, gols de Garrincha e Hitchens, no segundo, dois outros tentos brasileiros saíram dos pés de Edvaldo Izídio Neto, o Vavá, e Garrincha, de novo. No mais, um vira lata invadiu o campo, expulso em seguida.

O Mané deitou e rolou novamente na partida seguinte: os emocionantes 4 a 2 justo em cima da seleção chilena, a 13 de junho, no Estádio Nacional de Chile. Jogaço, com quase 76 mil e 500 pessoas, recorde de público naquela Copa, jogando contra o Brasil. Embora aos anfitriões não tenha restado forças para anotar a placa na hora em que o rolo compressor passou, tiveram noção de seus condutores: Garrincha e Vavá, novamente, aquele com dois gols no primeiro tempo, este com outros dois no segundo. Toro e Sánchez, este por pênalti, descontaram cada um uma vez. Garrincha, nosso santo nada santo, acabou expulso, depois de revidar uma provocação de Eladio Rojas com, digamos, uma “estocada”, e estaria fora da final. No que pesem as mais de 75 mil almas chilenas no estádio, o fato de nosso craque ter saído apenas alvejado por uma pedra na cabeça foi até lucro.

Dentro de campo, aquele 4 a 2 não foi nenhum chocolate: a participação chilena no certame, aliás, foi para lá de digna. Os donos da casa classificaram-se na primeira fase secundados apelas pela potente Alemanha Ocidental, ganhando da Itália num violento 2 a 0 e deixando-a de fora das quartas de final por um ponto. E depois ainda soltaram a zebra em campo ao eliminar por 2 a 1 ninguém menos do que a União Soviética de Lev Yashin, o temível “Aranha Negra”. Destampemos um cabernet sauvignon em memória aos aguerridos anfitriões.

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Nas quartas de final a Iugoslávia, que havia se classificado em segundo no grupo 1, depois da URSS, bateu por 1 a 0 a consistente Alemanha Ocidental, primeira colocada do grupo 2. O duelo de titãs foi um também uma tremenda revanche: os alemães foram os algozes dos iugoslavos tanto em 1954 quanto em 1958. Estes pegaram pela frente, então, nossos já conhecidos tchecoslovacos. Enquanto amassávamos o Chile (com todo o respeito), eles fizeram o mesmo com a Iugoslávia, pelo placar de 3 a 1, vitória selada por gols de Josef Kadraba e Adolf Scherer, o último com dois, num jogo todo resolvido no segundo tempo. Dražan Jerković descontou para os iugoslavos com um solitário golzinho aos 69’, que, pelo placar, então a 1 a 1, levaria a disputa aos penais, não fossem os dois tirombaços do monstro Sherer, aos 80’ e 84’. Não teríamos os chucrutes ou Lev Yashin pela frente. Mas teríamos esse sujeito. Pior: ele sequer era a grande estrela tchecoslovaca. Esse papel ficava com o meio campista Josef Masopust, que levou a bola de prata naquela Copa. Fora o fato de que o apontado como melhor goleiro da competição, Viliam Schrojf, era o deles. E não poderíamos contar com Garrincha, pendurado.

Três dias depois de sabermos que encararíamos de novo a Tchecoslováquia, o Chile venceu a disputa pelo terceiro lugar, contra a Iugoslávia. O Estádio Nacional havia então recebido cerca de 67 mil pessoas, menos do que na eliminação contra o Brasil. Mas a vitória anfitriã veio redentora, num sufoco, com um bico daquele mesmo Rojas que se estranhou com o nosso Mané. Hoje beatificado, Rojas ainda tinha o desempeno de ser dono do sorriso, do topete e do bigodinho mais garbosos daquela Copa: mandou a pelota para as redes aos impressionantes 90’ de partida. E foi para a galera como o grande iluminado. Entretanto, seu colega Leonel Sánchez, um dos maiores craques chilenos da história, foi quem acabou levando a bola de bronze daquele torneio. O Chile, ainda abalado pelo pior terremoto que já se viu por suas bandas, agradecia.

No dia seguinte à sagração chilena, às 14:30 de 17 de junho de 1962, no Estádio Nacional de Chile, na capital Santiago, ocorreu, enfim, a batalha final: Brasil e Tchecoslováquia. Clima de vendeta, pela paulada em Pelé. Foram 68.679 cabeças – a maior parte torcendo para o Brasil, dizem, e acreditamos. A boa era que Garrincha, a alegria do povo, havia sido absolvido da expulsão anterior e entraria em campo – eram ainda tempos de oba oba no futebol profissional. Só que, como sói acontecer com os gênios, o Torto jogou mal na finalíssima. A povão viu da arquibancada, ou ouviu pelos rádios, incrédulo, atônito, estupefato, nauseado, o primeiro tento da partida: apesar de Djalma Santos e companhia, Masopust deu um baile na sólida defesa brasileira, abrindo o placar já aos 15’ com uma tremebunda bicuda que estufou as redes do santista Gylmar. Este seria sempre lembrado pela foto em que um jovem Pelé chora ao seu peito quatro anos antes, logo após a conquista da primeira Copa do Mundo por parte do Brasil, em 1958. Mesmo tarimbado, o porteiro brasileiro, um dos maiores de nossa história, bem que podia reverter a foto, e ir chorar junto ao jovem craque lesionado, seu companheiro no Peixe. Mas não. Porque não deu tempo.

Amarildo Tavares Silveira: anotem esse nome. Não à toa, seu apelido era “O Possesso”. Foi esse sujeito que, dois minutos depois, deixou tudo igual, numa tremenda falha de Schrojf, a muralha adversária. O tcheco esperava um cruzamento de Amarildo e, na confusão, a bola lançada sem ângulo pelo filho pródigo de Campos dos Goytacazes passou, entre ele e a trave. E aí a porca torceu o rabo. A cobra fumou e o hipopótamo chutou a cristaleira. O embate ficou sério, até que no segundo tempo, aos 69’, em assistência de Amarildo, Zito chacoalhou o limoeiro e tacou o mamão no fundo do balaio. Brasil, de fato: o time da virada. Já estava bom, mas o último prego no caixão tchecoslovaco veio pouco depois, aos 78’, pela ginga do sempre traquinas Vavá. Outra – e pior – lambança de Schrojf, daquelas que nem as nossas avós fariam: atrapalhado pelo sol, astro celeste que também traja amarelo, o goleiro soltou na área uma bola lançada por Djalma Santos, dando a deixa para Vavá ampliar.

Daí em diante, a glória. Naquele 17 de junho, há quase 60 anos, o capitão canarinho Mauro ergueu a Taça Jules Rimet. Chile e Brasil fizeram história. Do lado de cá, Garrincha jantou meio mundo pelos gramados, com farofa. Na vota para casa ganhou um passarinho, um garrincha. Vavá e Djalma foram gigantes. O presidente João Goulart recebeu o escrete vitorioso num verdadeiro carnaval fora de época. Os grandes sucessos do rádio e da ainda incipiente televisão no país ecoavam nosso grande feito esportivo. Finalmente superávamos nossos até então maiores rivais, os também bicampeões uruguaios. Lembrado até em 2014, o “maracanaço”, quando perdemos para eles na Copa de 1950 em nossa própria casa, no Rio de Janeiro, era uma cicatriz e tanto, que esperou 12 anos para fechar. Mas parar de doer, na verdade, não parou. Passou a ser menos dolorida, pelas conquistas de 1958, na Suécia, e de 1962, no Chile. Dias melhores viriam, vieram, virão.

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