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18 de Julho | Gilberto Freyre, um brasileiro universal

18 jul 2020

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e marcado com as tags Afro-brasileirismo, Antropologia, Gilberto Freyre, História da BN, Sociologia, Tropicologia

Considerado um dos pilares do pensamento sociológico brasileiro, Gilberto de Melo Freyre morreu dia 18 de julho de 1987, em Recife, vítima de isquemia (obstrução de artéria) cerebral, infecção respiratória e insuficiência renal aguda. Todavia, o impacto de sua obra não se esgotou com sua morte. Responsável pela redescoberta do Brasil não apenas a partir de episódios marcantes da história, mas também apoiado em fatos cotidianos, pitorescos, ou mesmo em documentos históricos e pessoais, Gilberto Freyre redesenhou os rumos da antropologia brasileira. No plano internacional, sua influência foi significativa. ”Enquanto no Brasil há quem insista em ver nos seus escritos ensaios de pura história e pitoresca etnografia, grandes mestres europeus como Gabriel Marcel e Ortega vão além e descobrem neles, não só sociologia, como uma antropologia filosófica que pode ser considerada existencial” (Pedro de Moura e Sá in: Gilberto Freyre, Vida, Forma & Cor. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1962, p. 292).

Freyre procurou situar-se numa metafísica do Homem Hispânico, origem, ser e existir do homem brasileiro. "A tríade Casa-Trópico-Tempo contemplada pela reflexão freyreana é a compreensão do humano- indivíduo, pessoa, família, em seu tempo e no das gerações - dentro da tradição humanística que vinda de Agostinho, seguida dominantemente pelos místicos, franciscanos e carmelitas, desemboca experiencialmente na visão hispânica: a do homem imerso no tempo capaz de recuperar passados pela recordação e evocação e de projetá-los, ora profeticamente, ora pelas antecipações" (Maria do Carmo Tavares de Miranda, A memória de Gilberto Freyre. Editora Massangana, Fundação Joaquim Nabuco, 1988, p. 56).

Ortega y Gasset, um dos responsáveis pela criação da filosofia espanhola do século XX, certa vez, declarou que Freyre não foi apenas um mero antropólogo, mas um ”filósofo de importância universal” (Ortega y Gasset in: Raymond Corbey, Alterity, Identity, Image: Selves and Others in Society and Scholarship. Edited by R. Corbey & J. Th. Leerssen. Amsterdam - Atlanta, GA: Rodopi,1991, p. 143), ”um grande pensador da condição humana” (Ortega y Gasset in: Jacques Leenhardt, Discurso histórico e narrativa literária, Editora: Universidade Estadual de Campinas. 1998, p. 252).

Um dia depois de sua morte, no dia 19 de julho, o jornal ABC de Madri publicou um artigo de Julián Marías: "Adiós a um brasileño universal". Para Marías, discípulo e continuador do pensamento de Ortega y Gasset, Freyre foi um dos maiores intelectuais do século XX. Durante anos foi a melhor cabeça teórica da América Ibérica (Julián Marías, En la muerte de Gilbero Freyre: Adiós a un brasileño universal).

Muitos foram os famosos a frequentar sua casa (atual Fundação Gilberto Freyre ou Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre), situada no centro de uma miniatura de floresta, no ponto mais alto do bairro de Apipucos, em Recife. Aldous Huxley, John dos Passos, Rossellini (que tinha planos de filmar Casa-Grande & Senzala), o Príncipe da Baviera, Robert Kennedy (que lá apareceu comandando um pelotão de trinta pessoas), Albert Camus, Lucien Fèbvre, Georges Gurvitch, Arnold Toynbee, Robert Lowell, Jean Duvignaud, Schelsky e tantos outros, incluindo os portugueses - é grande a lista internacional de gente famosa que lá esteve (Joel Silveira. Freyre no mundo de Apipucos. Manchete. Rio de Janeiro, a. 25, n. 1316, p. 98-102, jul. 1977).

Gilberto Freyre foi sempre um escritor muito polêmico, despertando entusiasmo entre os mais diversos escritores e reações nem sempre amistosas de contestadores. No Brasil, porém, foi muitas vezes desvalorizado, incompreendido, invejado, atacado ou perseguido. Saiu do país quase menino para estudar nos Estados Unidos e na Europa e voltou homem feito. Logo que retornou, alguns jornais da época e também de épocas posteriores, começaram a chamá-lo de meteco, que é a velha designação clássica do indivíduo intruso. Seus artigos no “Diário de Pernambuco” irritavam jovens de sua geração que também tinham pretensões intelectuais. Essa hostilidade se devia ao fato de que ele falava de assuntos que eram inteiramente novos para a intelectualidade brasileira. (Cf. Gilberto Freyre in: Lourenço Dantas Mota (Coord), A História Vivida (entrevistas). São Paulo: O Estado de São Paulo, 1981, p.125-126)
Em 1933 apareceu no Rio de Janeiro a primeira edição do livro, do qual pode-se dizer que constituiu um verdadeiro acontecimento intelectual: Casa Grande & Senzala, recebido, entretanto, com certa frieza em certos nichos intelectuais brasileiros, como conta Lucia Miguel Pereira, escritora, influente crítica literária e esposa do igualmente escritor Otávio Tarquínio de Sousa: http://memoria.bn.br/DocReader/103730_06/2343

Todavia, pelos artigos reunidos na coletânea Casa-Grande & Senzala e a Crítica Brasileira de 1933 a 1944 verifica-se que, de um modo geral, seu primeiro livro foi recebido com entusiasmo por boa parte da intelectualidade brasileira de seu tempo. As restrições não chegaram a diminuir o brilho da recepção da obra. A valorização do negro é ponto fundamental na história de recepção do livro, já que é unanimemente aceita pelos resenhistas dos anos 1930. Segundo esses autores, Freyre inverte uma tradição que via no negro uma das causas do fracasso do Brasil, e passa a destacar a contribuição do negro para a cultura brasileira. (Cf. Enrique Rodríguez Larreta & Guillermo Giucci. Gilberto Freyre – uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.443). Foi aí, então, que uniu as duas ideias que vinha absorvendo de várias fontes: a valorização da miscigenação racial e cultural. Como resultado da miscigenação (e este é um dos grandes temas de Freyre), o Brasil vinha num processo exitoso de definição de um tipo étnico nacional: nem mais o branco, nem mais o negro. Daí em diante, sua bibliografia torna-se numerosa.

A editora francesa Gallimard lançou uma edição de Casa Grande & Senzala com um prefácio de outro mestre francês, do Collège de France, o professor Lucien Febvre: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_15/2169. Os estrangeiros, segundo Freyre, sentiam que o livro continha uma mensagem de paz social, ao desfazer o mito da inferioridade do negro ou do ameríndio. E também o mito de serem impossíveis em espaço tropical formas mais altas e novas de civilização.
De sua atuação parlamentar, o projeto de maior ressonância foi o da criação, em 1949, do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, com sede em Recife, hoje Fundação Joaquim Nabuco (FJN). Freyre tinha uma admiração viva e inalterada pelo escritor abolicionista. Um autor, para ele, sempre atual: http://memoria.bn.br/DocReader/003581/151667 e http://memoria.bn.br/DocReader/003581/151687

Vale lembrar, também, que, no dia 18 de janeiro de 1989, a Biblioteca Nacional inaugurou a exposição "Gilberto Freyre: uma interpretação do Brasil", reunindo peças dos acervos da Fundação Gilberto Freyre e da Fundação Joaquim Nabuco. Lá estavam caricaturas, gravuras, fotografias, manuscritos, cartas, ensaios e artigos publicados em diversas revistas e jornais, com o objetivo de mostrar todas as fases da vida e da obra do autor: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000128.pdf

Freyre foi autor de uma vasta obra, construída, em geral, com uma linguagem que se situa entre uma postura científica, pela precisão dos dados, e uma linguagem poética que remete à tradição ibérica. Instado uma vez a pronunciar-se, em jeito de depoimento autobiográfico, sobre o seu próprio perfil de escritor, Gilberto Freyre definiu-se assim: "sou apenas um escritor com treino antropológico”. Estamos também diante de um escritor que compreendeu a literatura na direção da pesquisa sociológica. Para nosso sociólogo, o conhecimento científico da vida social não pode prescindir da literatura: "Há muito na literatura de ficção e dramática que, utilizado de modo adequado, pode auxiliar qualquer um a adquirir penetração (‘Insight’) social. [...]A verdade novelesca pode, com efeito, senão coincidir de modo exato, coexistir, de modo iluminante, com a verdade histórica ou com a verdade sociológica. Uma pode intensificar ou ampliar as outras". Cabe à literatura preocupar-se fundamentalmente com a personalidade do homem; à sociologia, com a técnica científica de investigação. O perigo é a má literatura e a má sociologia.

No dia de seu enterro, mais de mil pessoas estavam à porta do cemitério, debaixo de chuva, esperando o ataúde. Sob os focos de luz dos refletores de televisão, o esquife foi conduzido pela família Freyre até o jazigo 16 da Irmandade do Espírito Santo, na ala norte do cemitério, onde o corpo baixou a sepultura. O Diário de Pernambuco noticiava: "Gilberto agora é eterno": http://memoria.bn.br/DocReader/029033_16/122207