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Acervo da BN | Voz do Cárcere: as agruras por trás das grades

13 mar 2021

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Periódicos de Detentos, Porto Alegre, Regime Militar, Sistema Penitenciário, Vida nas Prisões

Existe jornal de tudo quanto é tipo. Jornal de partido, de empresa, de associação de base, de grupo de amigos interessado em espalhar boas fofocas... A lista é interminável. Logo, por que não existir um editado por detentos do sistema penitenciário? Tempo para redigir e ler, afinal, eles têm, sendo até melhor ocupar a cabeça com esse tipo de coisa, quando se está acertando contas com a Dona Justa. Foi com isso em mente que a Voz do Cárcere foi criada, na Porto Alegre de 1981. Publicação dos internos do Presídio Central da capital gaúcha, era extremamente contestadora e debatedora, daquelas de botar o dedo em muita ferida feia e inflamada. Feita por e para presos, sua periodicidade ia ao sabor do vento: irregularidade que variava entre bimestral, por volta de 1985, e trimestral, já em 1986, sinal da dificuldade em se produzir tal gênero de periódico.

De acordo com edições datadas de 1985, o periódico não era bagunça. Era dirigido pela assistente social Ema L. Licks, aliás, Dra. Ema L. Licks, para quem não tem intimidade. Mas ela não carregava o piano sozinha: contava com o editor Sérgio Antônio Figueiredo, que escrevia inúmeros artigos em tom pessoal, e os redatores José Carlos Fortuna da Silva, Jorge Luiz Miranda e Oscar Adrian Palau – todos assinando, em algumas edições, como coordenadores da publicação, sinal de que eram pau para toda obra, fazendo de tudo um pouco. A fotografia ficava por conta de Henrique Viana Jaeger (outro que acumulava funções e também trabalhava como redator) e a diagramação sob responsabilidade de Sérgio A. Figueiredo. A publicação trazia ainda colaborações de Paulo Ricardo Souza Ribeiro, Luis Fernando Zorilla Plata, Delmar Quaresma, Edson P. Miranda, Nilton Luiz da Silva, Egydio Antonio Elias, Cláudio Gomboski, entre outros. Dificilmente deixava-se claro quem, dentro de todo desse povo, estava cumprindo pena. Por outro lado, trabalhos de escritores como Sérgio Porto (também conhecido como Stanislaw Ponte Preta, autor do sempre atual “FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assola o País”) e dos cartunistas Ziraldo, Edgar Vasques (com a tira “Rango”, em específico), Paulo Sampaio (Sampaulo) e Ronaldo eram reproduzidos livremente nas paginas da Voz do Cárcere; e destes, que se saiba, apenas Ziraldo já havia tocado piano no xilindró, por escaramuças entre o seu jornal humorístico-político-zombeteiro O Pasquim e as autoridades militares, que não achavam graça de nada.

Voz do Cárcere chegou a circular em formato minitabloide e tabloide, sempre impresso em off-set em parque gráfico terceirizado, no caso, o da Zero Hora Editora Jornalística S. A. Em suas páginas, que variavam de 12 a 16, viam-se artigos para lá de críticos ao regime militar, descendo-se lenha na política nacional, em geral. Redigidos por presos políticos, talvez? Quem sabe sim, quem sabe não, quem sabe um ou outro, quem sabe todos os envolvidos no projeto editorial. No grosso, o jornal era recheado de debates e reflexões sobre a relação entre o poder público e o sistema penitenciário. A grita da Voz do Cárcere se dividia em diversos assuntos interligados, numa linha temática que abarcava direitos humanos, situações emocionais e psicológicas dos internos, dificuldades enfrentadas pelo egresso das penitenciárias, motivação e fé na liberdade, religião, questões e projetos sociais, superlotação nos presídios, criminalidade, malefícios da burocracia, trabalho infantil, os percalços da educação no Brasil, falhas do Código Penal brasileiro, a falta de verbas para a segurança pública, desemprego, o cotidiano da equipe técnica e auxiliar do serviço social do Presídio Central, manifestações de paz, horóscopo, saúde, cultura, campeonato de futebol dos detentos, festividades e datas especiais, etc. Não faltavam entrevistas, cartas de leitores, notícias e denúncias do cotidiano do Presídio Central, apelos de internos – como um pedido para liberdade condicional de José Carlos Fortuna da Silva, um dos coordenadores e redatores do jornal –, notificações da Secretaria da Justiça do Rio Grande do Sul, notas bem-humoradas, poemas, depoimentos, contos, curiosidades da história, homenagens a instituições e datas históricas, notícias curiosas do mundo externo (normalmente no campo da política e da justiça, com casos de polícia também muito explorados), agradecimentos da publicação às entidades e pessoas que a apoiam, trechos de textos de autores reconhecidos (até Olavo Bilac pintou por lá), charges, fotografias (de mulheres sensuais, inclusive, como não?), ilustrações, notas de falecimento, anúncios, entre outras coisas.

Nas edições de nº 27 e 28, ano 7, datadas respectivamente de novembro de 1986 a janeiro de 1987 e fevereiro a abril de 1987, o jornal revelava uma sutil mudança em seu expediente: como redatores, figuravam lá apenas Jorge L. S. Pires, Voltér Berquó (ambos indicados como internos) e o ainda editor e diagramador Sérgio A. Figueiredo. Como colaboradores, algumas novidades: José A. Coutinho, J. Walter de Souza, Antônio Guedes da Cunha, Clara Haag Kipper, Sônia Ramos, Dirce Pereira, Nellys M. Leal Berto, Adélia Kostuczenko, internas da Penitenciária Feminina Madre Pelletier e da Penitenciária Feminina de Tremembé (SP), entre outros.

Apesar das mudanças apontadas na edição anterior, na edição nº 28 do ano 7, que engloba de fevereiro a abril de 1987, Voz do Cárcere anunciava no topo de sua capa: “A derradeira edição: o nosso jornal para”. Abruptamente. Ou talvez nem tanto, haja vista as explicações de seus editores: revelavam uma situação insustentável, vítima de divergências na equipe, “pressões internas e externas” e um cada vez mais “escasso ‘plantel’ de redatores”, que passou de oito para apenas três pessoas. O jornal, em apaixonado editorial de Sérgio Figueiredo, que não poderia faltar na despedida, anunciava: “Depois de cinco anos e meio de atividades e após 28 edições, o nosso jornal está deixando de ser publicado (...). Esta foi uma decisão pensada, avaliada, amadurecida e assumida integralmente pela nossa diretoria, uma atitude serena mas decidida irreversivelmente, uma tomada de posição que acatamos e, embora discordantes, respeitamos”.