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Acervo da BN | 60 anos de uma poderosa Invenção

13 out 2022

Artigo arquivado em Acervo da BN

No dia 13 de outubro de 2022, o compositor, maestro, professor universitário e jornalista Gilberto Ambrósio Garcia Mendes assopraria 100 velinhas no cocuruto de um bolo, caso não tivesse deixado cá este plano em 1º de janeiro de 2016. Ao leitor desavisado, cabe assuntar: Gilberto era um senhor serelepe, além de serelepe senhor. Entrou para a história cultural do Brasil como um dos porta-vozes da poesia concreta paulista, integrante que foi do grupo Noigandres, fundado em 1952. Coisa da turma de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Embora nos anos 1950 a trupe tenha editado uma revista também chamada Noigandres, no início dos anos 1960 vieram com ainda outra: eis Invenção. Ambas as revistas de arte deixaram boquiabertos os amantes das vanguardas. E foi na segunda que Gilberto Mendes saiu como um dos signatários do Manifesto Música Nova, se firmando como um dos pioneiros da música concreta em terra brasilis. Pois é. Ocorre que em 1962, mesmo ano em que Gilberto fundou o Festival Música Nova de Santos, a revista Invenção foi lançada. Ao ano de centenário do mestre concreto, portanto, a garbosa publicação completa 60 primaveras. Saibamos mais a respeito de tamanha invenção.

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InvençãoRevista de arte de vanguarda, foi uma revista artística de vanguarda predominantemente voltada à poesia, lançada no primeiro trimestre de 1962, em São Paulo (SP), por figuras da poesia concreta – servindo, portanto, de porta-voz ao concretismo brasileiro. Assim como Noigandres – outra revista de poesia concreta, editada pelo mesmo grupo –, Invenção foi apontada como, se não precursora, uma das grandes inspirações dos periódicos de poesia marginal editados durante o regime militar brasileiro.

A saber: Invenção não foi exatamente “parida” em 1962. Surgiu de um suplemento dominical de literatura publicado de 17 de janeiro de 1960 a 26 de fevereiro de 1961 no Correio Paulistano. Ela tinha Décio Pignatari respondendo como diretor responsável e um corpo editorial composto por Haroldo e Augusto de Campos, José Lino Grünewald, Pedro Xisto, Cassiano Ricardo (que logo abandonou a revista, por divergências com os demais), Edgard Braga, Mário da Silva Brito e Ronaldo Azeredo. Ao todo, quando veiculada de forma avulsa, foram lançadas apenas cinco edições da revista, que teve periodicidade irregular: as duas primeiras vieram a lume no primeiro e no segundo trimestres de 1962; a terceira em junho de 1963, após um hiato; a quarta em dezembro de 1964 e a derradeira somente dois anos depois, aparecendo como correspondente ao período entre dezembro de 1966 e janeiro de 1967. Coisas da imprensa de vanguarda, editada na cara e na coragem.

Gonzalo Moisés Aguilar, no livro “Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista”, discorre o seguinte sobre o surgimento da revista, remontando ao período em que seus editores ainda eram publicados regularmente no Correio Paulistano:
(...) no contexto do jornal, a página “Invenção” se assemelhava mais ao capricho de um grupo de excêntricos do que a um programa que se estivesse impondo “nacional e internacionalmente”. Para o grupo de poesia concreta, era então necessário estar em condições de assumir um protagonismo e poder situar-se no campo literário sem a necessidade de depender das diretrizes de um meio que não controlavam. Era evidente que o grupo não podia manter essa crença no cerne de um diário que tinha suas próprias posições editoriais e no qual a poesia e a arte em geral ocupavam o lugar tradicional do suplementar. O postulado principal da página “Invenção”, a “organização, em novas bases, do consumo da obra de arte”, necessitava de um contexto mais adequado para adquirir alguma viabilidade cultural. Em março de 1961, o grupo Invenção abandona o Correio Paulistano e, um ano depois, faz seu ingresso no cenário cultural com a revista Invenção (...). Esta é, a rigor, a primeira publicação do grupo que funcionou como uma revista no sentido convencional, e que já não era – como Noigandres – um pretexto para publicar material novo. (p. 90)

Destacando o potencial revolucionário do concretismo, que manteria a revista aberta à experimentação e ao “signo novo”, o editorial da primeira edição de Invenção expunha:
Como a página, a revista não será filiada a uma tendência determinada. O ponto de encontro da equipe que a dirige – na qual se reúnem, sem abrir mão das tendências que especificamente defendem, poetas e críticos, alguns alistados no movimento concreto, outros de orientação autônoma – é justamente a invenção. Vista como uma gama de tendências, menos e mais radicais, mas todas elas úteis na configuração do perfil de uma civilização em evolução e na produção de obras que contribuam para sua definição artística.

Em sua segunda edição, o editorial voltava a definir a revista, mas da seguinte maneira: “Este é um laboratório de pesquisa e ação poética, com características de periodicidade e militância, voltado para a promoção, em trabalho de equipe, da obra de arte de vanguarda, e aberto portanto a todos aqueles que se queiram engajar no processo”.

Além dos concretistas supracitados, Invenção se destacou na vanguarda literária ao publicar poemas, artigos, ensaios, depoimentos, reflexões teóricas em geral, cartas, ou demais trabalhos de nomes como (tomemos fôlego antes de citá-los) Erthos Albino de Souza, Luiz Ângelo Pinto, Paulo Leminski, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Afonso Ávila, Gilberto Mendes, Silviano Santiago, Manuel Bandeira, José Paulo Paes, Sebastião Uchôa Leite, Affonso Romano de Sant’Anna, Oliveira Bastos, Jorge de Sena, Mário Faustino, Benedito Nunes, Max Bense, Rogério e Régis Duprat, Paulo Marcos de Andrade, Félix de Athayde, Willy Correia de Oliveira, Maria do Carmo Ferreira, Fukiko Kobayashi, Eugen Gomringer, E. M. de Mello e Castro, Philippe Jaccottet, Ian Hamilton Finlay, Edwin Morgan, Pierre Garnier, Henri Chopin, Ievtuchenco, entre outros, incluindo-se colaboradores não-poetas e estrangeiros. Críticas, resenhas e curtas notícias sobre novidades no mundo literário também eram publicadas, destacando eventos, novas publicações, etc. A partir da 2ª edição, Invenção passou a ter uma única seção permanente, intitulada “Móbile”, que basicamente resenhava as repercussões da poesia visual em diferentes lugares, nacional e internacionalmente.

Em sua edição nº 2, Invenção anunciava futuros números especiais sobre Sousândrade, poesia russa de vanguarda e música de vanguarda (instrumental, concreta e eletrônica). No entanto, a revista pouco explorou domínios fora da poesia: quando isso ocorreu, mostrou-se o trabalho de Waldemar Cordeiro nas artes visuais, de Jean-Luc Godard (recém-falecido, no momento em que estas linhas são traçadas) no cinema e a música erudita contemporânea, em geral. Lembrando o que já dissemos a respeito de Gilberto Mendes, essa última foi a segunda expressão artística mais abordada por Invenção, além da literatura: a terceira edição do periódico saiu não só dedicada à música experimental, mas também com a finalidade de divulgar o “Manifesto da Nova Música Brasileira”, do grupo Música Nova. Eco da Semana de Arte Moderna de 1922, pois sim, como tantas outras formas de expressão. Essa atenção à música pode ser explicada, segundo Gonzalo Aguilar, pelo próprio momento pelo qual o concretismo passava, no período:
A atenção prestada às manifestações musicais estabelecia uma aliança, na qual o movimento (concreto) atenuava ou se despojava do peso que havia tido com o “funcionalismo” no contexto do chamado concretismo ortodoxo, que se estendeu de 1956 a 1960. Isso não quer dizer que a arquitetura – referência principal daquele período – deveria ser necessariamente funcionalista, e sim que a poesia entrava agora em uma constelação mais flexível e abstrata e menos dependente de suas possíveis utilidades. Com o discurso musical, os poetas retornam a um espaço mais marginal e coerente com a postulação de uma poesia militante que já não encontrava sua finalidade na função utilitária, e sim em seu poder de acompanhar os novos movimentos sociais de reivindicação política. (p. 91)

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Disposta no formato 25,2 x 18 cm, Invenção foi lançada inicialmente pelas Edições GRD, sendo composta e impressa inicialmente no Rio de Janeiro, nas oficinas da Folha Carioca Editora S.A. Em sua 2º edição circulou pela Massao Ohno Editora, para em seguida passar a sair pelas Edições Invenção, ou seja, custeadas pelos próprios poetas editores. Ao todo, suas edições contavam entre 70 e 80 páginas. Os moldes da capa foram os mesmos para todas as edições, mudando apenas a cor do fundo: amarelo, vermelho, azul-celeste, laranja e vinho, com impressão das letras sempre em preto. Apenas algumas de suas páginas internas possuíam cores e sua diagramação era como a de um livro: textos vinham em apenas uma coluna por página – regra que não era seguida pelos poemas concretos publicados, que, como se sabe, obedecem a outros padrões gráficos. Nesse sentido, inclusive algumas páginas internas de Invenção eram menores que as demais ou maiores, desdobráveis, semelhantes a encartes ou pôsteres, revelando conteúdo que extrapolava as dimensões da própria revista.

Invenção teve distribuição precária, tanto quando feita a cargo de seus editores quanto por empresa especializada – no caso, a editora Obelisco, que distribuiu apenas a 4ª edição da revista. Alguns de seus exemplares eram deixados em consignação em poucas livrarias, mas o retorno financeiro era quase nulo, ou seja: a revista teve que ser custeada por quem a dirigia. Basicamente, assim como em outras publicações periódicas literárias, os poetas participantes se dividiam em cotas para a obtenção do dinheiro necessário para a produção editorial e gráfica – uma exceção foi o nº 1, bancado integralmente pela editora GRD. Comentando o público restrito que tomou conhecimento das publicações concretistas, em artigo sobre Invenção e Noigandres, Omar Khouri comenta que
Nas tais revistas, as tiragens variaram: de 100 a 1000 exemplares, o que torna essas publicações, somando-se o fato à distância no tempo, raridades adentrando o universo da lenda. As técnicas de impressão utilizadas foram: tipografia-clicheria, serigrafia e o offset. Quanto à distribuição, tanto de Noigandres como de Invenção, era bastante precária: acabaram sendo mais doadas a amigos e aficionados do que vendidas e isto pode ser compreendido pelo fato de linguagem inovadora apanhar público e crítica sem repertório adequado para uma aproximação. Às vezes se observava uma não-aceitação por puro conservadorismo e/ou má-vontade (em muitos momentos, os poetas concretos justificaram a sua larga produção metalinguística escrita pelo fato de a crítica brasileira, quase sempre, estar despreparada para abordar a sua produção poética).

Para finalizar, cabe ainda destacar outros apontamentos de Gonzalo Aguilar sobre Invenção:
Um olhar panorâmico sobre a revista adverte que só os dois primeiros números podem ser incluídos integralmente na chamada “fase participante” (da poesia concreta), enquanto os outros três se preocupam mais com o estado das artes (principalmente poesia e música) e com a integração de novos poetas e artistas. Além disso, esses três últimos números possuem dois elementos centrais ou articuladores que faltavam nos dois primeiros: a presença da música contemporânea e de Oswald de Andrade. (p. 92/93)

Seja como for, pelo sim, pelo não, aí está: Invenção pode não ter exatamente inventado a roda do concretismo. Mas inventou moda.

 

Fontes:

Invenção – Revista de arte de vanguarda: edições nº 1, ano 1, do 1º trimestre de 1962, e nº 2, ano 1, do 2º trimestre de 1962.

AGUILAR, Gonzalo Moisés. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Edusp, 2005.

ÁVILA, Carlos. “Invenção” – Uma reedição necessária. In: O eixo e a roda: revista de literatura brasileira. Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários Faculdade de Letras da UFMG, v. 13, 2006.

KHOURI, Omar. Noigandres e Invenção: revistas porta-vozes da poesia concreta. In: Revista FACOM FAAP nº 16, 2º semestre de 2006.