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Acervo da BN | Courrier du Brésil: moda e interesses da colônia francesa no Rio do século XIX

10 jul 2020

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags 1854, Cultura Francesa, Franceses no Brasil, História, Imigração, Imprensa imigrante, Liberalismo, Moda, Política, Segundo Reinado

Na década de 1850 os franceses residentes no Brasil já constituíam uma comunidade estabelecida. Fugidos de crises políticas – como o 18 de brumário, o golpe de Estado de Luís Bonaparte que, em 1852, extinguiu a Segunda República francesa e estabeleceu um Império que duraria até 1870 – e econômicas que assolavam a Europa e sinalizavam a América como um lugar melhor para se viver, quase todos eram trabalhadores manuais – artistas e artesãos de lojas e oficinas. No entanto, os imigrantes franceses, bem como os ingleses, tinham certas vantagens ao optar pela vida na Corte brasileira: os produtos de sua nacionalidade estavam em voga; vestir-se à moda de Paris ou de Londres, particularmente, simbolizava não apenas luxo e sofisticação, mas identificava cidadãos pertencentes a uma nova era. A expressividade que adquiriram então lojas de roupas, restaurantes, salões de modistas, oficinas, livrarias, cabeleireiros e galerias administradas por franceses – vendendo na maior parte das vezes produtos também franceses –, como não poderia deixar de ser, se refletiu num fortalecimento da colônia no comércio carioca. Assim, seus integrantes não só fundaram entidades de apoio como a Sociedade Francesa de Socorros Mútuos e a Sociedade Francesa de Beneficência, rivais, como editaram periódicos ligados a estas que buscavam propagandear modas e variedades culturais inerentes à cultura francesa; alavancando, portanto, o prestígio de seus negócios no Rio de Janeiro. Politicamente amenos quanto aos assuntos que poderiam desagradar a Coroa, de linha editorial variada e redigidos em francês, tais periódicos, dos quais o Courrier du Brésil – Politique-litterature-revue des theaters-sciences et arts-industrie- commerce, foi o principal (tendo mesmo sido exclusivo no gênero entre 1854 e 1858), visavam especialmente a população francesa expatriada.

Lançado no Rio de Janeiro a 15 de setembro de 1854 como hebdomadário dominical vendido na livraria de Pinto & Waldemar, na badalada Rua do Ouvidor, o Courrier du Brésil circulou até 12 de outubro de 1862, sempre editado por Antoine Adolphe Hubert – não devendo, portanto, ser confundido com o periódico homônimo publicado em 1828. Suas edições tinham oito páginas dispostas em três colunas, e eram impressas inicialmente na impressora de George Leuzinger, passando, depois, para a tipografia de Nicolau Lobo Viana, figura ligada à monarquia que, por contrato, entre 1848 e 1862 publicou matéria oficial. Ao longo dos anos o jornal desenvolveu um programa editorial diversificado, voltado, afinal, tanto à colônia francesa na Corte quanto a admiradores da cultura e da moda francesas: publicava crônicas, faits divers, artigos políticos num primeiro momento devidamente distantes de polêmicas que pudessem lhe render qualquer reprimenda com o governo, cotidiano teatral carioca, efemérides, questões imigratórias (com apontamentos sobre a colonização brasileira, a imigração europeia e a escravidão), assuntos gerais de utilidade e assistência pública, embates entre a Sociedade Francesa de Socorros Mútuos e a Sociedade Francesa de Beneficência, informes financeiros e comerciais, modas, novidades no campo científico, notícias internacionais, relatos de viagens, literatura, folhetins, anúncios (de produtos, serviços e profissionais), entre outras coisas. Instalado inicialmente no nº 107 da Rua do Ouvidor, mesmo endereço que o restaurante de Andre Long, que publicava anúncios em suas páginas, o Courrier du Brésil posteriormente se mudou para o nº 100 da Rua do Rosário e, já nos últimos momentos de sua publicação, teve redação novamente na Rua do Ouvidor, no nº 112.

Em sua “História da imprensa no Brasil”, Nelson Werneck Sodré discorre algo quanto à imprensa francesa editada na Corte, naquele período. Os periódicos de tal grupo, se não apolíticos, eram governistas ou neutros, posição onde se enquadrava a linha do Courrier apenas durante seus primeiros momentos – de qualquer forma, todas essas folhas se omitiam nas questões políticas mais problemáticas do país. Nas palavras do autor:

Se a parte mais numerosa do público era constituída pelas moças casadouras e pelos estudantes, e o tema literário por excelência devia ser, por isso mesmo, o do casamento, misturado um pouco com o velho motivo do amor, a imprensa e a literatura, casadas estreitamente então, seriam levadas a atender a essa solicitação premente. A mulher começava a libertar-se, pouco a pouco, da clausura colonial e subordinava-se aos padrões da moda europeia exibindo-se nos salões e um pouco nas ruas. O comércio de modas estava em mãos de franceses e francesas; seu palco era a rua do Ouvidor. (...) circulara sempre na Corte algum periódico desses modistas – na segunda metade do século, em início, esse jornal era o Figaro Chroniqueur.

O Figaro-Chroniqueur, claro está, era francamente apolítico, e aparentemente foi tanto lançado quanto extinto em 1859, o mesmo ano em que surgira L’Écho du Brésil et de l’Amerique Du Sud. Sabe-se que no final da década de 1850 a comunidade francesa no Brasil tentava emplacar a publicação regular de semanários em francês numa tentativa explícita de repetir o sucesso do Courrier du Brésil, mas essas novas empreitadas não chegavam a durar mais de dois anos: o jornal L’Équite, inscrito na Sociedade Francesa de Beneficência, foi outro bom exemplo de efemeridade. Todos esses, todavia, tinham que lidar com a concorrência do Courrier, que, por ser o principal jornal francês da Corte, naquele momento, acabou sendo o mais longevo de todos, tendo durado oito anos ininterruptamente.

Em seus primeiros momentos, todavia, o Courrier du Brésil começava a se inscrever no processo de formação da sociedade franco-brasileira tanto por um viés político quanto econômico. Louvado em discurso pela Sociedade Francesa de Socorros Mútuos (ver edição de 1º de setembro de 1857), que apontava Adolphe Hubert como um de seus sócios beneméritos, o jornal, segundo Letícia Gregório Canelas, no texto “O Courrier Du Brésil e o conflito entre associações francesas no Rio de Janeiro”,

(...) iniciou sua publicação com uma linha editorial que aparentemente pretendia atender à comunidade francesa em geral e que agradasse, como disse uma vez Hubert, “brancos, vermelhos, amarelos e tricolores”. Assim, entre 1854 e 1855 suas convicções políticas eram mais suavemente explicitadas. Contudo, especialmente depois do processo de formação da sociedade mutualista francesa, suas posições políticas foram expressadas sem reservas. Ao iniciar o ano de 1860 com uma carta “aos seus assinantes atuais e futuros”, os editores do Courrier du Brésil explicitam esse processo e ressaltam sua escolha pela via democrática contra o “partido da direita”. (p. 294)

Rejeitando o Partido Conservador, provavelmente, o Courrier chegou, inclusive, a defender o sistema republicano de governo em sua edição de 6 de janeiro de 1861 – dando fim, portanto, à sua linha branda no terreno político. Ao lado de Adolphe Hubert, que além de diretor da folha foi seu redator-chefe, e que depois de sua passagem pelo Brasil viria a integrar a Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional) e a Comuna de Paris, o Courrier du Brésil contou com a colaboração de Adèle Toussaint-Samson, Jacques Argo, Charles Ribeyrolles, Charles Pinel, L. de Geslin, Casimir Lieutaud, Huger, dr. Gornet, entre outros, sendo que alguns destes foram figuras de destaque no combate ao despotismo. Ribeyrolles e Gornet participaram da Revolução de 1848 na França e estavam, então, exilados. Lieutaud, por sua vez, foi colaborador do periódico O Republico, de Antonio Borges da Fonseca, pasquim de crítica política liberal e republicano, célebre por provocar a ira das autoridades monárquicas e, portanto, da imprensa áulica. Por razões como essas, nas palavras de Canelas,

No final da década de 1850 e início dos anos 1860, a atuação deste pequeno “partido” da República – O Courrier du Brésil e seus correligionários – já não se limitava tanto apenas à “pequena França” erigida no centro da capital brasileira. É interessante notar como Hubert se refere ao Brasil em uma crônica política que criticava a escravidão no Brasil: “par l’amour de notre pays”. Em artigo de 25 de março de 1860 (...), Adolphe Hubert destacaria a importância do “elemento francês” no desenvolvimento do pensamento público brasileiro, principalmente na Corte imperial. Afirma que em 1852 a imprensa brasileira era uma criança. No entanto, desenvolveu-se e naquele ano de 1860 já se encontrava tomada pela “massa” que participava das lutas intelectuais e que impunha a majestade de seus decretos, dilatando o pensamento, comprimindo-o por baixo. Essa transformação teria se dado por influência do “elemento francês”, que passou a atuar com “livre arbítrio”, após se libertar da influência dos dirigentes da Sociedade Francesa de Beneficência (“autoridade de convenção”). (p. 298)

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