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Acervo da BN | Borges da Fonseca e O Repúblico: contra tudo e contra todos

19 dez 2020

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Antônio Borges da Fonseca, Brasil Imperial, Dom Pedro I, Imprensa de Oposição, Liberalismo, Primeiro Reinado, Secult

No que tocam os assuntos públicos, no tempo em que nossa terra brasilis se via recém independente, o dia a dia era de cão – e chupando três mangas e dois jilós. Ao passo em que a máquina imperial engrenada por Dom Pedro I, entre muitos solavancos, berros e esconjuros impunha e forjava certo projeto de Brasil, fazer situação ou oposição aos rumos que a agora ex-colônia ia tomando não eram coisas para qualquer aventureiro. No entanto, era coisa para quem era da pá virada, isso sim. Quem pretendia botar um dedo ou dez – vá lá, talvez os vinte de uma vez, não ignoremos os pés – nos assuntos públicos normalmente começava os trabalhos escolhendo um lado, pró ou do contra, e lançando um jornal; daqueles informativos/opinativos, ditos “respeitosos” e coisa e tal, ou da espécie dos pasquins, irônicos, satíricos e desbocados. Engana-se o leitor pensa que os últimos eram exclusivamente os que faziam a caveira do governo: rumores davam conta de que textos do punho do próprio imperador – colaborador eventual de determinados jornais áulicos – lançavam impropérios de fazer corar Dercy Gonçalves em nome do sacro combate ao liberalismo, dando eco à pregação de outras figuras recorrentes na imprensa governista. Justifica-se: é que do outro lado do ringue havia gente do naipe de Antônio Borges da Fonseca, à frente de papeluchos escandalosos como O Repúblico, sugestivo já no título.

Lançado no Rio de Janeiro (RJ) a 2 de outubro de 1830, O Repúblico foi um pasquim de inclinação liberal radical, “exaltada” de acordo com a terminologia da época. Editado pelo paraibano Antônio Borges da Fonseca, nacionalista ferrenho, apoiador da implementação não só do regime republicano mas também do federalismo no Brasil, tendo imprimido em suas páginas desde duras críticas à Constituição imperial a sugestões de desmembramento do território nacional, foi mantido até a publicação de sua 197ª edição, de 15 de dezembro de 1855. Até o fim angariou a antipatia tanto das autoridades monárquicas quanto de grandes impressos conservadores, em especial o Diário do Rio de Janeiro, então gerido por Nicolau Lobo Vianna. Em trajetória que pegou do fim do Primeiro Reinado, quando combateu o que havia de absolutismo em Dom Pedro I, a meados do Período Regencial, quando criticava mesmo a ala liberal moderada que havia ascendido ao poder, sua periodicidade foi irregular – por vezes saiu a cada dois ou três dias, ou mesmo semanalmente. O jornal levou bordoada, naturalmente. Vítima de perseguição, seu tempo de vida, ademais, teve diversos hiatos, chegando a ser editado na Paraíba entre 1831 e 1832, de improviso.

O contexto de crise política em que O Repúblico surgiu, no apagar das luzes do Primeiro Reinado, já não lhe era dos mais favoráveis. Outros órgãos liberais, como Aurora Fluminense, Astrea ou a Nova Luz Brasileira estavam sob constante pressão por parte do primeiro governo imperial do Brasil, apesar do que significara a ruptura entre a colônia e Portugal, com a Independência. Luís Augusto May, redator de A Malagueta, sofrera brutal agressão em agosto de 1829, e as inclinações autoritárias de Dom Pedro I com relação à imprensa não poderiam ser mais incompatíveis com o “currículo” de Borges da Fonseca – cabra que não só teve antepassado apoiando a Revolução de Pernambuco de 1817 como participou, em 1824, com 16 anos de idade, da Confederação do Equador, tendo escapado à prisão por fuga realizada em tempo.

Dado o acirramento das lutas políticas nos últimos momentos do governo de Dom Pedro I, sociedades secretas foram fundadas para dar sustentação à monarquia, tendo voz em certos impressos periódicos: caso da “Colunas do Trono”, fundada em Pernambuco. Nas palavras de Nelson Werneck Sodré, na “História da imprensa no Brasil”, com relação a tal agremiação,

Para combatê-la, surgiria a Jardineira ou Carpinteiros de São José. Organizou-a, na Paraíba, com outros, Antônio Borges da Fonseca, ainda com vinte anos mas já conhecido ali pelos seus pendores republicanos. Borges da Fonseca, então, fundou a Gazeta Paraibana, que circulou em 1828 e 1829 e foi o segundo jornal daquela província. As autoridades absolutistas locais não lhe permitiram liberdade de ação: Borges da Fonseca foi preso e processado. Só em março de 1829, liberto por decisão do conselho de jurados, o jornalista voltou às lutas políticas, mas agora em Pernambuco. Foi quando fundou, no Recife, a Abelha Pernambucana, cujo primeiro número circulou a 24 de abril de 1829, e o último a 31 de agosto de 1830, combatendo os “colunistas” e o órgão local destes, O Cruzeiro. O nome de Borges da Fonseca começou a ser conhecido no país. De tal sorte que os seus companheiros de ideias políticas pediram sua presença na Corte. (p. 111/112)

Ao criador d’O Repúblico no Rio de Janeiro, então, se juntavam nomes como José Joaquim Vieira Souto, Manuel Odorico Mendes, Bernardo Pereira de Vasconcelos, José da Costa Carvalho, Manuel da Fonseca Lima, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, José Lino Coutinho, Francisco de Paula Sousa, e os padres José Custódio Dias, José Martiniano de Alencar e Diogo Antônio Feijó. Em pouco tempo Borges da Fonseca estava mesmo à frente do Partido Liberal. Seu jornal lançado na capital, impresso na tipografia de R. Ogier, na Rua da Cadeia (uma ironia para tamanho opositor das autoridades), solidarizava-se com a Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga. Ainda segundo Werneck Sodré, a folha de Borges da Fonseca

(...) trazia como epígrafe, segundo o uso da época, as expressões do Contrato Social, de Rousseau: “Povos livres, lembrai-vos desta máxima. A liberdade pode-se adquirir mas, depois de perdida, não se pode recobrar”. Nos seus números iniciais, o jornal declarava-se monarquista, explicando que o título adotado derivava de que o redator só desejava fazer o bem público. A atrevida linguagem do Republico caracterizava o clima de então. A pessoa de Dom Pedro não era poupada, ao contrário do que acontecia antes. Borges da Fonseca chamava-o de “caríssimo”, não no sentido de querido mas no de custoso ao Tesouro. Os jornais trocavam insultos, cada um na defesa de sua facção. (p. 114)

O debate político daquela época, entre liberais na oposição e conservadores no governo, estava particularmente turbulento a um mês do lançamento d’O Repúblico: no mês de setembro de 1830, quando da passeata de estudantes paulistas em comemoração à revolução ocorrida naquele mesmo ano, na França, a dura repressão sobre os manifestantes – que indiretamente deixavam claras suas insatisfações com a Coroa brasileira – gerou protestos de Libero Badaró no seu órgão liberal, O Observador Constitucional. A Comissão de Justiça da Câmara então se pronunciou, considerando legítima a derrubada do governo francês e se opondo à opinião do ministro do Império Silva Maia. Pouco depois, a 20 de novembro, foi assassinado, e a inquietação ganhou proporção extraordinária; as edições de 19, 20 e 21 de dezembro d’O Repúblico foram consideradas criminosas pelo poder, levando Borges da Fonseca a julgamento em 17 de janeiro de 1831, do qual saiu absolvido; além de pregar pelo regime federativo, o jornal havia sugerido que a viagem empreendida então por Dom Pedro a Minas Gerais visava a preparação de um golpe absolutista.

Sejamos sinceros: a crise iniciada com as comemorações pela Revolução de 1830 e o assassinato de Libero Badaró expunha o esgotamento do modelo despótico e culminaria na abdicação de Dom Pedro I em 7 de abril de 1831. No processo de derrocada do Primeiro Reinado, a imprensa liberal teve papel de relevo, sendo O Repúblico um dos órgãos de destaque, na mesma trincheira em que estavam a Aurora Fluminense e a Astrea, críticos polidos do Império, e a Nova Luz Brasileira e o Tribuno do Povo, que, ao lado da folha de Borges da Fonseca, eram apontados como liberais exaltados, virulentos, que buscavam verdadeira subversão da ordem pública. Dada a abdicação, segundo a “História dos jornais no Brasil: da era colonial à Regência (1500-1840)”, de Matías Martínez Molina, para quem, no Brasil, na época, não havia “clima para os jacobinismos e republicanismos de Borges da Fonseca”, o editor exaltado, em seu jornal, com relação a Pedro I,

(...) sugeriu que lhe fosse retirada a cidadania brasileira e, num momento de incoerência, e, quis que o Norte do Brasil fosse separado num Império independente, com a princesa Januária, irmã mais velha de D. Pedro II, como monarca. (p. 240)

Ao contrário do que pudesse parecer, o início do Período Regencial não deixou O Repúblico em uma situação exatamente confortável. É bem verdade que com o afastamento de Dom Pedro I o jornal de Borges da Fonseca moderou um pouco sua linguagem radical e agressiva, mantendo-se relativamente próximo de Evaristo da Veiga, o bastião do liberalismo moderado, que se aproximara do poder. Mas isso não durou muito. Notoriamente, entre 1830 e 1831 se fazia mais visível uma cisão entre os liberais moderados e os exaltados. Antes mesmo da abdicação, em julho de 1831, Borges da Fonseca aceitou o cargo de secretário do governo da Paraíba, deixando a corrente liberal na Corte centralizada em Evaristo da Veiga; em pouco tempo, veio a qualificar a influência deste como “maléfica”. Isso fez com que O Repúblico caísse em certa instabilidade: a mudança do editor, a rigor, criou um hiato na publicação, que parou de circular após veicular sua edição de nº 83, de 7 de julho, e reapareceu, todavia, ainda em 1831, na Paraíba.

Em sua segunda fase, paraibana, o periódico teve mais de uma centena de edições publicadas – incluindo três números que foram lançados excepcionalmente no Recife, quando da rápida permanência de Borges da Fonseca em Pernambuco – e durou somente até 1832, terminando, aparentemente, na edição nº 212, de 17 de dezembro daquele ano. Em seguida, o liberal criou, ainda na Paraíba, O Publicador Paraibano, de linha exaltada semelhante a’O Repúblico. O novo periódico, lançado em 17 de abril de 1833 após a demissão de Borges da Fonseca do cargo de secretário, chegou a travar intensos embates na imprensa, especialmente com O Raio da Verdade, mas acabou tendo vida curta. Então, seu editor retornou ao Rio de Janeiro, onde, a 24 de abril de 1834, relançou O Repúblico, que agora atingia sua terceira fase. O jornal acabou sendo relançado novamente na capital ao adentrar 1837, com novo nº 1 datado de 19 de janeiro; nesta quarta fase foi publicado através da Typographia Imparcial todas as terças e quintas-feiras e aos sábados, com a sugestiva epígrafe “Estamos ao pé do abismo”.

Nesse período a batalha entre os órgãos conservadores e O Repúblico de Borges da Fonseca esteve ainda particularmente contextualizada com os debates públicos acesos pelas disputas políticas que se desdobraram no chamado “golpe da maioridade”, que marcou o fim do Período Regencial a 23 de julho de 1840. Desde 1835 ganhava força uma verdadeira pressão sobre o Senado para que declarasse a maioridade de Dom Pedro II antes dos 15 anos de vida, em manobra política que pretendia deter revoltas populares que então eclodiam em pontos variados do Brasil. Temerosas com a “anarquia” que abalava a participação das elites na organização estatal do Império, forças conservadoras ligadas ao latifúndio e à economia escravocrata culpavam a descentralização político-administrativa que havia se imposto durante a Regência pelos levantes. Como Borges da Fonseca era um ardoroso panfletário da política liberal, que acabou enfraquecida com a sagração de Dom Pedro II, vinha “defendendo os farrapos e escalpelando o regresso que se processava”, conforme Nelson Werneck Sodré (p. 136).

Com o início do Segundo Reinado e a consolidação conservadora pela repressão às revoltas iniciadas no Período Regencial, certos editores de jornais e pasquins conservadores foram, nos dizeres de Sodré, glorificados pela “historiografia oficial”, enquanto a Borges da Fonseca coube bater em retirada da capital. Rumou para Nazaré da Mata, em Pernambuco, onde editou O Nazareno, órgão inicialmente de apoio à Revolução Praieira, de cunho liberal e federalista, que tomou conta da província entre 1848 e 1850, vindo a voltar-se contra os praieiros assim que estes tomaram o poder. Tal jornal foi fechado em junho de 1848, mas, antes mesmo de seu fim, ou, possivelmente, prevendo isso, o liberal paraibano lançara no Recife O Tribuno, em agosto de 1847 (possivelmente na tentativa de emplacar um órgão menos visado pelos praieiros): esse jornal durou pouco, mas seria relançado entre 1866 e 1869. Depois de uma temporada preso em Fernando de Noronha, o liberal exaltado veio a dirigir A Revolução de Novembro, órgão pernambucano lançado por Afonso de Albuquerque Mello, entre 19 de agosto de 1850 e 11 de dezembro de 1852, onde eram problematizados a Revolta Praieira, os ataques à mesma, e a Revolução de 1848, ocorrida na França.

Em maio de 1853 Borges da Fonseca abandonou Pernambuco para rumar à Corte novamente, para conduzir a quinta e última fase d’O Repúblico, iniciada com nova edição nº 1, de 1º de julho daquele ano. Assim, o jornal investia contra o movimento de conciliação entre partidos políticos então adversários, promovida pelo Gabinete presidido pelo conservador mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês de Paraná. No entanto, o liberal deixou a redação d’O Repúblico entre o final de 1854 e o início de 1855, para meses depois o periódico suspender sua circulação. Maurício Doellinger Júnior havia assumido o comando da folha em sua última fase, mas não pôde evitar seu fechamento, no final daquele ano, após a edição nº 197, de 15 de dezembro.

No total, sabe-se que Antônio Borges da Fonseca foi encrenqueiro o suficiente para fundar entre 21 e 25 periódicos, alguns publicados simultaneamente, além de ter redigido grande quantidade de panfletos e proclamações. Em quase todos os jornais em que escreveu, além de questões ideológicas nos planos político-administrativos, Fonseca exprimia grandes preocupações com o comércio e a economia, repudiando violentamente a predominância de comerciantes estrangeiros no país – como a maioria destes era portuguesa, queria impedir a imigração de Portugal e proibir que os já residentes no Brasil fossem empregados no comércio. Em outro plano, antecipando em muito o emprego da oralidade no texto de imprensa periódica (aqui vai nosso abraço à patota d’O Pasquim), o exaltado paraibano, nas palavras de Matías Molina, “adotou uma ortografia peculiar, que qualificava como ‘ortografia filosófica ou da pronunciação’, isto é, marcada pela fonética da região” (p. 241). Como se diz lá na Paraíba: viveu com a bexiga taboca, o Borges.

Primeira página de O Republico na década de 1830