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Acervo da BN | Coleção Brasilianas danças características – Casa Bevilacqua (DIMAS)

20 set 2021

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O acervo da Casa Bevilacqua, sob a guarda da Divisão de Música da Fundação Biblioteca Nacional representa importante capítulo da formação musical durante o Brasil Império. A Casa Bevilacqua, uma das primeiras editoras de música do século XIX, reúne em sua coleção partituras de gêneros musicais variados: choros, cançonetas, valsas, fado-tango, polcas, canções sertanejas. A coleção também conta com documentação administrativa, dando nota da rotina da companhia. Documentos tais como: autorização para gravação de obras, inventário das mercadorias, recibos e prestações de contas, resumo do balanço geral, balanços dos movimentos, levantamento dos estoques de pianos para aluguel, entre outros.

São poucos os registros sobre o histórico da editora. Contudo, a Casa Bevilacqua, propriedade do maestro genovês Isidoro Bevilacqua, foi considerada um dos estabelecimentos mais longevos do ramo, somando mais de um século de existência. Após sua chegada no Rio de Janeiro, Bevilacqua conquistou o posto de professor de música da família imperial. Por volta de 1840,Bevilacqua fundava a oficina de impressão com sede na rua do Ourives, n.52, alcançando filial em São Paulo. O prestígio da editora podia ser conferido pela excelência de seu maquinário e profissionais qualificados como atestou coluna publicada em O Mequetrefe de 1891: “Incontestavelmente é hoje a Casa Bevilacqua um dos estabelecimentos mais bem montados neste gênero. Além de possuir os apparelhos tachigraphicos Tessaro possue uma officina onde se faz vários processos lytographicos”. Segundo a historiadora e musicóloga Monica Leite, a Casa Bevilacqua teria editado mais de 3.500 obras entre partituras e catálogos.

Entre as preciosidades destacam-se as composições do maestro Carlos Gomes, da musicista Chiquinha Gonzaga, partituras do pianista e compositor Ernesto Nazareth e de Joaquim Antonio Barrozo Netto, patrono da cadeira de número 36 da Academia Brasileira de Música. A casa também detinha dos direitos patrimoniais da letra do hino nacional brasileiro.

Na imagem publicada vê-se uma partitura da coleção “Brasilianas, danças características” sob a autoria de Sebastião Barroso. O documento não possui data, porém estima-se do final do século XIX, período de grande divulgação de saraus e espetáculos teatrais, motivando circulação intensa na venda de partituras, sucesso aguçado pelo gosto e curiosidade sobre os mais variados gêneros musicais.

O título da coleção Brasilianas aponta correspondência para o culto a brasilidade, termo pouco utilizado a época. A brasilidade como fenômeno da reunião das matrizes culturais fundantes do país. No campo musical o termo brasileiro ou brasileira era corrente dando nota da importância de se conferir identidade às expressões artísticas produzidas em solo nacional. A variedade dos gêneros musicais, especialmente aqueles oriundos das culturas africanas, vinham acompanhados da adjetivação brasileira ou popular. A denominação popular como substitutivo de negro ou africano, respondia ao apelo ao caráter universal e harmônico pretendido para suposta conformação dos diferentes estilos musicais.

Na imagem em questão, a capa da partitura reproduz um jongo, cuja origem apresenta significação abrangente, mas, confrontando fontes e relatos deixados pelos antepassados, convergimos pontos em comum para a acepção do termo. A palavra jongo, oriunda da língua quimbundo, tem como sinônimo “jogo de adivinhação”. O jogo dançado e marcado por pontos lança desafios entre os participantes, que por improviso incitam uns aos outros em uma atmosfera encantada, tomando os jongueiros por feiticeiros. De acordo com a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro trata-se de uma “dança ungida de magia”.

Como expressão cultural, o jongo reúne religiosidade, linguagem e fortalecimento das redes de sociabilidade, posto o papel de comunicação através do canto e dos instrumentos típicos da dança (atabaques, pandeiros, tambores).Os modos de batucar articulavam a intensidade aos contextos, funcionando como códigos entre os cativos face a constante vigilância exercida nas plantations. Anúncios, zombarias e denúncias como malfeitos dos senhores de engenho tinham lugar no jongo, dando vazão a um conjunto de enunciados sagrados a cultura jongueira. Homenagear os ancestrais, iluminar os caminhos, compor e celebrar os “pontos” sintetizavam o rito do jongo.

A representação do jongo na imagem se distancia do caráter de linhagem parental e ritualístico da dança. Fato observado nos periódicos dos finais do XIX.O jongo, muitas vezes substituído pelo termo “batuque”, revelava o caráter ambivalente expresso nas folhas semanais. Se os jornais se dividiam entre reprimir a “dança dos negros” causadores da perturbação da ordem, outro jongo era cada vez mais celebrado. O jongo aclamado nos palcos da corte, ou nas reuniões íntimas da boa sociedade, ou mesmo o jongo espetáculo para distração dos viajantes de além-mar acolhidos nas fazendas. O jongo mediado e protagonizado pelas elites ganhava contornos festivos, tornando-os palatáveis ao grande público.

A expressão “danças características” seguida do termo “Brasilianas” informa sobre o efeito neutralizador das especificidades das danças de matriz africana. A figura do jongueiro raiz é deslocada a fim de ceder a representação de personagens arquetípicos, que, desde os projetos da construção de uma história para o Brasil, a exemplo do premiado “Como se deve escrever a história do Brasil” do naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius, representaram o empenho de adaptação de diferentes formações étnicas.

Assim, a imagem traz não apenas personagens negros, como outros matizes étnicos. Em primeiro plano, dois negros retintos, um deles de costas e sem camisa. Ao centro da imagem, a figura de uma mulher mestiça, provavelmente a representação da mulata buliçosa com adornos típicos de baiana. A mulher é cercada por homens e mulheres. À esquerda e em segundo plano, pessoas com a cor de pele mais clara. Um homem mestiço toca atabaque, enquanto outros dois tocam pandeiros. Um deles é branco. A composição pictórica sugere diversidade étnica. Todos portam vestes simples e cantam e dançam em harmonia.

A imagem da capa anuncia a venda da partitura tanto para o jongo quanto para o samba. Ambos sob o valor de R$2.000,00 réis. A mesma representação pictórica para os dois estilos musicais revela a perspectiva uniformizadora para as “dansas [sic] de preto” ou “danças características”. A coleção Brasilianas conduz a repertório semântico de catalisação das manifestações culturalmente hibridizadas. Se pensarmos na destinação da partitura, “música para piano” explícita na catalogação do acervo, apreendemos a redefinição do jongo como prática autorizada.

A brasilidade conferida na coleção Brasilianas remete ao construto sociocultural característico do contexto político coincidente do período de produção de partituras de samba, jongo e outras músicas de origem africana. Contudo, o acervo da Divisão de Música – FBN guarda em sua maioria partituras de gêneros musicais como modinhas, valsas, polcas e quadrilhas. Há poucos registros de partituras de música africana, com exceção dos lundus. De fato, as campanhas abolicionistas, com seu número de simpatizantes, articulistas e ativistas pela causa, auxiliou na disseminação para aceitação da cultura negra, esta vista como incontornável. Logo, o “problema do negro” precisava, em alguma medida, ser pacificado.

Não à toa a referida imagem remete a conceitos-chave para o processo de identidade brasileira. A baiana, o gingado, a predisposição para a festa, conferindo a propriedade de ser brasileiro, e porque não o reconhecimento do caráter humano, ainda que obrigatoriamente crivado por um conjunto de estereótipos. Estampar o jongo ou o samba na capa da partitura como festa efusiva, celebração e comunhão das raças acarreta dupla função: de patrimonialidade de uma expressão cultural, neste particular apreendida pelo olhar da superioridade branca e de apagamento da ancestralidade africana como forma de sobrevivência social perante as violências de um passado colonial.

O jongo de firmação da existência negra substituído pela alegria ingênua entra em conformidade com a posição subalterna, posição possível na dinâmica social. Não obstante os esforços de aculturação das manifestações negras, o jongo como discurso e prática resiste. Reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo IPHAN em 2005, o jongo, bem como outras danças de matrizes africanas renovam a memória e a importância da contribuição negra como sustentáculo do país.