BNDigital

Acervo BN | Bicentenário da imprensa no Pará: um capítulo da Independência do Brasil

08 jun 2022

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Bicentenario da Independencia, História da Imprensa, O Paraense, Pará, Periódicos BN 100 Anos, Secult

2022 está sendo um ano de comemoração, no tocante à história da imprensa brasileira. Primeiro porque o Recopilador Sergipano, jornal pioneiro de Sergipe, surgido em setembro de 1832 pelas mãos do monsenhor Antônio Fernandes da Silveira, completa tenros 190 anos. Mesma idade a que chega, este ano, O Noticiador: primeiro periódico abolicionista do Brasil e, de quebra, órgão de fundação da imprensa interiorana do Rio Grande do Sul, obra e graça de Francisco Xavier Ferreira, então conhecido como “Chico da Botica”. Pois agora iremos além. Além das celebrações pelos 200 anos da Independência no país, o ano de 2022 marca um outro bicentenário, mais modesto que o do Brasil, mas intrínseco ao processo que pôs a termo o status de colônia do imenso florão da América. É o aniversário de O Paraense, o primeiro jornal a ser produzido e impresso na província do Grão-Pará, atual Estado do Pará. Seu lançamento, em 22 de maio de 1822, ficou registrado nas páginas da História como a pedra fundamental da imprensa paraense. E mais: estabeleceu também o nascimento do periodismo em todo o Norte do Brasil. É bom que se saiba: pelas bandas amazônicas a Independência não teria chegado como chegou, não fosse O Paraense.

***

Apesar de sua importância, O Paraense foi um órgão impresso efêmero. Sua publicação durou menos de um ano. Sua curta vida se deu em consequência dos ventos políticos de seu tempo, em pleno processo de Independência do Brasil: motivo de sobra para que não caia no esquecimento. Foi lançado em 22 de maio de 1822 pelo advogado e político Felipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, viabilizado pelo maquinário tipográfico que seu editor trouxera de Portugal ao retornar de sua graduação em Leis e Cânones na Universidade de Coimbra. Na ocasião, aliás, Maciel Parente, não retornara do Velho Mundo com as ideias incólumes: lançou um periódico sob franca influência da Revolução Liberal do Porto e da instituição da Lei de Liberdade de Imprensa em Portugal, em 4 de julho de 1821. Eis o estabelecimento da convicção político-intelectual do patrono da imprensa paraense: não muito distinta da de Hipólito da Costa, o patrono da imprensa brasileira.

O Paraense vinha a lume com uma linha estritamente liberal, defensora da ordem constitucional e, num segundo momento, da autonomia brasileira frente ao domínio lusitano. Circulava com dificuldades, em periodicidade irregular, saindo uma ou duas vezes por semana, conforme era possível. Enfiando as mãos no vespeiro que era política do momento, em meio ao turbulento contexto que levou à Independência do Brasil, a folha pioneira acabou sofrendo com a repressão do poder local, sob influência lusitana, em diversas ocasiões: foi editada somente até sua 70ª edição. Esta em particular, quando publicada, provocou a ira de autoridades militares locais, pró-domínio português. Resultado: foi empastelado em fevereiro de 1823.

***

Apesar de ser o primeiro periódico de sua província, e de todo o Norte brasileiro, O Paraense não foi a primeira publicação a ser impressa no Grão-Pará. Em 1820 a oficina montada por João Francisco Madureira lançou um folheto intitulado “O Despotismo Desmascarado ou a Verdade Denodada”, também sob efeito da Revolução Liberal do Porto, pregando o mesmo antidespotismo da folha que Patroni lançaria dois anos depois. No entanto, foi a iniciativa deste que alçaria voo mais alto na história política brasileira: agitador audacioso, Patroni chegou a aderir à revolução em Portugal como representante do Grão-Pará, tendo participado ativamente da imprensa liberal lisboeta, aproveitando, inclusive,  a ocasião para estabelecer uma sociedade com Simões da Cunha, José Batista da Silva e o impressor Daniel Garção de Mello, acompanhado dos tipógrafos Luiz José Lazier e João Antônio Alvarez para a compra e a instalação de sua oficina tipográfica, do outro lado do Atlântico. Era um projeto para lá de audacioso, tanto por questões políticas quanto por razões técnicas.

A casa impressora que Patroni estabeleceu em território paraense, ao que consta, data de 1º de abril de 1822. Curiosamente, dentro da própria sociedade que firmara, Patroni teve que lidar com figuras ligadas aos dominadores portugueses, que pretendiam imprimir sua linha ao jornal. Daí o tom mais ameno das primeiras edições de O Paraense - seu número 1, de 22 de maio de 1822, destacava sem grandes arroubos, em tonalidades oficiais, o decreto das Cortes de Lisboa que, com base na Constituição de então do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves garantia a liberdade de imprensa. Mas, uma vez que Patroni conseguira rechaçar seus parceiros comerciais de pendores lusos, a edição d’O Paraense passara a propagar sua orientação política. Considerada, enfim, escandalosa por parte dos governantes coloniais do Grão-Pará, que logo empregaram meios para emudecê-lo.

Cumpre ressaltar que Patroni esteve pouquíssimo tempo à frente de seu periódico: logo depois de fixá-lo, apenas três dias depois foi detido e mandado para a Fortaleza de São Julião, em Lisboa, de onde saiu após a confirmação do Grão-Pará ao Brasil independente da coroa portugesa. Mas tivera tempo de garantir que, em seu lugar, outro agitador assumisse: o cônego João Batista Gonçalves Campos, que chegou a sofrer atentado e prisões pela causa da Independência. Nelson Werneck Sodré, em sua "História da imprensa no Brasil", nos revela sucintamente a trajetória d’O Paraense:
Patroni colocava a liberdade acima da Independência, pois, e os meios para liquidá-lo não seriam mansos, imprimia o jornal em esconderijo, compondo-o à noite, com o auxílio de Antônio Dias Ferreira Portugal. Preso a 25 de maio e embarcado para a metrópole, passou a missão ao cônego João Batista Gonçalves Campos, outra extraordinária figura de agitador e patriota. Batista Campos começou por colocar o problema da separação e por atacar as autoridades locais. Em agosto, sofreu atentado que não o impediu de prosseguir na luta; a 18 de setembro – depois da Independência – foi preso, solto, preso outra vez, em novembro, pelo crime de ter publicado o manifesto de D. Pedro datado de 1º de agosto. Posto novamente em liberdade, refugiou-se no interior, para escapar à fúria dos dominadores da província, deixando o jornal com outro cônego, Silvestre Antônio Pereira da Serra, em cujas mãos, em fevereiro de 1823, veio a perecer a folha. (p. 66)

Um dos principais fatores que contribuíram para o fim do aguerrido jornal inaugural da imprensa do Norte, durante a gestão de Batista Campos, foi a denúncia do corporativismo militar como a principal expressão do despotismo na província – atingindo em cheio o comando local, composto de militares pró-Portugal, como o brigadeiro José Maria de Moura, Governador das Armas. De qualquer forma, ocorre que, naquele período, apesar da Independência, uma forte reação à mudança, ligada ao governo do Rio de Janeiro, chegava ao auge. A repressão a antigos apoiadores da cisão entre Brasil e Portugal assolou o Grão-Pará – travava-se, na verdade, uma disputa entre duas forças políticas antagônicas, que culminaria na Cabanagem, em 1835.

***

No ano de 1823, as oficinas d’O Paraense, depois de empasteladas, passaram ao domínio dos descontentes com a Independência. Estes, sob a responsabilidade de José Ribeiro Guimarães, e seguindo a cartilha dos dominadores locais de então, passaram a imprimir o órgão áulico O Luso Paraense, verdadeira antítese de O Paraense, redigida por Luiz José Lazier e José Ribeiro Guimarães e veiculada pela então denominada Imprensa Constitucional de Daniel Garção de Mello. Nas ruas do Grão-Pará, o clima era de incerteza e insegurança. No entanto, a ordem se estabeleceu, e a favor de Dom Pedro I. A província pôde enfim ser devidamente integrada ao recém-nascido Império do Brasil. A tipografia extinguiu O Luso Paraense e passou a editar O Independente, em dezembro de 1823. Posteriormente, a mesma ainda imprimiria O Verdadeiro Independente, O Telegrapho Paraense e O Brasileiro Fiel à Nação e ao Império. As portas da imprensa do Pará foram, de fato, abertas pela iniciativa de Patroni, fundamentada, depois, pelo trabalho e a pela luta de outras figuras, sobretudo o cônego Batista Campos.

Geraldo Mártires Coelho, no artigo “O jornal O Paraense e as ideias liberais no Pará de 1822”, destaca a herança de O Paraense e de Batista Campos no contorno político paraense já durante o Período Regencial:
Batista Campos, no tempo em que ficou à frente de O Paraense, alargou o espectro de sua luta pela redefinição dos espaços do poder no Pará de 1822. Combatia e condenava os que chamava de portugueses degenerados, tivessem nascido em Portugal ou fossem naturais do Pará, posto que a sua degeneração não implicava condição de nascimento, mas afronta à sociedade, apego ao poder, descaso com a administração e desrespeito à opinião pública. A prática política de Batista Campos à frente de O Paraense, nos anos mais duros da vida do primeiro jornal do Norte do Brasil, levou o grande cônego a esgrimir a questão do papel da opinião pública no processo político de enfrentamento ao poder estabelecido no Pará. Como bem observa Vicente Salles, em seu Memorial da Cabanagem, ainda às vésperas da Cabanagem e pouco antes de sua morte, Batista Campos enfrentava o governo e os moderados por meio de jornais como O Publicador Amazoniense (1832) e o Orpheo Paraense (1834). Decididamente, a imprensa, o jornal, a palavra esgrimida, combatente e combativa haviam se instalado na contemporaneidade do Pará.

Combatente e combativa que era, a lida de Batista Campos no Pará, na verdade, ouvia e se fazia ouvir no restante do Império do Brasil, que se constituía como nação independente aos poucos, até 1825. Uma imprensa periódica livre, consciente e crítica, mesmo durante os momentos de adversidade: pilar democrático sem o qual a Independência do país não teria sido possível.

Explore os documentos:

O Paraense