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A Voz da Religião

07 ago 2014

Artigo arquivado em Hemeroteca

O semanário católico A Voz da Religião circulou de 4 de Janeiro de 1846 a 19 de dezembro de 1850, durante exatamente cinco anos. Editado em Recife (?) pelo cônego Francisco José Tavares da Gama e distribuído aos domingos, sempre com oito páginas, em formato 16 x 24 cm, era uma publicação de caráter doutrinário e conteúdo profundamente conservador, espelhando a orientação proveniente do Estado romano durante o pontificado dos papas Gregório XVI (1831-46) e Pio IX (1846-78), ambos adversários das “liberdades modernas” decorrentes do Iluminismo, do liberalismo e, questão religiosa à parte, do protestantismo.

Da orientação emanada desses papas se constituiria o chamado ultramontanismo, doutrina católica conservadora que sustentava tanto a autoridade absoluta (acima dos concílios) do papa em matéria de fé e disciplina, assim como a preponderância da autoridade espiritual da Igreja Católica sobre toda a sociedade, a qual, segundo os formuladores da doutrina, deveria impregnar-se do verdadeiro catolicismo. Amparando-a estavam as idéias contra-revolucionárias (nem por isso desprovidas de valor heurístico) de pensadores como Louis de Bonald (um dos maiores adversários do Iluminismo, para quem a sociedade é uma realidade maior do que o indivíduo, porém originava-se da vontade divina; e o indivíduo é uma mera abstração, já que não existe fora da sociedade), Joseph de Maistre (em Du Pape, uma de suas obras mais importantes, expõe sua visão sobre o primado e a infalibilidade do poder papal), Pierre-Simon Ballanche, entre outros.

Nos 261 números do jornal, figurou sempre a epígrafe Unus Dominus, una Fides (Um único Senhor, uma só Religião) - Ep. Ad Ephes. IV. 5." . Na apresentação do primeiro número, ressalta-se a necessidade de se publicar um periódico destinado à “propagação das idéias religiosas”, importante no “actual estado das sociedade, em que com tanto empenho se propagão as luzes” e uma vez que haviam deixado de circular os periódicos religiosos O Catholico (“não assaz amplo”) e o Amigo dos Homens: “e em tudo que publicarmos, de maneira alguma pretendemos affastar-nos do universal ensino da Santa Igreja Catholica Apostolica Romana, a cuja censura submettemos tudo o que escrevemos.”

A sustentação de valores filosóficos ultra-conservadores, como a crença de que a verdade não resulta do livre exercício da consciência individual, mas sim revelada pela tradição sob inspiração religiosa (católica, na verdade) e a determinação de combater o racionalismo filosófico e a secularização do pensamento promovidos pelo Iluminismo, pela valorização crescente da noção de Progresso ou pelo protestantismo são reiteradas pelo semanário – seja em editoriais, seja sobretudo em transcrições de matérias do jornal eclesiástico, político e literário L’Ami de la Religion et du Roi, de capítulos de textos doutrinários, como Destinos dos christianismo, ou ainda da obra Demonstração da verdade da religião christã, de Jacques-Bénigne Boussuet, bispo de Meaux, um dos principais teóricos do direito divino dos reis ao poder absolutista.

São exemplos dessa orientação filosófica: no número 53, de 3 de janeiro de 1847, o jornal combate “a falsidade das seitas que nasceram da pretendida reforma [protestante] (...) que pelo mais grave abuso do nome que adoptou, longe e bem longe de reformas, outra coisa não fez senão destruir.” Na apresentação do número de 7 de janeiro de 1849, “Duas palavras aos leitores”, adverte que “Se o Christianismo foi o alvo dos tiros dos Encyclopedistas, em outro não tem a mira os dos modernos Pantheistas. Embora, seguindo caminhos diametralmente oppostos,, aquelles não vissem Deos em parte alguma, e estes o verão em tudo e por toda a parte; o fim que os primeiros tiverão em vistas, He o mesmo a que estes se dirigem.”

O número 23, de 7 de junho de 1846, publica a encíclica de Gregório XVI sobre as sociedades bíblicas em que este papa critica a publicação de “inumeráveis exemplares de livros santos, traduzidos em todas as línguas, semeando-os sem escolha nem discernimento algum, no meio dos christãos, e infiéis, e convidando assim aos (sic) ler sem guia que os dirija.” Não se podia “interpretar livremente as Santas Escripturas, (...) despresar as tradições divinas dos Padres (...), conservadas pela Igreja.”

No número 168, de 18 de junho de 1849, recorre-se a De Maistre para reafirmar a indispensabilidade poder espiritual da Igreja Católica na organização do poder político (monárquico, bem-entendido): “O governo só não pode governar. Há portanto necessidade (...) de força divina que abrande a aspereza natural d1essas vontades e as constitua em estado de obrarem justamente sem se offenderem (...). He mister purificar as vontades ou encadel-as; entre estesdous extremos não há meio.” (trecho do livro Du Pape). Já no número 177, num dos capítulos de Destinos do Christianismo, afirma-se:

“Concebem os homens o louco pensamento de fazerem tudo sem Deos, attrevem-se a usurpar-lhes os seus direitos; ousão disputar-lhes o seu poder (...) e assim chamão sobre si os mais tremendos castigos. (...) Temos visto que o Christianismo nos deu a liberdade; poderemos nós conserval-a sem elle? (...) Foi elle que deu a liberdade ao universo, e sem elle não há senão fructos amargos d’escravidão.” Ainda com vistas a reafirmar que nenhum rei submete seu povo sem a presença da voz de Deus adverte que a voz de Deus é “voz poderosa que afiança aos reis a fidelidade e a submissão dos povos; e aos povos a justiça e o amor dos reis.”

Em resumo, A Voz da Religião retomava questões doutrinárias que, poucas décadas depois, desembocariam no primeiro Concílio do Vaticano (dez. 1869 a dez. 1870) no ultramontanismo, como a natureza imutável dos ensinamentos e da disciplina da Igreja Católica, a preponderância da autoridade espiritual da Igreja sobre a sociedade civil, a necessidade de se impregnar a sociedade de catolicismo (a única e verdadeira religião), a sustentação de que o clero deve se submeter apenas ao foro eclesiástico, ficando fora da jurisdição do Estado, além da reação a valores com a liberdade de consciência e de imprensa, esse “erro pestilento”.

No final de cada ano, A Voz da Religião publicava o índice das matérias publicadas (que aparece no início de cada um dos cinco volumes em que a coleção completa está organizada). Um resumo do índice do volume I (1846) informa: “Contem huma demonstração das conseqüências da Reforma protestante – artigos a respeito das principais solemnidades de Igreja – vidas dos Santos mais illustres – historias edificantes – passagens escolhidas dos mais celebres Escriptores antigos e modernos, relativas às verdades da Religião – diversos artigos e notícias a ellas concernentes.”

O fim de A Voz da Religião em dezembro de 1850, teve apenas uma lacônica e obscura justificativa: "Bem a nosso pesar, paramos com a sua publicação, obrigando-nos a isso motivos urgentes".

Fontes

1. NASCIMENTO, Luiz do. História da Imprensa de Pernambuco. Vol. VI. Periódicos do Recife 1821 - 1850. Pernambuco, Recife: Universidade Federal de Recife, 1969. Disponível em: < http://www.fundaj.gov.br/geral/200anosdaimprensa/historia_da_imprensa_v04.pdf > Acesso em: 11 dez. 2012
2. BARROS, Roque Spencer M. de. Vida Religiosa. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (coord.). História geral da civilização brasileira. O Brasil monárquico, Tomo II, 4º vo. Declínio e queda do Império. São Paulo: Difel, 1985, PP. 315-37.
3. ZEITLIN, Irving. Ideologia y teoria sociológica. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1973.