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Centenário | José Saramago: 100 anos de um escritor universal

17 dez 2022

Artigo arquivado em Centenário

Trívia: quem foi o único escritor em língua portuguesa a levar para casa um Nobel de literatura? Ora. Amantes das letras no idioma de Camões não comem bola ao responder: José de Sousa Saramago, diriam, com a altivez e a segurança de quem guarda uma certeza de ferro. Pois cá estamos: no dia 16 de novembro de 2022 o gigante literário português completaria 100 anos de vida – no mesmo ano em que também se comemoraram os centenários de Jack Kerouac, da Semana de Arte Moderna brasileira e do romance Ulysses, de James Joyce. Saramago, de fato, foi um caso à parte: embora em alguns de seus livros tratasse da sociedade portuguesa, boa parte de sua obra vinha sem grandes tintas e temperos locais, capazes de o prender na esfera ibérica. Muitos de seus livros são, afinal, universais. Bastando uma boa tradução, eles vêm imersos em questões sociais e éticas fundamentais, legíveis além de quaisquer barreiras culturais: da China ao México, de Angola à Finlândia. Isso, precisamente, firmou o escritor como um dos mais importantes nomes da literatura mundial. Amado pelo leitor brasileiro, importante que foi e é para as letras do lado de cá do Atlântico, podemos dizer: Saramago, que sempre demonstrou amor recíproco ao Brasil, também é um bocadinho nosso.

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Não à toa, José Saramago foi o autor homenageado na 26º Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em julho de 2022: em pleno ano de bicentenário da Independência do Brasil, foi justamente Portugal o país homenageado no evento, com um espaço finamente dedicado ao autor maior lusitano, falecido em 18 de junho de 2010, vítima de uma leucemia crônica. Boa praça, até o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa deu uma passadinha por lá, levando um lero com escritores tupiniquins cá e acolá. Tamanha honraria, na verdade, já era uma constante na vida de Saramago desde 1980, quando o autor iniciou toda uma rotina de premiações. O Nobel veio só em 1998, três anos depois de láurea pelo Prêmio Camões, o mais expressivo do mundo lusófono. Fora as condecorações em ordens honoríficas portuguesas, por serviços prestados à língua portuguesa: essas Saramago acumulou três.

Apesar de acostumado com os salamaleques do galardão, José Saramago era um sujeito simples, homem do povo. Além de escritor, tradutor, jornalista, dramaturgo, ensaísta e outras funções do mundo das letras, foi também funcionário público e serralheiro mecânico, no início de sua vida profissional. Nascido na pacata Azinhaga do Ribatejo, em Golegã, cidadezinha de menos de 6 mil habitantes famosa por sua Feira Nacional do Cavalo, o pequeno José vinha de uma família de agricultores. Quando o futuro escriba tinha apenas dois anos de idade, em 1924, seus pais se mudaram para Lisboa. Na mudança, uma tragédia: Francisco, irmão de José, veio a falecer em dezembro daquele ano.

Interessado que era pelos estudos e pelo mundo da cultura, anos mais tarde José bem que queria frequentar uma universidade, mas a falta de dinheiro da família não o permitiu fazer os exames necessários: menos mal que conseguiu se formar em uma escola técnica, conseguindo seu primeiro emprego como serralheiro, ofício que ocupou durante dois anos. Somente às noites conseguia tempo para dar uma escapadela para a Biblioteca Municipal Palácio Galveias, na freguesia lisboeta de Nossa Senhora de Fátima. Por esses dias, José Saramago já via que seu caminho passava pelas letras, irremediavelmente.

Casado muy jovem, no ano de 1944, com a artista plástica Ilda Reis, Saramago publicou seu primeiro romance em 1947, quando tinha 25 anos de idade: eis Terra do pecado. No mesmo ano nascia a filha do casal, a futuramente bióloga Violante dos Reis Saramago. Já não era mais serralheiro, por aqueles tempos, mas lotado em uma repartição pública. Para aumentar seus rendimentos, em meados dos anos 1950 José se embrenhava pelo mundo das traduções. Mais tarde, passou a trabalhar na Editorial Estudos Cor, onde ingressou em sua fase de poeta, indo trabalhar, pouco depois, como jornalista, no Diário de Notícias de Lisboa.

Ainda jovem Saramago havia abandonado diversos projetos literários, ficando bom tempo sem publicar. O trabalho na editora era aporrinhante, assim como a Portugal de então, conforme sua visão. A ditadura de António Salazar era a mesma há décadas: nada pior para um marxista inquebrantável, como ele. Sem enxergar futuro melhor, pensou até em emigrar para o Brasil, como o lisboeta Jorge de Sena, com quem se correspondia. Outro correspondente seu, o amigo escritor Jorge Amado parecia sempre trabalhar por um Saramago mais cá do que lá. Mas tudo não passou de uma ideia. Já aí adentrava a década de 1970, momento crucial para o estabelecimento do filho pródigo de Azinhaga no meio cultural português. No ano de 1970, aliás, o mesmo separou-se de Ilda Reis para viver com outra escritora, Isabel da Nóbrega, com quem ficaria até 1986.

Em 1975, precisamente, a situação política em Portugal era incandescente. Um ano antes, em abril, a Revolução dos Cravos, liderada pelo chamado Movimento das Forças Armadas (MFA), composto majoritariamente por oficiais que haviam participado da Guerra Colonial, punha um fim à ditadura do Estado Novo. Salazar, nunca mais. Mas uma nova Constituição só sairia no país em abril de 1976, enquanto setores díspares da sociedade portuguesa, contra e pró revolução, ficavam em polvorosa com o que poderia mudar. Nesse hiato de dois anos, a instabilidade dava suas caras. Setores radicais da esquerda tentavam manter o Processo Revolucionário em Curso (PREC). Saramago estava com eles. Então diretor-adjunto do DN em 1975, em 25 de novembro daquele ano, o intelectual viu o Exército invadir seu jornal, intervindo contra o que considerava excessos da revolução, conforme a mesma assumia colorações socialistas. Ateu, assumida e profundamente anticlerical, membro do Partido Comunista desde 1969 e favorável ao uso de violência para fins revolucionários, Saramago, junto a outros colegas, acabou demitido. Então, dedicou-se à literatura.

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José Saramago, nos anos 1980 e 1990, foi um meteoro. Pois foi nesse intervalo que o autor, já coroa, veio com os romances Levantado do chão (1980), Memorial do convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A jangada de pedra (1986), História do cerco de Lisboa (1989), O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995) e Todos os nomes (1997). Fora sua produção de crônicas, contos, poesia, peças de teatro, crítica, etc. No pós-Camões e pós-Nobel, Saramago ainda publicou A Caverna (2000), O homem duplicado (2002), Ensaio sobre a lucidez (2004), As intermitências da morte (2005), A viagem do elefante (2008) e Caim (2009), além de dois romances póstumos, volumes de memórias (seus Cadernos de Lanzarote) e livros infantis.

De 1995 a 2005, a obra saramaguiana esteve em fase mais “universal”, menos portuguesa, marcada por questionamentos éticos a respeito da condição humana diante da mortalidade, da imensidão da vida, do amor, das instituições religiosas e da sociedade capitalista. O sinônimo perfeito para tal temática é a polêmica: o autor se viu envolto em diatribes sobretudo ao provocar autoridades católicas. E não só em seu país: tornou-se de fato pernona non grata no Vaticano.

Após forte repercussão negativa junto ao público mais conservador de seu O evangelho segundo Jesus Cristo, que ocasionou censura ao livro em Portugal, em 1993 José Saramago passou a viver em uma espécie de exílio voluntário em Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Lanzarote, afinal, foi outro caso de amor do escriba, que adotou a ilha como sua: nada como o dia a dia por lá, indo comprar pão, alimentando as cabras e dando passeios pela praia com os cães Greta, Camões e Pepe. Foi lá, na calmaria do terreno vulcânico, que seu Ensaio sobre a cegueira foi escrito. Na mudança o acompanhou Maria del Pilar del Río, jornalista e tradutora que se casou com Saramago em 1988, ficando ao seu lado até a morte. Atualmente, é ela quem preside a Fundação José Saramago, voltada desde 2007 à defesa dos direitos humanos e à causa ambiental.

A pauta dos direitos humanos sempre foi importante a Saramago, ao ponto de o escritor propor à ONU mais dois direitos fundamentais à Declaração Universal dos Direitos Humanos: o à dissidência e o à heresia. Saramago era assim: nunca restrito à literatura. Fazia parte da Organização dos Intelectuais de Lisboa do Partido Comunista luso, sendo aliás eleito para presidir a Assembleia Municipal de Lisboa nas Eleições autárquicas de 1989. De 1987 a 2009 o autor se candidatou pela Coligação Democrática Unitária ao Parlamento Europeu, nunca chegando lá. Nesse período, sempre dividindo hordas em lovers e haters, colecionou embates não só contra a Igreja Católica e conservadores portugueses, como um todo: sobrou até para o sionismo e o Estado israelense, em 2003. E o que dizer do neoliberalismo privatista? Saramago provocou até os defensores da manutenção da autonomia portuguesa: adepto do iberismo, ressaltava que Portugal só teria a ganhar com uma integração à Espanha numa Frente Ibérica. Ecos de seu amor por Lanzarote, talvez.

Muito já se falou: os posicionamentos de Saramago, por vezes, ofuscam sua obra. No entanto, há como dissocia-los? Seja como for, a perplexidade, para muitos, sempre residiu na seguinte questão: como era possível que o único autor do mundo lusófono a carregar o prestígio (e o peso) do Nobel fosse justamente um ateu da pá virada, sem travas na língua?

Talentos e opiniões à parte, quem já leu José Saramago sabe que sua escrita é a da liberdade. Mesmo na linguagem, propriamente dita: na contramão dos manuais de escrita criativa de hoje em dia, o autor desenvolvia longas, looooongas frases, longos, looooongos períodos, em longos, looooongos parágrafos. Usava pontuação só quando tinha vontade, chocando os mais formalistas, sem falar na oralidade da torrente de seu texto. Seus diálogos normalmente aparecem do nada e sem aviso, no meio dos parágrafos, como se faltasse o “enter” no teclado do escriba (não se sabe se realmente faltava). Eis o chamado fluxo de consciência em sua obra: quando o leitor chega mesmo a ficar confuso se está lendo um pensamento do narrador ou uma fala de personagem. Isso quando não está lendo a si próprio. Onde está a diferença?

Irônica e por vezes pessimista, acima de tudo valorizadora do amor, da ética e do intelecto, fato é que a escrita de Saramago estica e puxa as possibilidades de expressão da língua portuguesa: esticando e puxando, a reboque, a capacidade cognitiva do próprio leitor. O José respeita a sua inteligência, caro leitor. Se há bom pão para saúde e força do pensamento, ele traz o sabor saramaguiano. Alimento necessário contra a cegueira brutal da indiferença. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

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Em 2010, as cinzas de José Saramago foram depositadas na oliveira em frente à Casa dos Bicos, em Lisboa, sede da fundação que leva seu nome. Para ele, o silêncio era o melhor aplauso. “Nada é para sempre, dizemos, mas há momentos que parecem ficar suspensos, pairando sobre o fluir inexorável do tempo”, bem dizia. Parecia se referir tanto à projeção de sua obra quanto de sua personalidade, eternas. E quem em 2020 não se sentiu como um personagem de Ensaio sobre a cegueira, quando situações na obra do autor afloraram na vida real, em meio ao isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19? Saramago, para quem o caos era uma ordem a decifrar, viveu em função de um elogio: o da vida humana. Ela merece ser vivida, respeitosa e radicalmente. Função última da literatura? “Somos todos escritores”, sustentava, “só que alguns escrevem e outros não”.

 

Explore os documentos:

No dia 21 de maio de 1983, Araújo Neto, no Jornal do Brasil, louva José Saramago, “agora também publicado no Brasil”. Autor se tornaria um best-seller no país:

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/97653

 

Leonor Xavier, no JB de 14 de novembro de 1984, faz a crítica de O ano da morte de Ricardo Reis, de Saramago, destacando o personagem central do livro: Fernando Pessoa:

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/130783

 

Em 11 de outubro de 1986, Millôr Fernandes entrevista José Saramago, pelo JB, à maneira das entrevistas do semanário O Pasquim:

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/180316

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/180317

 

Em 6 de dezembro de 1986, Autran Dourado rasga elogios a O ano da morte de Ricardo Reis, no suplemento cultural d’O Estado de S. Paulo. Já em 17 de janeiro de 1987, é a vez de Lênia Márcia Mongelli comentar a A jangada de pedra:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/1514

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/1593

 

Por ocasião de vinda de Saramago ao Brasil em 1986, quando o autor português participou de uma oficina literária em São Paulo, o Correio Braziliense o entrevista, em edição publicada em 21 de dezembro daquele ano. Em 8 de maio de 1988 o jornal tornaria a ouvir o escritor, em entrevista a Rui Nogueira:

http://memoria.bn.br/DocReader/028274_03/92432

http://memoria.bn.br/DocReader/028274_03/112848

 

Em 11 de fevereiro de 1989, o tradutor e professor escocês Giovanni Pontiero publica robusta crítica a’O ano da morte de Ricardo Reis, também no Estadão:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/2854

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/2855

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/2856

 

Em 22 de outubro de 1989, Rui Nogueira, citando Saramago, Jorge Amado e Drummond de Andrade no Correio Braziliense, clama por um Nobel de literatura para a “língua envergonhada”, ou seja, a portuguesa. Seu pedido seria atendido dentro de quase dez anos:

http://memoria.bn.br/DocReader/028274_03/136414

 

Leodegário de Azevedo Filho trata da “Ficção que reinventa a história” no suplemento cultural d’O Estado de S. Paulo, em 2 de março de 1991. Quase um mês depois, Antônio Torres destaca Saramago como um dos autores portugueses mais lidos no Brasil:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/593

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/650

 

Em 26 de outubro de 1991, José Saramago tem todas as atenções da editorial cultural do Estadão, em entrevista a Hamilton dos Santos. Em foco, as polêmicas em torno de seu Evangelho segundo Jesus Cristo:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/896

 

Manchete, em 1998, destaca o Nobel de José Saramago, primeiro autor em língua portuguesa a obter a láurea máxima da literatura mundial:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/306388

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/306389

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/306390

 

Em edição de 19 de dezembro daquele ano, revista volta a abordar o escritor, dessa vez com imagens da premiação. Saramago é mostrado recebendo congratulações do rei Carl Gustaf, da Suécia, e na fotografia oficial do Nobel, junto dos demais galardoados em 1998:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/307320

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/307321

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/307322

 

19 de junho de 2010: “Até o fim, Saramago escreveu”, anuncia o Jornal do Brasil:

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_13/10352

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_13/10353

 

Despedida: em charge de primeira página, o Correio Braziliense anuncia a morte de José Saramago, em 19 de junho de 2010. Em palavras de Nahima Maciel:

http://memoria.bn.br/DocReader/028274_06/16547

http://memoria.bn.br/DocReader/028274_06/16613

 

No Jornal da ABI de agosto de 2010, jornalista e escritor Agassiz Almeida publica carta enviada a Pilar del Río, lamentando o falecimento de seu marido:

http://memoria.bn.br/DocReader/546828/1767

 

Fontes:

BASTAZIN, Vera. Mito e poética na literatura contemporânea: um estudo sobre José Saramago. Cotia: Ateliê Editorial, 2006.

DEL RÍO, Pilar. Os dias de José Saramago em Lanzarote contados por Pilar del Río. Blimunda número 120, 1 de setembro de 2022. Lisboa: Fundação José Saramago. Disponível em: https://blimunda.josesaramago.org/os-dias-de-jose-saramago-em-lanzarote-contados-por-pilar-del-rio/. Acesso em 29 de novembro de 2022.

LEÃO, Liana; VITAL BRAZIL, Érico. Saramagos – 100 anos de Josés. Curitiba: Associação Cultural Solar do Rosário, 2022.

LOPES, Marcos. José Saramago, 100 anos. Jornal da Unicamp número 680, 21 de novembro a 4 de dezembro de 2022. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/680/jose-saramago-100-anos. Acesso em 29 de novembro de 2022.

REIS, Manuel. Crítica necessária a José Saramago: a falsa questão ateísmo-teísmo: a propósito do seu último livro O evangelho segundo Jesus Cristo. Aveiro, Portugal: Estante, 1992.

SANTOS, José Rodrigues. A última entrevista de José Saramago. Rio de Janeiro: Usina de Letras, 2010.

SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa, Portugal: Dom Quixote, 1989.

VIEL, Ricardo. Um Saramago que emigrou para o Brasil. Blimunda número 119, 4 de agosto de 2022. Lisboa: Fundação José Saramago. Disponível em: https://blimunda.josesaramago.org/um-saramago-que-emigrou-para-o-brasil/. Acesso em 29 de novembro de 2022.