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Artes | Estevão Roberto da Silva, um artista afro-brasileiro?

02 dez 2021

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Arte brasileira? Arte afro-brasileira? Arte afrodescendente? Arte afro diaspórica? A historiografia da arte brasileira tem produzido em perspectiva a canonização das artes plásticas e visuais sob marcadores conceituais, teóricos e metodológicos, cujos referenciais têm em sua origem o estatuto de uma arte etnocêntrica. O século XIX, período da chegada da família imperial ao Brasil e do processo de modernização da Corte, tem como destaque a inauguração da Academia Imperial de Belas Artes em 1816, cujo currículo foi moldado pela influência europeia, em especial francesa. Dali, no ano de 1863, ingressava Estevão Roberto da Silva, primeiro artista negro a pertencer a instituição. A trajetória de Estevão da Silva, filho dos escravizados Victor Roberto da Silva e Ana Rita da Silva, nos oferecem pistas sobre a controversa relação entre a legitimação da história da arte no Brasil e os conflitos presentes na formação clássica de Estevão, aluno e profissional premiado, estimado professor do Liceu de Artes e Ofícios. Contudo, as consequências de uma personalidade arredia como definiam seus colegas lhe trouxe alguns dissabores que lhe custariam uma carreira em ascensão. Podemos relacionar o processo de apagamento pelo qual Estevão (e seus pares) sofreu apenas em decorrência a sua origem étnica? A denominação de uma arte afro-brasileira bastaria para a desnaturalização de uma produção artística pretensamente neutralizada?

A começar pela certidão de batismo. A inscrição “africana” no documento que informa sua origem gera dúvidas quanto a sua condição, não sabendo ao certo se Estevão já nascera livre. A família se mantinha com parcos rendimentos. Apesar de, desde jovem pertencer aos quadros da Escola de Belas Artes, Estevão desempenhava outras funções para suprir o seu sustento. Registros do Ministério da Guerra divulgavam em editais da Junta Municipal da Corte, relação dos inspetores de quarteirão, designação atribuída a Estevão para o policiamento na região central da Corte. Já a promoção da carreira artística por meio da Academia, ao contrário do que se possa supor, estava destinada a candidatos de origem menos favorecida, cabendo aos herdeiros de famílias mais abastadas qualificação no exterior nos prestigiados ateliês parisienses.

Na Academia, Estevão iniciou seus estudos no curso diurno, frequentando as aulas de desenho geométrico e desenho figurado. Dirigida por Manuel Araújo Porto Alegre e ministrada por Victor Meirelles e Pedro Américo, a instituição contava com as cadeiras de pintura histórica, modelo vivo e anatomia e composições de naturezas-mortas na qual Estevão se especializou. A escola por meio de edital promovia periodicamente concursos internos entre os alunos e, anualmente concurso público com direito a premiação, evento amplamente celebrado e divulgado na imprensa brasileira.

Se analisarmos a produção pictórica do período, precisaremos fazer algum esforço para localizar conexões objetivas a problemáticas negras, tais como o tráfico negreiro ou processos de abolição, diferentemente do que se já testemunhava na imprensa e na literatura. A obra “Úrsula” da maranhense Maria Firmina dos Reis, romance publicado em 1859,foi um dos precursores para a luta abolicionista, merecendo atenção especial por se tratar de uma mulher negra em um país de maioria iletrada. Luís Gama trazia em sua narrativa de retorno ao passado, a reconstrução de uma África e de uma africanidade idílica, que já não existia e talvez nunca tenha existido no próprio continente, mas que no imaginário dos desterrados refazia noções de pertencimento vitais para a emancipação negra.

Pensar a obra de Estevão da Silva em categorias raciais requer, necessariamente, a readequação de categorias analíticas fundamentais para pensar a complexidade das poéticas visuais, operadas por um grupo social tão heterogêneo no tempo e no espaço. Retomando a crítica da arte, percebemos o intenso debate sobre os critérios e balizas que circunscrevem uma arte afro-brasileira e por consequência nos ajuda a refletir sobre demais categorias, tais como “artistas afro-brasileiros”. Seria Estevão da Silva um artista afro-brasileiro?

José Mariano Carneiro da Cunha foi uma das personalidades referenciais para a discussão da constituição de uma arte afro-brasileira. Ancestralidade e religiosidade concorriam como questões centrais para a associação do termo. Tão importante quanto as origens da cultura negra, a representação dos ritos, a frequência e adoção consciente do tema perfaziam alguns dos critérios para a nomenclatura de uma arte afro-brasileira, independente da procedência étnica do artista.

Já o artista e escritor Manuel Raimundo Querino, fundador do Liceu de Artes e Ofícios na Bahia e contemporâneo de Estevão, enfatiza a contribuição da “mão afro-brasileira”, como bem salientou o curador Emanoel Araújo em catálogo de exposição homônima por ocasião dos cem anos de abolição, para pensarmos que, embora não evidente no construto estético das artes plásticas do XIX, a emergência de contra narrativas e da perspectiva de sujeitos racializados encontrava lugar e voz nos escritos de Querino. A obra “O colono preto como fator da civilização brasileira” subvertia o binômio dominante/dominado designando ao negro escravizado a posição e atuação de colono preto, dado que os pressupostos para um modelo de civilização em solo brasileiro não deveriam se estabelecer em função de paradigmas de uma civilidade europeia, por consequência pautadas em estruturas raciais hierarquizantes.

O historiador da arte Roberto Conduru reconhece os limites temporais de uma arte afro-brasileira, dada a concepção do termo somente no século XX, discorre sobre a possibilidade de uma arte afrodescendente, reconhecendo o referencial geográfico e cultural dos remanescentes da escravidão transatlântica. Assim, propõe apaziguar a tensão sobre a produção de uma arte afro-brasileira, avaliando a categoria também como temática, não havendo necessariamente exigência de filiação étnica ao retomar exemplos como o argentino Carybé e o alemão Karl Heinz Hansen, revelando assim o caráter flexível e abrangente do termo.

Longe de pacificar a discussão, importa salientar que tais terminologias estiveram (e estão) em constante disputa, cabendo aqui encorajar como exercício epistemológico reflexão sobre quais contribuições a pluralidade das categorias trazem na formulação de outras camadas interpretativas para a história da arte brasileira. Artistas e curadores mais contemporâneos falam de produções e poéticas afro diaspóricas em conformidade a herança de sujeitos hifenizados, pois todos compartilhavam da experiencia de apartamento cultural resultante da colonização europeia. Isto posto, torna-se inevitável estabelecer cruzamentos entre a biografia de Estevão e as condições sócio-históricas que o deslocaram para um papel secundarizado no curso da história das artes. Outro ponto, trata-se de pensar sobre a análise da práxis artística mobilizada em um arco conceitual entre africanidade e brasilidade. Levando em consideração a complexidade desses termos e a economia de exclusão que tais noções se impuseram no discurso oficial. Nesse sentido, é profícuo pensar a problemática do negro como temática, desarticuladada capacidade de agenciamento e subjetividade de artistas racializados?

Um breve exame nas colunas e artigos de especialistas em arte do XIX nos permite ter a dimensão analítica proferida pelos críticos de sua obra. Avaliações de ordem técnica revelavam o reconhecimento de um processo de aculturação, orientado pelo desempenho da arte executada em sua excelência, mas que é particularizada por caracterizações racializantes. O crítico de arte Luiz Gonzaga Duque Estrada ao dissertar sobre a produção de Estevão, elabora crítica combinando rigor técnico a cores fortes e vibrantes, próprio da cultura negra “peculiar à raça que veio [...]de uma rude raça oprimida”.

A dimensão racial expressa na crítica de Duque Estrada encontrava ressonância nas notícias das premiações oferecidas pela AIBA. Estevão e seus ilustres colegas Augusto Off, Belmiro de Almeida, Emílio Bauch, Francisco Caminhoá, José dos Reis Carvalho, Nicolau Fachinetti e tantos outros dividiam a relação dos laureados nas categorias de pintura histórica, paisagem e modelo vivo. Estevão conquistou em muitas edições a medalha de prata pelo seu desempenho. Além do corpo técnico da Academia, as premiações contavam em sessão solene com a presença de autoridades como o ministro do Império e mesmo da princesa Isabel e do Imperador Pedro II.

O episódio que resultou no afastamento de Estevão da Academia desvela impressões sobre o grau da punição sofrido pelo artista. Em 1879, a Gazeta da Noite, ao divulgar o resultado do certame daquele ano, põe em xeque a comissão julgadora ao preterir o trabalho de Estevão para outro candidato mais jovem. Justificativa: a expectativa de que Estevão pudesse entregar um trabalho condizente aos anos de experiência. A autobiografia de Antonio Parreiras “História de um pintor contada por ele mesmo ”retoma o fato, destacando o clima de estupefação entre os colegas, que dava certa a vitória de Estevão e a revolta do próprio com o veredito. “[...] seus olhos encheram de lágrimas. Recuou e foi ficar atrás de todos. O nome de Estevão ecoou na sala. Calmo, passou entre nós, a passos lentos e atravessou o salão. Aproximou-se do estrado onde estava o Imperador ergueu arrogantemente a cabeça e gritou: ‘Recuso!’. Segundo o colunista da Gazeta, a empatia velada do imperador pelo gesto do pintor não arrefeceu as medidas “corretivas”. A contestação rendeu a Estevão a suspensão por um ano com base no artigo 155 do edital que, entre outras disposições, previa danos materiais e morais, a exemplo da destruição de quadros, telas ou atos de injuria, sob pena de 3 meses a 2 anos de prisão ou afastamento do curso, conforme noticiado em 26 de fevereiro de 1880.

O enquadramento de Estevão como artista de naturezas mortas, prática considerada menor, se comparada a produção de cenas históricas e a pouca procura pelos seus serviços de retratista, fato justificado por outro polêmico episódio no qual Estevão teria humilhado publicamente um importante comendador teria contribuído para uma posição menos privilegiada. Nada que o impedisse de exercer outras funções como professor de desenhos e ornatos do Liceu de Artes Ofícios, de pertencer a Sociedade dos Artistas Brasileiros ou tornar-se conselheiro da Sociedade Beneficente dos Artistas do Arsenal da Marinha da Corte.

Os percalços pelos quais Estevão passou poderiam ser justificados pelo seu temperamento intempestivo ou mesmo por uma ambição desmedida, frustrada pelas resoluções da Academia, instituição por onde permaneceu por mais de uma década, mas da qual nunca chegou a lecionar. Contudo, os relatos de Antonio Parreiras, Duque Estrada e A. de Miranda nos informam sobre o determinismo racial que por vezes invalidava ou tolhia carreiras proeminentes. Nem mesmo a extensiva campanha de angariação de fundos comandada por José do Patrocínio para a conclusão dos estudos na Europa sensibilizou as principais autoridades. Estevão, assim como tantos outros, perdera mais essa oportunidade.

Em seu obituário, o jornalista A. de Miranda pela Revista Ilustrada, reconhecia os “problemas de cor” como característicos de um destino menos promissor. Segundo Miranda: “Preconceitos de raça afastaram-no do convívio social. Vivia só esquecido no atelier”. [...] Convencido da improficuidade da luta nesse terreno secundário para arte, Estevão abandonou-o minado pela dor de não ter nascido branco.”

Em virtude de denominações pejorativas e de uma crítica da arte colonizadora de corpos e mentes, poderíamos nós, em tempos de pós-abolição, dispensar categorizações, cujos marcadores etnográficos, cartográficos impedem-nos de alcançar uma arte genuinamente brasileira? Existiria uma arte genuinamente brasileira? Quem estaria mais apto a advogar por uma arte brasileira ou afro-brasileira: Estevão da Silva ou seu colega Antonio Parreiras, que reúne em sua iconografia a pintura de Zumbi dos Palmares? Mais que encerrar artistas e sua contribuição em escaninhos epistêmicos, cabe pensar as consequências que tais categorizações impuseram por meio da estrutura de um pensamento ocidental e ocidentalizante.

A busca por associações imediatas ou contextualizadas são importantes como exercício de enunciação daquilo que se pretende tratar e de como tratar, mas que não se encerram por si só. É importante identificar denominadores comuns, mas não só. A fim de superar essencialismos, o debate sobre as definições compatíveis à produção artística no Brasil, nos auxilia a escapar de armadilhas teóricas, ao mesmo tempo que rivaliza com categorias expectáveis para uma produção protagonizada por seres racializados, aspecto presente em catálogos de exposição e retrospectivas e cada vez mais objeto de crítica e revisão histórica.

A pretensa condensação de uma arte brasileira forjada em uma nação, em um projeto de nação, que se dá de costas aos sobreviventes da diáspora transatlântica, como aponta a artista e curadora Rosana Paulino, nos adverte sobre o poder de nomeação de uma arte, de uma história. Assim, o brasileiro ou a brasilidade, suscitada pela positivação da mestiçagem apenas vem a encobrir
a pacificação do termo sob efeito de uma neutralização no mínimo controversa.

A história da arte brasileira ou branco brasileira como denuncia o historiador Kléber Amâncio, nunca precisou se pautar em marcadores específicos. Adjetivações tais como hegemônica, ocidental e mesmo branca sequer eram contempladas na historiografia. Arte simplesmente era arte. Seja o academicismo do XIX, ou os modernismos do XX, incorremos em um processo de naturalização de imagens e sujeitos, haja vista a noção perpetuada de “gênio artístico”. É sobre a desconstrução desse e outros paradigmas que outras histórias, outras curadorias se inscrevem ao recuperar nomes como Estevão Roberto da Silva.

O Mequetrefe, 1891.