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Acervo da BN | Periódicos de literatura portuguesa no Rio de Janeiro oitocentista

05 nov 2020

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Imprensa imigrante, Liceu Literário Português, Literatura Portuguesa, Portugueses no Brasil, Séc. XIX, Secult

Quem já andou pela Rua Pereira da Silva, no bairro carioca de Laranjeiras, sabe bem que ela faz um L perfeito. Iniciada de uma saída à direta na Rua das Laranjeiras, ela vai subindo até a comunidade que leva seu nome, mas que acaba sendo mais conhecida como favela do Pereirão. Mais para o início da rua está a Casa de Leitura da Fundação Biblioteca Nacional, e mais para o fim o Liceu Molière. E o que tem no meio? Bem na curva do L chama a atenção um belo sobrado, datado do século retrasado, porém bem cuidado, com duas bandeiras hasteadas na fachada: uma de Portugal, outra do Brasil. Passaria por um consulado. Mas é o centro cultural do Liceu Literário Português, fundado em setembro de 1868 e atualmente baseado entre o Largo da Carioca e a Rua Senador Dantas, pertinho, portanto, do prédio sede da Biblioteca Nacional, no centro do Rio. Atualmente, o liceu luso é conhecido por oferecer cursos de pós-graduação em língua portuguesa. Mas o “Literário” em seu nome, afinal, veio de algum lugar: precisamente das tertúlias poéticas e das publicações que o liceu mantinha, no século XIX. Estas, praticamente todas disponíveis na Biblioteca Nacional Digital, assim como outros impressos, de agremiações do mesmo tipo. Confira hoje um bom exemplo desse gênero: o Archivo do Retiro Litterario Portuguez no Rio de Janeiro.

O Archivo do Retiro Litterario Portuguez no Rio de Janeiro foi a revista literária oficial da correspondente agremiação luso-brasileira de letras, publicada em data incerta, aparentemente a partir de 1870. Em tons não só estritamente literários, mas também históricos e políticos, e carregadas na lusitanidade, suas páginas vinham basicamente com poesia, prosa e ensaio (com algumas notícias e comentários de interesse da classe literária portuguesa em segundo plano) produzidos por membros do Retiro, uma sociedade literária fundada na capital no ano de 1859 a partir de uma dissidência do antigo Grêmio Literário Português, que, por sua vez, deu origem, anos mais tarde, por meio de uma nova dissidência, ao atual Liceu Literário Português. Um pouco rocambolesca, tal história. Pudera: iniciativas assim foram pouco tratadas na historiografia da colônia portuguesa no Brasil. O Retiro Literário, afinal, também editou os periódicos A Messe: Periodico da Sociedade Retiro Litterario Portuguez, em 1860, período quase 10 anos anterior ao da edição do Archivo, e a Revista do Retiro Litterario Portuguez, esta posterior ao Archivo, entre 30 de julho de 1882 e 31 de dezembro de 1885, época em que o Liceu Literário já existia.

Segundo Sébastien Rozeaux, no artigo “Presença da ‘colônia portuguesa’ na paisagem cultural e midiática do Rio de Janeiro: o Grêmio Literário Português e o Retiro Literário Português (1855-1885)”, associações como o Retiro Literário Português, de fundo educativo, cultural, esportivo ou beneficente,

(...) dão auxílio a seus membros que, às vezes, enfrentam situações pessoais difíceis, e algumas delas até obram para melhorar as representações pouco amenas dos portugueses na capital. Pois o crescimento da imigração portuguesa contribui para manter um clima de lusofobia persistente desde a independência do Brasil em 1822. No final da década de 1850, tanto os parlamentares quanto a imprensa se mostram pouco entusiasmados com o crescimento da imigração portuguesa, preferindo migrantes vindo do centro e do norte da Europa. Entretanto, essas reações frias e até mesmo hostis, recorrentes durante o Segundo Reinado (1840-1889), não resultam apenas das tensões próprias ao mercado de trabalho e à economia portuária, e as dimensões políticas e simbólicas são aqui essenciais (...). Já em 1837, 43 comerciantes portugueses decidem fundar uma biblioteca no intuito de permitir aos membros da sociedade se instruírem e de promover as ciências e as letras portuguesas: é o ato fundador do Gabinete Português de Leitura. Em seguida, outras associações culturais portuguesas são fundadas por iniciativa de caixeiros preocupados em se formar, participar da vida cultural do Rio de Janeiro e cultivar o legado da antiga potência colonial na capital imperial. Assim, elas reivindicam também a sua solidariedade política com a monarquia liberal portuguesa, que entrou, desde 1851, em uma fase de estabilização política e de modernização que rompe com décadas de conflitos armados e de guerra civil. O Grêmio Literário Português no Rio de Janeiro é fundado em 1855, quando a revista literária A Saudade é apresentada como seu órgão de imprensa. Essa associação desaparece em meados da década de 1860, quando se impõe no espaço público um novo círculo, o Retiro Literário Português no Rio de Janeiro, fundado em 1859. Diferentemente do Gabinete Português de Leitura, essas novas associações nutrem ambições mais propriamente literárias, como testemunhado por sua política editorial, apesar dos transtornos e das decepções. A Revista do Retiro Literário Português (1882-1885) é, quase 30 anos após A Saudade, a última manifestação de uma vontade de tornar visível no espaço público carioca, pela mediação de uma publicação idônea, a vitalidade desses círculos de sociabilidade. (p. 492)
De início, o Retiro Literário Português, através de seus periódicos, pretendia contemplar o estreito círculo da colônia portuguesa, mas não só isso: buscava também fortalecer a disseminação da cultura portuguesa no Brasil. Suas publicações, assim como as do Grêmio Literário, pretendiam promover a literaturas portuguesas clássica e contemporânea num contexto de contribuição para o desenvolvimento das relações culturais Brasil-Portugal, enfraquecidas, por razões de ordem sócio-política, desde 1822. Entretanto, segundo Rozeaux, a iniciativa de tais periódicos não era bem vista pelos círculos intelectuais brasileiros e pelas figuras da imprensa da Corte, que a rigor duvidavam das “capacidades literárias” de tais revistas, editadas por imigrantes comerciários, recusando-se a legitimá-las e, sobretudo, a enviar colaborações para suas edições. Restrito à marginalidade, com seus membros ignorados – e posteriormente esquecidos – pela historiografia literária, o Retiro Literário buscou contornar a indiferença, após sentir seus efeitos na edição de A Messe. Rozeaux destaca o artigo 2 dos estatutos da agremiação, publicados na Collecção das leis do Império do Brasil de 1861, publicada em 1862, p. 498, que diz que “Se por ventura fôr julgado mais conveniente cessar a publicação do periodico, dar-se-há á luz annual ou semestralmente um livro intitulado o Archivo do Retiro Literário Português no Rio de Janeiro, collaborado unicamente pelos socios effectivos, honorarios e correspondentes”. Nesse sentido, os textos de Patrício Muniz e F. de P. Santos Gouvêa publicados no volume de 1870 do Archivo – respectivamente “A união ibérica” e “Brado patriótico” – estabelecem uma linha argumentativa descrente na reaproximação entre as monarquias brasileira e lusitana.

Apesar de a política editorial do Archivo do Retiro Litterario Portuguez ter sido diferente da de A Messe, mais aberta ao colaborador brasileiro, foi justamente o primeiro periódico que obteve mais atenção por parte da imprensa, quando lançado: chegou a ter a qualidade de seus colaboradores, jovens de ocupações diversas oriundos da colônia local, destacada no Diário do Rio de Janeiro, em edição de 22 de agosto de 1872. De fato, ao longo da década de 1860 alguns dos jovens fundadores do Retiro Literário Português foram obtido crescente sucesso no círculo literário da Corte – algo que, segundo Rozeaux, contribuiu para o estabelecimento da chamada “idade de ouro” da agremiação, no quinquênio entre 1880 e 1885, época em que o Archivo cedia espaço à Revista do Retiro Litterario Portuguez. Nas palavras de Rozeaux,

A recepção entusiástica do Archivo..., após dez anos de silêncio editorial, sinaliza a renovação desse círculo literário que viveu anos conturbados durante a década de 1860, enquanto o Gabinete Português de Leitura conhecia uma fase de expansão notável. A explicação se encontra principalmente na dificuldade em fazer o coletivo viver e animar-se. A imprensa diária carioca registra essas tensões internas, quando alguns membros, sob anonimato, não hesitam em zombar da “inconsistência” do trabalho e da falta de investimento pessoal de seus colegas: “aulas, cursos, jornal, tudo desapparecêra ante o indifferentismo de uns e o esquecimento de outros.” A denúncia dos supostos desvios da diretoria (do Retiro Literário) alimenta uma crise latente, da qual as colunas do Diário do Rio de Janeiro e do Correio Mercantil guardam o registro em 1865 e, novamente, no início do ano de 1868: “Seja isso devido á indifferencia da maioria dos socios, ou á cabala dos mais vaidosos, quasi sempre pouco habilitados, o que é certo é que os logares da directoria são quasi sempre pessimamente preenchidos!” (p. 502)
O volume do Archivo do Retiro Litterario Portuguez válido pelo ano de 1870, único consultado nesta pesquisa, e talvez única edição do periódico a ter circulado, contava 250 páginas impressas pela Typographia de Pinheiro & Cia. (no nº 159 da Rua Sete de Setembro). Os textos literários publicados ali eram assinados por A. F. Marques, D. Amélia Jenny, Augusto Monteiro, Balthasar Werneck, Bernardo Freire da Fonseca, Eugenio Arnaldo de Barros Ribeiro, F. de P. Santos Gouvêa, J. M. da Cunha Vasco, João Elisiario Antunes, Luiz Corrêa da Azevedo, M. Guilherme da Silveira, M. J. Gonçalves Júnior, Manoel Joaquim d’Almeida, D. Maria Carolina Gomes, Patrício Muniz, Pedro Telmo, – em paralelo, havia na edição um texto biográfico em homenagem a Luiz de Camões “composto sobre a minuciosa notícia que da vida do poeta nos dá o sr. Visconde de Juromenha (João António de Lemos Pereira de Lacerda) na sua edicção das obras de Luiz de Camões. Lisboa, Imprensa Nacional, 1860”. O editor dessa edição, anônimo, deixa claro, em nota, que não era o detentor original da tarefa de “levar ao seu termo a publicação do Archivo”, mas teve que fazê-lo, nas “poucas horas livres dos seus labores commerciaes”, por conta da “inesperada e sentida ausência do seu antecessor” – referindo-se, provavelmente, ao periódico A Messe, extinto há cerca de 10 anos, ou ao editor do mesmo.

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http://memoria.bn.br/DocReader/810010/1

http://memoria.bn.br/DocReader/739340/1

http://memoria.bn.br/DocReader/718700/1


Archivo do Retiro Litterario Portuguez no Rio de Janeiro de 1870.