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A “Carta de abertura dos portos” *

20 abr 2014

A “Carta de abertura dos portos” é o que se pode chamar de documento emblemático, pois revela algumas das profundas mudanças ocasionadas pelas guerras napoleônicas no panorama mundial, particularmente nas Américas portuguesa e hispânica.

Os acontecimentos que culminaram na assinatura dessa ordem régia têm origem nos primeiros anos do chamado período napoleônico (1799-1815). Numa França ainda sob os efeitos da revolução, o general e, a partir de 1804, imperador Napoleão Bonaparte deu início a uma série de conquistas militares, cuja finalidade era dominar toda a Europa. Seus planos de fazê-lo por via marítima foram, no entanto, frustrados pela Inglaterra, cuja esquadra comandada pelo almirante Nelson venceu os navios franceses na batalha de Trafalgar (21 de outubro de 1805).

A nova estratégia adotada por Napoleão resultou no chamado Bloqueio Continental, decretado em 1806. Seu objetivo era impedir a entrada dos produtos da indústria inglesa nos mercados europeus, e, assim, enfraquecer a economia da Inglaterra. As vias principais eram três: os portos suecos, os dinamarqueses e os portugueses. Napoleão pretendia bloquear esses portos e apreender os navios dos três países. A Inglaterra, é claro, não tardou a reagir: deixando de lado a Suécia, cuja esquadra era muito pequena, enviou à Dinamarca uma poderosa força naval que acabou por se apossar da marinha dinamarquesa e submeter a capital do país, Copenhague.

O próximo alvo para a conquista era Portugal, cujo governo – dada a incapacidade da rainha D. Maria I – era exercido pelo príncipe herdeiro, D. João, que fora nomeado regente em 1799. Pressionado pela França a aderir ao bloqueio continental e, ao mesmo tempo, comprometido por uma aliança com a Inglaterra, D. João se viu num dilema, agravado pelo fato de que Portugal não tinha poder militar suficiente para resistir a nenhuma das duas potências. Depois de adiar o quanto pôde a tomada de decisão, o regente optou pela única saída possível, na qual retomava uma idéia já surgida em ocasiões precedentes: a de transferir a corte para o Rio de Janeiro, o que fez em novembro de 1807.

A abertura dos portos foi uma das primeiras providências tomadas por D. João ao chegar ao Brasil. Segundo o documento, assinado em 28 de janeiro de 1808, todos os produtos brasileiros – à exceção do pau-brasil – passaram a poder ser exportados mediante o pagamento dos devidos impostos. Ao mesmo tempo, os gêneros e mercadorias provenientes das nações que estivessem em paz com Portugal poderiam ser admitidos nas alfândegas do Brasil. Tal medida já estava prevista no tratado firmado entre Portugal e a Inglaterra, mas, ao desembarcar em Salvador, D. João recebeu uma demanda nesse mesmo sentido por parte do então governador da Bahia, o conde da Ponte, segundo o qual o bloqueio imposto ao comércio marítimo prejudicava enormemente a economia local. Esta, até então, havia funcionado de acordo com o sistema colonial, que exigia que toda a produção brasileira – essencialmente agrícola e fundada no amplo emprego de mão-de-obra escrava – fosse comercializada por intermédio de Portugal.

Com a transferência da corte e a assinatura da carta, o Rio de Janeiro assumiu o lugar de Lisboa como “alfândega” no comércio entre as colônias portuguesas e os demais países – o que, nos primeiros tempos, dizia respeito quase exclusivamente à Inglaterra. A medida gerou muita confusão e descontentamento, principalmente entre os comerciantes portugueses, cujos produtos não podiam competir com os importados da Inglaterra. Por outro lado, várias atividades até então proibidas puderam se desenvolver, e foram inúmeras as fábricas e manufaturas abertas em todo o Império.

A carta régia assinada pelo príncipe tinha um caráter interino e provisório, mas nunca foi revogada, embora vários tratados – firmados em 1810 e conhecidos como “desiguais” - tenham servido para fixar impostos e regularizar procedimentos. A partir daí, as relações entre o Brasil e Portugal sofreram grandes mudanças, que muitos estudiosos consideram decisivas para o processo de emancipação de nosso país. O assunto sempre mereceu interesse por parte dos pesquisadores, mas, neste ano em que se comemora o bicentenário da chegada da família real ao Brasil, encontra-se especialmente em foco, tendo gerado inúmeros trabalhos que contribuem para a compreensão daquele período histórico e de sua conexão com o momento atual.

O documento

Também conhecida como “Carta ao conde da Ponte”, a ordem régia que conhecemos como “Carta de abertura dos portos” é um documento original datado de 28 de janeiro de 1808. Consta de três páginas manuscritas a tinta sobre papel de trapo. Suas medidas são 34,5 cm X 22,2 cm. Há três assinaturas no documento: a de D. João, que assina como “Príncipe”; a do conde da Ponte, então governador da Bahia, a quem a carta é dirigida, ordenando que se cumpra a ordem; por fim, a do escrevente da Secretaria de Estado do Brasil, que registrou o documento.

O documento está em excelente estado de conservação e se encontra guardado no cofre da área de Manuscritos da Biblioteca Nacional. O acesso físico ao documento foi restringido por questão de segurança, mas sua reprodução digital está disponível no portal da Biblioteca Nacional e integra a base de dados da Biblioteca Nacional Digital, onde pode ser facilmente visto e consultado.

A Carta e a memória

Por sua importância histórica e seu valor simbólico para a memória coletiva dos brasileiros – mencionado em livros didáticos desde o ensino fundamental, o documento é conhecido por uma parte significativa da população e não apenas pela comunidade acadêmica – , a “Carta de abertura dos portos” passou este ano a fazer parte do Registro Nacional do Programa Memória do Mundo. Instituído em 1992 pela UNESCO, o programa tem por objetivo “identificar documentos ou conjuntos documentais considerados em situação de risco que tenham valor de patrimônio documental da humanidade. Estes são inseridos no Registro Internacional de Patrimônio Documental, a partir da aprovação por comitê internacional de especialistas da candidatura encaminhada pela instituição detentora do acervo”.1

Curiosamente, o primeiro documento em língua portuguesa a integrar o Programa Memória do Mundo foi a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I (pertencente ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa), com a qual a “Carta de abertura dos portos” é freqüentemente confundida pelo leitor leigo. Na verdade, pode-se dizer que é o contrário, ao menos no que concerne ao conteúdo: a abertura dos portos pode ser encarada como uma espécie de marco do fim do período colonial, na medida em que extinguiu o monopólio, ou exclusivo comercial, que caracterizava a relação do Brasil com a metrópole portuguesa. Internacionalmente, o documento marca o começo de relações comerciais diretas entre o Brasil e vários outros países.

Se a carta de Caminha descrevia uma promissora – e lucrativa – colônia a ser explorada pelos portugueses, a de D. João inaugurou uma nova era, na qual, ao despontar no cenário mundial como sede do império colonial português, o Brasil deu um grande passo rumo à independência política.

Notas

1 Fonte: http://www.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=91

* Ana Lúcia Merege Correia é bibliotecária. Divisão de Manuscritos/ FBN