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Acervo da BN | A flora nas paisagens tropicais

20 maio 2021

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Acervo BN, Artistas Viajantes, Biblioteca Nacional, Bicentenario da Independencia, Flora Brasileira, Mata Atlântica, Meio Ambiente, Paisagem Tropical, Pintura de Paisagem

Introdução

A Biblioteca Nacional tem em seu acervo iconográfico dezenas de gravuras de paisagem do início do século XIX. Paralelamente à vinda da coleção de livros que compôs a base da instituição na segunda década oitocentista, diversos viajantes naturalistas desembarcaram no Rio de Janeiro com interesse em retratar a natureza brasileira, antes vedada aos portugueses e luso-brasileiros. As pinturas e gravuras das paisagens tropicais traduziam e construíam uma nova noção de tropicalidade para a burguesia urbana-industrial e seus interesses econômicos e científicos. A maior proximidade com a história natural resultou em maior destaque para as plantas, seja na fisionomia dos indivíduos vegetais ou na ecologia das paisagens tropicais. Convidamos você, por entre texto e imagens, a vislumbrar como as plantas atuaram na narrativa da construção do conceito de tropical.

Dentro da floresta tropical

O interior das matas brasileiras aflorou nos artistas viajantes sentimentos de fascínio e espanto, além de uma dificuldade em representar em imagens. O pintor alemão Johann Rugendas argumenta que as técnicas do gênero de paisagem eram insuficientes para desenhar dentro das matas. As inúmeras formas de vida vegetal dificultavam representações mais fidedignas e tornavam-se obstáculos ao olhar do observador, que enxergava poucos passos à sua frente. Rugendas, que desembarcou no Rio de Janeiro em março de 1822 para acompanhar a expedição científica russa organizada pelo Barão de Langsdorff, aprimorou sua técnica para permitir mais luz à paisagem dentro da floresta. Ele organizou a densidade de plantas em diferentes planos, de modo a permitir a entrada de mais luz solar no ambiente. O artifício destacou palmeiras, epífitas, trepadeiras e outros exemplos da flora. Com a mata menos escura, a imagem ressalta um sentimento de segurança maior. Argumenta-se que Charles Darwin utilizou esta imagem de Rugendas para tranquilizar sua irmã, Caroline, sobre seu retorno seguro para a Inglaterra.

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A visita dos artistas junto a expedições científicas era frequente. O francês Conde de Clarac acompanhou o naturalista Auguste Saint-Hilaire no Brasil entre 1816 e 1819. Na antiga Província do Rio de Janeiro, nas margens do Rio Bonito, Clarac esboçou a paisagem abaixo. Comum na elaboração das pinturas e gravuras, os esboços funcionavam como prática e como estudo para compreender e comunicar o que o artista vai desenhar. Em 1819, de volta à Europa, Clarac aprofunda seus estudos sobre as plantas tropicais e seus traços fisionômicos na estufa do príncipe Maximilian Zu Wied, que trouxe exemplares da flora de sua viagem ao Brasil. A gravura foi exposta no Salão do Louvre, dando notoriedade para o artista e para a paisagem tropical. O gravurista Claude-François Fortier elabora uma litografia da arte de Clarac, que foi amplamente divulgada no Brasil e na Europa, imortalizando-a.



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Uma cidade nos trópicos

A incrível diversidade de formas e cores das milhares de plantas representadas frequentemente contrastou com aspectos civilizacionais e culturais do Rio de Janeiro Imperial, especialmente a noção da “cidade nos trópicos”. Na gravura seguinte, o botânico e desenhista Carl von Martius esforçou-se em representar, ao fundo, um ambiente urbano (sem plantas) em contraste com a rica diversidade vegetal dos subúrbios, em primeiro plano. O naturalista veio para o Brasil em 1817 com o zoólogo Johann Spix junto à comitiva da arquiduquesa austríaca que veio casar com Dom Pedro I, a Dona Maria Leopoldina. Essas expedições científicas não eram mera curiosidade, mas sim uma faceta dos interesses econômicos e políticos da aristocracia europeia. Para Martius, no entanto, o principal intuito era a taxonomia e a descrição das plantas brasileiras em imagem e exsicatas enviadas para a Europa. Ao retornar para sua terra natal, na Bavária, Martius deu prosseguimento às suas pesquisas taxonômicas na maior obra científica de seu tempo, a Flora Brasiliensis, com a descrição de mais de 20 mil espécies de plantas brasileiras.

Ainda no Brasil, o botânico e desenhista descrevia um trecho de uma caminhada pela Serra da Carioca em Viagem pelo Brasil: “Longamente nos reteve presos o mágico espetáculo de uma grande cidade europeia, surgida no meio de rica natureza tropical”. A cena de uma cidade rodeada de montanhas ricamente vegetada era novidade para ele. Na imagem abaixo, o subúrbio do Rio de Janeiro era como uma transição das matas da Serra da Carioca e o antigo centro urbano. As edificações contrastam com a diversidade vegetal das chácaras e quintas, a iconização do tropical não se limitou ao interior das florestas. Por um lado, reforçou um estereótipo da proximidade da natureza tropical do urbano; e por outro, a disposição ecológica das espécies condizia ao que os artistas observaram na capital imperial brasileira. Ao longo desse continuum, as bananeiras e as palmeiras são bem presentes nos arrabaldes, uma paisagem tropical vivida sensorialmente, e construída conceitualmente como a cidade e seus arredores, uma civilização nos trópicos.



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As pinturas e gravuras de paisagem não são para serem interpretadas como uma realidade material em que o artista registrou em um único desenho. Estas paisagens foram construídas tanto pelo olhar deles quanto pela prática de seus esboços em campo. Estes desenhos, sim, foram captados localmente em sua experiência sensorial por entre trilhas e mirantes das respectivas expedições. A partir desta prática e do coletivo dos esboços realizados em campo, os artistas organizavam estas vistas da natureza em gravuras ou pinturas de paisagem. A Biblioteca Nacional tem em seu acervo o rico livro de esboços do austríaco Thomas Ender, que acompanhou o Carl von Martius, mencionado acima. Importante legado para o patrimônio brasileiro, o álbum tem 256 páginas de esboços em aquarela e grafite que o artista fez em seus trabalhos de campo de 1817 a 1820.



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Estas representações do início do século XIX marcou as gerações seguintes de desenhistas e pintores, poetas e escritores. As “palmeiras onde canta o sabiá” inspirou a “Canção do Exílio” quando Gonçalves Dias estava em Coimbra, em 1843. Os traços das paisagens tropicais retratadas pelos artistas viajantes foram ensinados pelos professores da Academia de Belas Artes, como Jean-Baptiste Debret e Manoel Araújo de Porto Alegre. Em 1861, um dos alunos de Porto Alegre, Victor Meirelles, terminara o quadro de uma cena histórica: A Primeira Missa.

As plantas sempre estiveram muito presente na longa história humana. Nossas necessidades e vontades nos levou a domesticá-las, e cultivá-las para alimentação, vestimenta, remédios, e, claro, para admirá-las. Nossa relação com o reino vegetal transformou profundamente nossa fisiologia e nossa cultura. Nessa interação milenar, nós humanos temos coevoluídos com as plantas. Como era de se esperar, é nas múltiplas expressões da vida humana, como as artes visuais, que nossas relações com as plantas afloraram. E é no fantástico acervo de gravuras de paisagem da Biblioteca Nacional que temos a oportunidade de apreciar muitas destas obras.

Saiba Mais:

A vinda de Carl von Martius ao Brasil resultou num dos maiores projetos científicos do século XIX: a Flora Brasiliensis. O dia do nascimento do naturalista e artista marca hoje o dia nacional da botânica em 17 de abril.

Muitos outros viajantes vieram ao Brasil para desenhar a flora tropical. A inglesa Maria Graham veio ao Rio de Janeiro acompanhando seu marido em uma missão diplomática. Na segunda vinda, após a morte de seu companheiro, ela já participava do Flora Brasiliensis, ensinava para D. Maria da Glória, filha de Dom Pedro I, e desenhava as paisagens do entorno da cidade carioca.

A expedição Langsdorff prosseguiu com outros artistas e naturalistas, após a saída do pintor alemão Johann Rugendas.

Outros documentos:

Álbum de imagens do livro Viagem ao Brasil de Johann Spix e Carl von Martius - Atlas zur Reise in Brasilien, 1823-1831

Desenhos e esboços de Thomas Ender - Zeichnungen von schiffen, gräsern und figuren.

Viagem Pitoresca ao Brasil de Johann Rugendas, 1835 – 1ª edição em alemão.