BNDigital

Acervo da BN | Se a vida te dá laranjas...

11 jan 2021

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Angelo Agostini, Gabinete Ouro Preto, Racismo, Republicanismo, Rio de Janeiro, Secult

São muitos os ensinamentos e histórias que caem no “esquecimento”. Mas este vem entre aspas por uma razão. Porque, precisamente, desfrutadores de acervos como os da Biblioteca Nacional, reunindo desde bíblias mais antigas que o Brasil até o mais banal panfleto de casas de secos e molhados da Pindamonhangaba do século XIX, dão conta de escarafuncha-los, volta e meia. Um deles foi certo sucedido com Afonso Celso de Assis Figueiredo, o visconde de Ouro Preto, chefe do derradeiro ministério de Dom Pedro II, dominado pelo Partido Liberal, ao final de seu reinado. Quem olhasse a cara do visconde de Ouro Preto, lá pelos idos de julho de 1889, podia até imaginar que a monarquia não estava em crise. Mas a coroa estava então por um fio: na noite do dia 15 daquele mês, certo Adriano do Valle dispararia contra o séquito do imperador, que teria ficado um tico mais grisalho com o susto, já não o fosse por completo. O atentado contra o monarca, de suma gravidade, quase ofuscou outro, ocorrido quase na mesma data e mais adequado à galhofa tropical, só que voltado a nosso primeiro ministro.

De fato, como bom figurão imperial, o visconde de Ouro Preto transitava naquele fatídico mês de julho, pelas ruas da corte, solene e respeitável em sua carruagem, com todos os fumos necessários para um aristocrata: nariz dissimulado para o alto e avante – apesar do órgão olfativo do chefe de gabinete ser quase perpendicular ao chão, mas para baixo. Pobre nariz. Seria ele mesmo o portador de uma verdade inconteste e inconveniente – para não dizer surreal – a seu dono: sua possante acabava de adquirir, compulsoriamente, acentuado blend cítrico. Obra e graça da juventude republicana da época: tremebundos estudantecos de medicina que, apesar de terem nascido ontem, se atreveram a arremessar trocentas laranjas da quitanda mais próxima ao veículo de Ouro Preto, que dera o azar de passar na hora errada bem na frente da Escola de Medicina, casa de aspirantes a magarefe típica da burguesia republicana, decerto. Imaginemos certo detalhe de nossa microhistória: que teria explicado o cocheiro a sua digna esposa, ao chegar em casa encharcado, pingando laranja pelos cantos?

Também envolvida nesse rebuliço, outra personagem de nossa microhistória, no entanto, não carece de tantos detalhes imaginários de nossa parte. Com relação ao primeiro ministro, devaneia cá o escriba que o importante visconde apenas olhou para a frente e ignorou a barbaridade cítrica: o Maracanã ainda demoraria a ser criado, mas nobre que é nobre não se dá a ares de Fla x Flu; jamais (ou quase jamais) sai aos berros nem na mais extrema das ocasiões. Mas e quanto a Sabina, a dona do tabuleiro de laranjas? Não teria como ignorar o episódio. Porque, apesar de estar ali apenas a vender frutas, foi encarada como se fosse uma verdadeira fornecedora de munição aos estudantes. O subdelegado da região apareceu com seus meganhas de bigode grosso e cara de poucos amigos por ali, logo na manhã seguinte, expulsou Sabina do ponto, apreendeu seu tabuleiro e confiscou todo e qualquer cítrico subversivo em sua perigosa posse, até segunda ordem. Sabina era negra. Fossem ainda tempos de escravidão, recém abolida no papel, a polícia só não viria com tal performance caso se tratasse de uma escrava de ganho - melhor evitar inconvenientes com seu dono, sabe-se lá quem.

Um desdobramento interessante do ocorrido foi devidamente exumado pelo escritor, professor e historiador Luiz Antonio Simas, no livro “O corpo encantado das ruas”. É lá, mais precisamente em sua pujante página 142, que o autor, entendido do riscado carioca, assinala: clientes e simpatizantes de Sabina, ao saberem da rebordosa, armaram quizomba ainda maior. Espetaram laranjas – compradas talvez da concorrência, lamentavelmente – em suas respeitáveis bengalas e marcharam pelo Centro, num protocarnaval fora de época que saiu do largo da Misericórdia, tomou a rua Primeiro de Março e enveredou pela Ouvidor, a então rua da coqueluche intelectual, onde, contando com boa adesão popular, saudaram as redações dos principais jornais da corte, à época pejadas de sabichões republicanos, entre vivas e entusiasmos. Gáudio espetacular que, pela culatra, ajudou a assar ainda mais a batata imperial, além de, quem diria, causar comoção suficiente para fazer o subdelegado renunciar ao cargo e a chefatura de polícia readmitir Sabina em seu antigo ponto de venda.

Imortalizada pela cultura das ruas por um breve momento, Sabina virou heroína de uma peça teatral de Arthur e Aluísio Azevedo, publicada na revista teatral A República, no ano seguinte, com a intelectualidade da Ouvidor já menos abespinhada: o Brasil enfim era republicano, embora estivesse sob franca ditadura militar, com velhas figuras escravocratas de antanho dando as cartas, meramente repaginadas. Nos palcos, curiosamente, como assinala Luiz Antonio Simas, “A artista que representou Sabina (...) era uma grega branquela chamada Ana Menarezzi”. É nesse ponto em que o historiador deita fora o bagaço e cospe as sementes:

Poucas histórias são mais emblemáticas do sarapatel carioca que a das laranjas da Sabina: quem alvejou a carruagem do visconde de Ouro Preto com frutas foram estudantes de medicina. Quem pagou o pato foi a mulher negra quitandeira que estava trabalhando. A adesão de uma parte da população à causa de Sabina é típica de certa solidariedade de rua, aquela que vez por outra nos restitui a esperança no meio do desencanto. Por outro lado, Sabina, negra, ter sido representada pela grega Menarezzi indica o emblema do racismo de uma cidade fundada para expulsar franceses que um dia resolveu ser francesa para esconder que é profundamente africana. (p. 142/143)


Em seu número 558, de 27 de julho de 1889, a Revista Illustrada de Angelo Agostini retratou a manifestação das laranjas, dando o devido destaque à negra Sabina, no cortejo. É o traço do mestre italiano da imprensa brasileira que ilustra o texto de hoje. Na mesma página, um pouco acima do desenho, Agostini ironizava ainda mais o chefe do Gabinete Ouro Preto, retratando-o, junto com Cândido de Oliveira, pregando, em tribuna, a favor da liberdade de expressão. Quem te viu quem te vê, seu Afonso. A filosofia do ilustrador estava nas entrelinhas: quando a vida te dá laranjas, atire-as na pessoa certa.

Explore o documento:

http://memoria.bn.br/DocReader/332747/4041

http://memoria.bn.br/DocReader/332747/4042

Atentado contra Dom Pedro II

A Manifestação das laranjas.