BNDigital

Acervo da BN | Há 190 anos O Noticiador gaúcho estabelecia um marco duplo

29 maio 2022

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Abolicionismo, Guerra dos Farrapos, História da Imprensa, Liberalismo, Período Regencial, Revolução Farroupilha, Rio Grande do Sul, Secult

Aqui já se falou sobre o Recopilador Sergipano, primeiro órgão da imprensa de seu estado, que em setembro de 2022 completa 190 anos de sua fundação. Pois neste ano há ainda outro ilustre aniversariante, de outro canto do país, também assoprando 190 velinhas. Pudera: com o fim das restrições de circulação de qualquer imprensa que não fosse a régia nos tempos coloniais, o recém-nascido Império do Brasil viu pipocar, seja na corte ou nas províncias, diversos empreendimentos tipográficos de meados da década de 1820 ao longo da década de 1830. Na política, na economia e no plano das ideias - três esferas sociais que sempre de mãos dadas - aqueles eram tempos de ebulição: depois de todos os esforços pela Independência do país, o debate público se mostrava urgente conforme o Primeiro Reinado entrava na turbulência que levaria à abdicação de Dom Pedro I, em 1831, e ao início do Período Regencial. Se afinal íamos em direção a uma democracia, todos os caminhos teriam um pit-stop chamado exercício da imprensa. Assim como o Recopilador, o jornal do qual falamos hoje também teve seu grau de pioneirismo, embora não no mesmo sentido. O marco fundador da imprensa em sua província, São Pedro do Rio Grande do Sul, veio cinco anos antes: foi o Diário de Porto Alegre, publicado desde 1827. Ocorre que, aos primeiros respiros da Regência, a São Pedro de então se desenvolvia. Assim, em 1832, coube à Vila do Rio Grande do Sul, a atual cidade de Rio Grande, o estabelecimento de outro marco local nas artes de Johannes Gutemberg. Eis O Noticiador, "Jornal Político, Litterario e Mercantil", o periódico que estabeleceu a chegada da imprensa livre ao interior gaúcho. E ainda mais: foi o primeiro brasileiro a defender abertamente a abolição da escravatura.

***
O amor da liberdade, que nos leva a detestar toda a espécie de tirania; o desejo de ver o nosso país livre de todas as dissenções e rivalidades, que retardam o andamento de sua prosperidade; a obrigação, enfim, que todos temos de contribuir, segundo nossas forças, para o melhoramento e ventura da sociedade a que pertencemos, venceram a repugnância que, em consequência do nosso mesquinho cabedal literário, tínhamos de tomar sobre nossos ombros a penosa tarefa de escritor público.

Com essas palavras vinha a lume O Noticiador. Fundado pelo farmacêutico maçom Francisco Xavier Ferreira, então conhecido como “Chico da Botica”, o periódico iniciou sua circulação em 3 de janeiro de 1832, data da edição que traz as palavras acima. O fato de ser a publicação pioneira no interior da Província de São Pedro não significava que sua iniciativa tivesse grandes pompas técnicas: era impresso numa tipografia simples, que Ferreira possuía no então chamado Beco do Rasgado, mudando-se posteriormente para a Rua Direita.

Chico da Botica é um personagem cuja história vale a atenção. Tinha suas conexões. Já durante a Independência, dez anos antes do lançamento de seu jornal, foi membro da Junta Governativa da Província de São Pedro, que tomou posse com o afastamento do governador português João Carlos Saldanha de Oliveira Daun. Ainda naquele ano de 1822, foi responsável pelas negociações que culminaram na elevação de Porto Alegre à categoria de cidade. Sua vida como deputado, afinal, não se restringiu àquele momento: teve seus últimos dias de vida pública ocupando a presidência da Assembleia Provincial, em mandato diretamente relacionado à projeção de sua imagem através de O Noticiador.

Todo jornal pode ser uma ferramenta política. Foi o caso da folha de Chico da Botica. Ela vinha com linha editorial crítica e opinativa, defensora e divulgadora da política liberal em tempos em que o absolutismo ainda respirava, vivo e forte. Além de ter entrado para a história como o primeiro jornal do interior gaúcho, O Noticiador atraiu as atenções a ponto de ser considerado, também, um dos cinco melhores periódicos da província rio-grandense: o fato de ser a primeira folha abertamente abolicionista da imprensa brasileira, em tempos ainda distantes da Lei Áurea, pesa.

Lançado menos de um ano após a abdicação de Dom Pedro I, ocorrida em contexto para lá de caótico, o jornal de Chico da Botica chegava ao público procurando juntar os cacos da jovem nação. Apontando com clareza erros e acertos da Regência, não raro aprofundando questões ainda inerentes à luta pela Independência, não deixava de explorar assuntos de interesse local. Chegou mesmo a evidenciar ações criminosas cometidas por forças que pretendiam restaurar o Primeiro Reinado. Isso tudo, no entanto, podia ser encontrado em outras folhas periódicas. O diferencial de O Noticiador era outro. Seu maior valor historiográfico, hoje, reside no fato de ter sido vanguarda na denúncia à presença do tráfico negreiro ilegal no Brasil de seu tempo; a escusa prática havia sido proibida em 1831 pela Lei Eusébio de Queirós, elaborada para aliviar a pressão diplomática exercida pela Inglaterra. Fora óbvias questões humanitárias e de cumprimento à lei, liberal que era, Chico entendia que também sua nação se via amordaçada pela dependência da economia escravocrata. De 1831 a 1850 mais de um milhão de escravizados entraram ilicitamente em terra brasilis.

***

Como costuma acontecer com boa parte da imprensa política não governista na história brasileira, O Noticiador não teve vida longa. Não passou de cinco anos. Em seu último número, de 9 de fevereiro de 1836, nada indicava o fim de sua publicação. É que foi suspenso de supetão, por conta das articulações políticas de Chico da Botica ao início da Revolução Farroupilha. Em janeiro de seu derradeiro ano de circulação O Noticiador já mostrava sinais de cansaço: se antes saía duas vezes por semana, passara a sair apenas às terças-feiras.

O Noticiador possuía um formato comum à imprensa da época, semelhante ao atual tabloide, com 29,3 cm por 19,3 cm. Como quase todo o restante dos jornais daquele tempo, tinha apenas quatro páginas. Era originalmente bissemanal, saindo às terças e às quintas-feiras - depois do número 50 circulou às segundas e quintas-feiras. Lançava edições especiais volta e meia. Na sua página de rosto trazia cabeçalho, expediente, epígrafe, entre outras notas. Ali se destacava, em ordem prática: "Subscreve-se para esta folha (...) á 4$000 rs. por semestre, pagos adiantados". E também: "vendem-se Ns avulsos á 80 rs., na mesma Typographia [de Francisco Xavier Ferreira na] rua Direita. Na loja do Sr. Carlos Antonio da Silva Soares e na Botica do Sr. Antonio Joaquim da Silva Mariante".

Em suas páginas centrais, O Noticiador publicava textos sobre política, legislação, ofícios, decretos, ciência, justiça, efemérides, etc. Vinha com longos argumentos ou comentários menos aprofundados, artigos, debates e transcrições de outros jornais. Nas suas últimas páginas, fixava informações cambiais, variedades, preços, anúncios e prestações de serviços. Apenas no seu número 215, de 8 de março de 1834, O Noticiador mudou a identidade visual de seu cabeçalho. Cumpre dizer, ainda, que algumas edições do jornal foram numeradas erroneamente pelo tipógrafo, algo normal para a época: depois do número 332, de 25 de maio de 1835, a numeração sofre uma mudança, possivelmente um erro, marcando a edição seguinte, já de 1º de junho, como 233. Este erro desencadeou numeração correspondente que foi até a edição de 20 de julho daquele ano, que está numerada como 244, mas deveria ser 344. A edição seguinte já aparece como 345.

***

É bom frisar que o primeiro redator de O Noticiador não foi Chico da Botica: foi o médico Guilherme José Corrêa. Mas, por não cumprir satisfatoriamente com suas funções, este acabou afastado da redação em 13 de março de 1832, ingerência que interrompeu a circulação do periódico por 11 dias. Na falta de alguém à altura do desafio, o cargo acabou sendo ocupado pelo próprio fundador do jornal, a partir de sua 31ª edição, em 27 de abril de 1832. Mas também colaborou com a redação da folha Bernardo José Veigas, até o sua morte em 3 de outubro de 1833. Assassinado. Reflexo da quente política do momento.

A publicação de O Noticiador foi suspensa momentaneamente em 17 de novembro de 1835, na sua 376ª edição, pela ida de Chico da Botica a Porto Alegre, para cumprir funções na Assembleia Legislativa Provincial. Isso era comum na época e também em tempos mais recentes: grandes publicistas na imprensa acabam tendo o devido palanque eleitoral. Pois Chico colecionou cargos importantes, dentro e fora da Assembleia. No mesmo ano de fundação de seu jornal, 1832, chegou a secretário e presidente da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional. Presidiu a Sociedade de Beneficência de sua vila, onde ainda foi responsável pela criação do primeiro hospital público. Assim como esteve envolvido com a elevação de Porto Alegre à categoria de cidade em 1822, em 1835 se engajava no mesmo processo, para Rio Grande.

Mas nem tudo eram flores, em 1835. A publicação de O Noticiador foi suspensa novamente entre 5 e 27 de outubro de 1835, dessa vez por imposição do presidente da província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga. Voltou a circular com a fuga do governante. Fuga? Pois sim: foi exatamente enquanto Braga presidia São Pedro do Rio Grande do Sul que a Revolução Farroupilha estourou, entre 1834 e 1835. Apesar de favorável ao grupo revoltoso, que tomara Porto Alegre de assalto, foi esse o início do fim d'O Noticiador.

Quando o líder insurreto Bento Gonçalves marchou para a capital gaúcha em 20 de setembro de 1835, Fernandes Braga bateu em retirada justo para a Vila de Rio Grande, lar d'O Noticiador e de Chico da Botica - que então não estava por lá, mas em Porto Alegre, onde mantinha-se presidente da Assembleia Provincial. Embora não fosse um separatista - era em realidade adepto da monarquia constitucional -, Chico da Botica não concordava com a forma como o Império administrava São Pedro do Rio Grande do Sul. Articulado, dentro e fora da Assembleia contribuiu para a formação dos movimentos que deram origem à Revolução Farroupilha. Dava combustível ao grupo revolucionário ao propagar suas ideias liberais n'O Noticiador, criticando veementemente o centralismo político imperial e o arcaísmo do modelo econômico imposto pela monarquia. Em 1835, não pôde ver que, aos improvisos, em sua Rio Grande, foi estabelecida a representação oficial do Império do Brasil na província. Enquanto isso, em Porto Alegre, os farroupilhas temporariamente elevaram Marciano José Pereira Ribeiro como presidente da República Rio-Grandense, um novo estado-nação.

Chico da Botica foi apeado da presidência da Assembleia Provincial e encarcerado quando da invasão de tropas legalistas à capital da Província de São Pedro, em 15 de junho de 1836. Foi mandado, inicialmente, para o navio-prisão Presiganga, que o levou para uma viagem sem volta à corte. Mas pouco tempo antes seu jornal já tinha deixado de circular: sua 388ª edição, do dia 9 de fevereiro de 1836, foi a derradeira. Avizinhava-se um novo capítulo da história local: a Guerra de Farrapos, travada desde então contra o Império do Brasil. Ela durou até março de 1845, quando o Tratado de Poncho Verde rendeu os dissidentes farroupilhas e pôs fim à república, que acabou nunca sendo reconhecida oficialmente pelo Brasil. Chico da Botica não viveu o suficiente para testemunhar tamanha derrocada. Morreu a 23 de abril de 1838 nas masmorras da Fortaleza de Villegaignon, no Rio de Janeiro. Um triste fim, decerto, para o pioneiro da luta abolicionista na imprensa brasileira.

 

Explore os documentos:

http://memoria.bn.br/DocReader/230270x/1

http://memoria.bn.br/DocReader/230270/1