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Centenário | Semana de Arte Moderna: uma jovem centenária

14 fev 2022


e marcado com as tags 100 Anos da Semana de 22, Modernismo, São Paulo, Secult, Semana de 22, Semana de Arte Moderna

1922 passou com tudo. Era o ano em que o Brasil vivia o centenário de sua Independência. E era o ano em que tudo parecia estar mudando. Época de modernização em diversos planos, do social ao tecnológico, sem falar na cultura. Só na literatura, foi o ano em que três obras acertaram em cheio a cachola dos leitores mais antenados: Virgina Woolf, T. S. Eliot e James Joyce vieram com "Jacob's room", "The waste land" e "Ulysses", respectivamente. Experimentalismos? Verdadeiros assombros, isso sim, coisa explosiva, nunca antes vista. E, por falar em explosão, cabe a nota: em 1922 sentiam-se ainda os rearranjos políticos e econômicos oriundos da Grande Guerra, por bem e por mal. A nova década parecia prometer. Mas o mundo ainda buscava compreender a envergadura do trauma que a Primeira Guerra Mundial havia deixado. Naturalmente, na ocasião, toda uma quebra de paradigmas jogando mil e um arcaísmos para escanteio, em diferentes áreas, deixou uma marca irreversível na arte, em geral, da música ao teatro, da literatura às artes visuais. Nos trópicos, não seria diferente.

Da sociedade industrial em plena ebulição, ao início do século XX, deu-se o modernismo. Irradiado da Europa, ele se faria sentir de forma particular em cada canto do globo, muitos anos antes da chamada "globalização". E nada mais foi como antes, sobretudo com a passagem daquele insano 1922. Latente no Brasil desde meados da década anterior, a corrente estética moderna já havia parido o "O homem amarelo", quadro emblemático de Anita Malfatti. Na virada para 1920, já contava com a poesia de Manuel Bandeira, com seu livro "Carnaval", que abria alas ao verso livre em terra brasilis, lido em reuniões com Ronald de Carvalho, Olegário Mariano e Mário de Andrade. Já via nascer a primeira versão da "Paulicéia desvairada", do mesmo Mário, assim como já notava a movimentação entre o escritor, junto dos amigos Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, em torno do escultor Victor Brecheret. Já se fazia ouvir em Guiomar Novaes e Heitor Villa-Lobos. E já ressoava em Emiliano Di Cavalcanti, Álvaro Moreyra e Ribeiro Couto, ganhando contornos ainda mais renovados conforme Graça Aranha, Sérgio Milliet e Rubem Borba de Morais voltavam da Europa com fartas bagagens mentais. Desse caldo cozido em fogo alto e múltiplo, pois, explodiu um evento: a Semana de Arte Moderna, ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo, entre 13 e 18 de fevereiro de 1922. Vaiadíssima. Vultuosa. Provocadora. Desconcertante. Ignorada. Vital. Amada e odiada talvez na mesma proporção. E canonizada tempos depois, quando deixou de estar à frente de seu tempo para ser o tempo, afinal. Arte em movimento, pulsante. Como toda arte deve ser.

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Para entendermos a Semana de Arte Moderna de 1922, naturalmente, devemos saber da invenção do modernismo brasileiro e dos contextos social, político e econômico em que o movimento se inseria. Modernistas passaram a ser, na virada das décadas de 1910 e 1920, aqueles que buscavam minar a modorrenta e empoeirada arte tradicional com estéticas mais livres, paridas de mesclas entre expressões populares, previamente pouco valorizadas, e tendências europeias do século XIX, como dadaísmo, futurismo, cubismo e expressionismo. Cá nestes tristes trópicos, cultuavam a genialidade de figuras como Lima Barreto, morto naquele mesmo ano de 1922 na pindaíba e visto como um dos precursores da vibração que a cultura deveria assumir e cristalizar. Pois o modernismo buscava um "triplo D" que nada tinha a ver com discagens diretas à distância (se bem que, num plano figurado, talvez até tivessem, mas deixemos analogias toscas de lado) - queria mesmo era democratizar, desoficializar e dessacralizar a arte. Que é uma forma bonita de dizer que queria aproximá-la do cidadão comum, do povão, que deveria ser capaz de apreciá-la e, também, produzi-la. Embora bebesse de irônicas fontes vanguardistas do velho mundo, o modernismo no Brasil buscava, curiosamente, a constituição de uma identidade genuinamente nacional, distante de moldes estrangeiros e da dominação cultural que pouco dialogava com a cultura brasileira.

Nessa toada, na música, temas folclóricos sabidos de cor e salteado em cada rincão do Brasil, por parte do operário, da costureira e do boiadeiro, deveriam brotar bem no meio das partituras eruditas. Nas artes visuais, mesmo que não em traços figurativos, trabalhadores urbanos, lavadeiras de riacho, cortadores de cana, negros, indígenas ou imigrantes, pessoas comuns, em linhas que elevavam à categoria de povo a gigantesca massa colonizada brasileira, seriam justamente fontes de expressão. O mesmo deveria se passar com as letras. Poemas modernistas, por exemplo, deveriam mandar a métrica e a rima rígida para as cucuias, assim como a prosa passaria a ser oralizada, a imitar a fala das ruas, o léxico dos iletrados, sem correções ou rigidez de sintaxe - narrativas assim hoje são comuns, na época, não.

A sedimentação dessa nova concepção, naturalmente, se deu num plano específico. No início da década de 1920 a fina flor das artes nacionais buscava romper com a mesmice estética do academicismo até então reinante cá por estas bandas. Em plena República Velha, marcada pelo ferro e pelo fogo (e pela chibata e pelo café) das oligarquias rurais, que davam as cartas Brasil afora ainda como em tempos imperiais, tímidos processos de pré-industrialização começavam a pipocar aqui e ali, refletindo em maiores concentrações no meio urbano. O tenentismo, a chegada de imigrantes para substituição do trabalho escravo (extinto, por sua vez, apenas no papel) sobretudo na economia cafeeira, a crescente urbanização e certa organização das classes trabalhadoras passaram a dar as caras. O mundo mudava e o Brasil fazia parte do mundo, apesar de tudo. No caldeirão cultural que o enorme país passou a representar, a cultura popular deu em chamar a atenção das elites.

Como a sociedade e a política refletem na arte, e vice versa, artistas e intelectuais brasileiros, egressos das elites cosmopolitas, resolveram estabelecer padrões mais livres para a produção artística, que, não raro, devia beber de fontes do "mundo real": o louco, contraditório, belo, feio, simples, complexo, exuberante, feliz, triste, pio, profano, colorido e cinzento Brasil. E também o povo brasileiro, em suas mazelas, riquezas e demais particularidades. Nesse novo e radical anseio por expressar a realidade tupiniquim de então, e a inserção dos problemas e das virtudes nacionais na contemporaneidade, o engajamento político não poderia ficar de fora desse processo de renovação - por isso mesmo, de dentro do modernismo saíram tanto figuras ligadas ao comunismo quanto ao integralismo. Mas isso já é outra história. Que no entanto é esta mesma história. Pois o conceito de "moderno", é sabido, nunca esteve restrito aos cercados da cultura.

Embora muitos fossem os artistas brasileiros que já estavam flertando firme com as ideias de revitalização expostas acima nos anos de 1910, há que se considerar a artista visual Anita Malfatti como a responsável pela primeira manifestação legitimamente modernista no Brasil. Tudo porque, em 12 de dezembro de 1917, montou uma exposição nas lojas Mappin, na capital paulista. Sua projeção foi pasto e gáudio tanto para elogios dos antenados nas correntes estéticas de renovação, como Di Cavalcanti, quanto para os tradicionalistas que consideravam que aquilo não era arte de verdade, como Monteiro Lobato. O pai da boneca Emília não via graça nenhuma no modernismo e atacou Malfatti com virulência nas páginas do sempre taciturno jornal O Estado de S. Paulo, gerando um verdadeiro rebu: diversos modernistas foram à imprensa defender a pintora.

Se o episódio envolvendo Monteiro Lobato e Anita Malfatti colocou a questão da arte moderna à baila, resta saber: naquele mesmo 1917 a pintora não estava sozinha em suas quebras de paradigma. Manuel Bandeira tinha lançado naquele ano a obra "A cinza das horas", considerado um marco no modernismo literário (anterior ao livro "Carnaval", de 1921, verdadeira revolução em verso livre), assim como Menotti del Picchia havia publicado os poemas "Moisés" e "Juca Mulato", também importantes na fundação moderna. Em seguida à polêmica, Mário e Oswald de Andrade, que não eram parentes, publicaram em diversos órgãos de imprensa artigos sobre a corrente futurista, nascida do italiano Filippo Marinetti, que os encantava, muito por ser um tapa na cara de manifestações passadistas. Mário e Oswald martelavam suas ideias em diversos periódicos, dos jornais de grande circulação às revistas culturais de público dirigido, a exemplo da célebre Klaxon, a publicação baluarte do modernismo tupi. Não à toa o título da revista fizesse referência à forma como se chamava, à época, a buzina dos automóveis, essas estranhas e ferozes máquinas urbanas que soam para que saiamos de sua frente. Membros das elites intelectuais, não era de admirar que, cedo ou tarde, nomes como Oswald, Mário, Bandeira e Malfatti não cativassem o gosto das elites, em geral, que dava, afinal, na contrução do gosto, o tom sobre o que era bom e o que era ruim. Só não abria a cabeça quem não queria.

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E quanto à Semana de 22, em si? Alguns a julgam um detalhe na história da cultura no Brasil, importante, sim, mas nem tanto, afinal. Outros a encaram como uma verdadeira cereja do bolo modernista, um marco agregador sem o qual as gerações intelectuais e artísticas seguintes não seriam as mesmas. Tenhamos fleuma: o modernismo é tão amplo que pode admitir ambas as leituras. Sejamos, aliás, pós-mods, à Caetano Veloso: a Semana de Arte Moderna foi tudo isso, sim, e muito mais, e também não foi nada disso. Vamos a ela.

Apesar de o escritor ser considerado um expoente do modernismo no Brasil, a Semana de Arte Moderna não foi invenção de Mário de Andrade. Foi, sim, aparentemente, de Di Cavalcanti, que deu a letra a Paulo Prado, o homem do dinheiro, que sempre deve existir para que qualquer projeto saia do papel ou da cachola. Seguindo o histórico de importação de modelos estrangeiros para a cultura nacional, um evento como esse seria, nas palavras do pintor, na autobiografia "Viagem da minha vida - testamento da alvorada", uma versão brazuca da Semana de Deauville, na França, devidamente "repleta de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana". Assim sendo, Monteiro Lobato haveria que se retirar para o Sítio do Pica Pau Amarelo, na ocasião, pois o mecenas comprou a ideia.

Através de Paulo Prado, no dia 13 de fevereiro de 1922, uma segunda-feira, deu-se a abertura da Semana de Arte Moderna, no saguão do Teatro Municipal de São Paulo. Cerca de 100 obras de arte visuais ficaram em exposição, ali, até o dia 17. Apenas nos dias 13, 15 e 17 apresentações foram feitas, nos palcos. Durante toda a semana o um tanto austero e clássico ambiente do teatro se viu recheado de pinturas e esculturas que, de acordo com a expectativa de Di Cavalcanti e de seus colegas, realmente causaram embaraço ao público, que não deixava de ser a elite de sempre, histórica frequentadora dos círculos culturais. Frente a trabalhos de Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita, Di Cavalcanti, Harberg, Brecheret, Ferrignac e Antonio Moya, muitos ficavam ultrajados, como aqueles sujeitos que ainda hoje vão a exposições de arte contemporânea e não sabem se os extintores de incêndio e os avisos de saída de emergência são obras de arte ou não. Mas, assim como um acidente ou um cadáver estirado no meio da rua fazem a alegria da curiosidade popular, a coisa modernista não deixava de ser uma novidade tremenda.

Ponha-se bafafá. Na sessão de abertura, no dia 13, um auditório lotado ouviu perplexo a leitura de “A emoção estética da arte moderna” pelo gogó de seu próprio autor, o escritor e diplomata José Pereira da Graça Aranha. Ali, parte do público viu o que a proposta modernista deixava clara como água: o cadáver estendido no meio da rua era o da arte cristalizada no passado, cheia de teias de aranha nos rococós. E diga-se: Graça Aranha era um respeitável senhor, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. No fim, foi tão modernista que, dois anos depois da leitura da palestra, se desligou da instituição maior das letras nacionais, pois, sensato, assumiu que era incoerente estar ao mesmo tempo na Academia e no modernismo. Ecos assim, da Semana de 22, durariam décadas.

Na sessão seguinte, do dia 15 de fevereiro, Guiomar Novais foi ovacionada ao mesclar, no piano, clássicos consagrados pelo público com peças modernas. Já Menotti Del Picchia não passou incólume: sua conferência sobre novos escritores foi recebida com vaias, urros, zurros, grunhidos e cacarejos (é sério). Não foi a mesma sorte que a de Guiomar, mas o que é o azar, se não a sorte, só que ao contrário? A leitura, afinal, cumpriu com a meta de desestabilizar os cânones. Mesclando os sonoros arroubos dos prós e dos contras, o tumulto entrou num crescendo que impossibilitou Ronald de Carvalho de recitar o poema "Os sapos", de Manuel Bandeira. Tais versos, hoje, são para lá de reconhecidos como críticos ao parnasianismo. Se tivesse conseguido ler, possivelmente o Teatro Municipal teria vindo abaixo.

Apesar de hoje em dia ser muito mais conhecido que Giomar Novais, Heitor Villa-Lobos subiu ao palco do Municipal paulistano no dia 17 de fevereiro com a plateia já um tanto menor. Ali se deu sua célebre participação, regendo de casaca e calçando sapato num pé, chinelo no outro. Uma simbólica junção do popular com o erudito que foi lida pelo público como profundo desrespeito ao lugar, às audiências e à sagrada e antiga arte musical, afinal. Schopenhauer pode até ter revirado no túmulo, na ocasião, mas, passando por cima das vaias, Villa-Lobos mandou ver no concerto, até o fim. Às urtigas com os descontentes. No fim, acharam que a música até que não estava nada mal. Era a sessão de encerramento mesmo. Tudo logo voltaria ao normal.

As três sessões da Semana de Arte Moderna, no fim das contas, causaram um rebuliço passageiro, junto ao público elitizado paulistano. A imprensa, aliás, não se dedicou muito na cobertura ao evento, coisa que ajudou a reforçar a ideia posterior de que ele não teria sido nenhum marco. No entanto, conforme os integrantes do primeiro modernismo no Brasil prosseguiam com seu projeto estético, que literalmente transbordava de sua cumbuca, o que se passou entre 13 e 17 de fevereiro de 1922 veio ganhando a devida importância na história cultural do país: em sintonia com os acontecimentos políticos do momento, que prenunciavam o fim da República Velha, trazer ao centro da discussão o que vinha a ser uma arte legitimamente brasileira, popular e democrática, não poderia deixar de ser algo problemático, evocando paixões, rejeições, vivas e descontentamentos. Foi depois do evento, ainda em 1922, que Oswald de Andrade publicou sua "Paulicéia desvairada", em cujo prefácio levantava a bola da discussão. E foi só no ano seguinte que a pintora paulista Tarsila do Amaral, que estava na Europa enquanto a Semana de 22 sacudia São Paulo, se uniu tanto ao modernismo quanto a Andrade. Como tais eventos teriam se desdobrado sem a chocante semana idealizada por Di Cavalcanti?

Herdeira de fazendas de café a perder de vista, Tarsila foi uma figura determinante na virada de página do modernismo pós-Semana. Ela deu um novo colorido à sua produção visual quando voltou para casa, iniciando uma estética que definiu como "estilo pau Brasil". Foi a deixa perfeita. A efervescência da dupla Tarsila-Oswald, que por um tempo virou casal, deu à luz o "Manifesto Pau Brasil", publicado por ele no jornal carioca Correio da Manhã, em 1924, onde misturavam-se concepções artísticas da pintora com vivências da chamada Caravana Modernista, uma incursão do escritor, junto de Mário de Andrade e Blaise Cendrars, pelo interior de Minas Gerais, onde travaram contato com Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e Aníbal de Mendonça. Com Tarsila e Drummond, o modernismo dos trópicos não poderia ficar na mesma. Dava um passo além.

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Cá neste ponto de nossa história, o modernismo engatou a segunda e foi-se embora. Por aí afora, a perder de vista, sem parar, e por aqui também, à quase onipresença. É que seus resultados, sentidos de início sobretudo na literatura, na música, na pintura e na escultura sacudiram a arte brasileira de tal forma que a corrente estética acabou se desdobrando em três fases diferentes, ao longo das décadas seguintes à de 1920, respingando, tardiamente, mesmo na arquitetura e no cinema nacionais. A verdade é que, após a Semana de 22, as manifestações modernas se multiplicaram mesmo em meios um tanto distantes de seus idealizadores no Brasil, de forma autônoma, mais ou menos conscientemente, e de maneira distinta para cada meio de expressão e para cada individualidade autoral.

Se a fase inicial do modernismo se deu, via de regra, em torno da tríade formada entre Manuel Bandeira, Oswald e Mário de Andrade, vistos como os principais propagandistas do movimento no Brasil, solidificando-o em meio a embates com o parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica, valendo-se de publicações na imprensa cultural, como as revistas Klaxon (1922) e Estética (1924), o segundo momento do grupo inovador se deu com a adesão de novos nomes ao seu corpo artístico e intelectual. Tarsila do Amaral era um dos grandes nomes do novo momento nas artes visuais, firmada no Movimento Pau Brasil, na junção da pintura com a literatura de Oswald de Andrade. Só nas letras, entretanto, nomes como Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo vinham se firmando dentro do modernismo, em prosas realistas, não raro de cunhos sociais, ao longo da década de 1930. Já não eram exatamente de uma geração preocupada em firmar identidades nacionais.

Embora já nem todo modernista fosse necessariamente adepto do Movimento Pau Brasil, nos anos de 1930, cabe ressaltar: alguns passaram a valorizar uma estética menos "nacional", como um todo, e mais localizada, regional, em um grupo à parte, com manifesto próprio elaborado em 1926. Outros ainda, inclusive, por razões ideológicas chegaram a articular uma franca dissidência em relação a Oswald, Tarsila e os regionalistas. Foi o caso do Movimento Verde-Amarelo, uma reação ao Pau Brasil, a quem acusava de afrancesado. Capitaneado por Menotti del Picchia, Plínio Salgado, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo, o Verde-Amarelo valorizava o nacionalismo e o patriotismo em linhas primitivistas, ufanistas e racistas, inspirado nos desdobramentos que o regime fascista de Benito Mussolini vinha obtendo na Itália. Até que ponto o Brasil pós-Revolução de 1930 poderia se beneficiar de doutrinas semelhantes?, pensavam. Descambando na corrente política análoga no Brasil, o integralismo, o Movimento Verde-Amarelo passou a se chamar Escola da Anta (ou Grupo Anta) em 1927, cerca de um ano antes de Oswald, dessa vez aliado a Raul Bopp, lançar novo movimento, de reação à reação: o manifesto Antropofágico, com o devido suporte da Revista de Antropofagia. Ali, o autor firmava sua tese: tal como certos povos originários faziam com certos europeus por cá chegados, a cultura brasileira devia devorar os estrangeirismos, digeri-los e devolvê-los abrasileirados. Rixas no calor da política sobravam: assim como Di Cavalcanti, Oswald de Andrade fora filiado ao Partido Comunista brasileiro de 1931 a 1945. O mesmo se deu com Patrícia Galvão, a Pagu, outra artista modernista que, casada com Oswald até 1934, deu sua tônica particular à corrente estética, em franco choque contra a turma do "anauê".

Enquanto Oswald se batia com a antas integralistas, Mário de Andrade trabalhava em outras frentes. Em 1928, mesmo ano em que Tarsila pintava o "Abaporu" ("o homem de come", em tupi-guarani), lançou um marco literário - "Macunaíma, o heroi sem nenhum caráter". Estabelecia farta correspondência com artistas e intelectuais de diferentes idades, mentalidades e origens, influenciando meio mundo nesses trololós. Da mesma forma, Villa-Lobos, ao lançar seus "Choros", fez a cabeça de incontáveis cancioneiros. Num casamento com o universo da música e da antropologia, Mário, aliás, chegou a se embrenhar pelo Nordeste com finalidades documentais, recolhendo anotações sobre a música popular e as manifestações folclóricas locais, iniciativa inédita, até então. Longe dos sertões tanto em termos geográficos quanto de expressão artística, Lúcio Costa, em 1931, assumia a direção da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, abrindo as portas da instituição ao modernismo, na ocasião - não muito depois o franco-suíço Le Corbusier apresentaria aos rapazotes Oscar Niemeyer e Afonso Reidy as fundamentações da nova arquitetura brasileira. Por aqueles dias a tradição do cinema nacional já havia dado seus primeiros passos, pelas mãos de Mário Peixoto e Humberto Mauro. No teatro tínhamos Álvaro Moreira. Sementes fartas e quase inesperadas, as da Semana de 22. Espalhadas, sobretudo, por uma novidade que revolucionou a canção popular, o jornalismo e a dramaturgia em áudio no Brasil: o rádio.

Afinados que eram com ideias de progresso e renovação, modernistas de diferentes áreas e saberes passaram a fazer parte da máquina estatal no governo de Getúlio Vargas, pós-Revolução de 1930 - muitos sairiam de lá, aliás, sete anos depois, quando o caudilho de São Borja aplicou um golpe na Constituição e deu início ao autoritário Estado Novo. Seja como for, Heitor Villa-Lobos, pela década de 1930, andava a introduzir o canto orfeônico nas escolas públicas da capital nacional, que recebia cada vez mais escritores de outras partes do Brasil, todos com alguma dose modernista. Mário, Lúcio e Heitor produziam como loucos, a exemplo de outros modernistas: não foi à toa que deixaram marcas profundas, inclusive no campo institucional. A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (o SPHAN, hoje conhecido como um instituto, o IPHAN) em 1937 foi consequência direta do modernismo no país. A ideia de que o Estado deveria preservar a arquitetura e as obras de arte brasileiras do período colonial partiu, justamente, do moderno Mário. Lógico: para construir o futuro, há que entender o passado. Até que ponto ambos são distintos?

De certa forma, as consequências do modernismo foram atingindo pontos dialógicos com a Semana de 22, mas que se avizinham a ela na mesma proporção em que Vênus está ao lado da Terra. Na literatura, uma terceira fase do movimento ainda se deu, em rasgos mais reflexivos e existenciais, em torno de Clarice Lispector, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, figuras com brilhos à parte, poucas vezes colocadas ao lado de Mário e Oswald. E que dizer da Bossa Nova, que bebeu de fontes modernas? Assim como o Concretismo e o Neoconcretismo dos anos 1950, o Tropicalismo, a Lira Paulistana, a Geração Mimeógrafo de poesia marginal, a contracultura, o Manguebeat. A lista de influenciados do modernismo é longa - e, afinal, já nem sabemos mais dizer quem não é, de certa forma, modernista. Ou quem ainda é, pois assim que todos passam a ser, ninguém mais é. Talvez ninguém mais seja, nem não seja. Mas, verdade seja dita: praticamente tudo na produção cultural do Brasil de hoje, basicamente, de alguma forma dialoga com o modernismo - e o que não se enquadra nisso parece ter camadas espessas de poeira por cima. É por isso que a Semana de 22, afinal, conserva seu frescor, renovado a miúdo pelos princípios que regeram sua concepção: fundamentalmente crítica, consciente e emancipadora. Que dizer mesmo da pedagogia que não é assim? Como disse o professor, poeta e crítico literário Ítalo Moriconi em entrevista ao Correio Braziliense, em 5 de fevereiro de 2022, "Tudo que se segue em matéria de estudos históricos, sociologia, antropologia e ciências humanas em geral, dos anos 1940 aos 1970, é intelectualmente tributário do modernismo". Pois ele é uma questão de postura reflexiva frente à vida. De não subserviência ao preestabelecido. De se nutrir daquilo que realmente importa. Se, em comparação a outros países, o Brasil é uma jovem nação bicentenária, nada mais justo seu casamento com a jovem centenária Semana de 22.

Explore os documentos:

Klaxon, de 1922: a revista porta-voz da Semana de Arte Moderna e do modernismo brasileiro, por excelência:

http://memoria.bn.br/DocReader/217417/1

http://memoria.bn.br/DocReader/217417/4


Di Cavalcanti: o idealizador da Semana de Arte Moderna ilustra Klaxon número 2.


No Correio Paulistano de 13 de fevereiro de 1922, um anúncio, perdido em meio aos demais: a Semana de Arte Moderna começava naquele dia.


No mesmo Correio Paulistano, mas de 18 de fevereiro, a crônica social assinada por "Helios" comentava a "vitória" da Semana de Arte Moderna em meio aos cacarejos de seu público.


"Chopin era um tocador de berimbau": charge de Belmonte, na revista carioca D. Quixote, de 1922, ironiza a Semana de Arte Moderna.


Dirigida por Prudente de Morais Neto e Sérgio Buarque de Holanda, a revista Estética deu as caras no Rio de Janeiro em 1924, para embalar a segunda onda modernista.


Terra Roxa, de 1926: outra revista sucessora de Klaxon.


A revista Verde, do grupo homônimo de artistas de Cataguases (MG), dava mostras do modernismo em cores regionais, a partir de 1927.


Heitor Villa-Lobos, um "'az' do modernismo", segundo a revista cultural Movimento, de 1929.


Desde 1947, segundo a revista carioca Cruzeiro, a Bahia vinha passando por uma revolução modernista em suas artes visuais.


Paulo Mendes Campos, na revista Manchete, em 1957, faz uma releitura da Semana de Arte Moderna de 1922: "Malucos em 22, clássicos em 57".


Aos 40 anos da Semana de 22, em 1962, a "Rima de nosso tempo", segundo a revista Manchete, destacava gerações distintas de modernistas: de Manuel Bandeira a Cecília Meireles:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/44309

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/44310


Em 24 de outubro de 1964, o suplemento cultural do Correio da Manhã publica um especial sobre os "40 anos do Manifesto Pau Brasil e 10 anos da morte de Oswald de Andrade". Ao lado de texto de abertura de Fuad Atala (um assíduo pesquisador da Coordenadoria de Publicações Seriadas da Biblioteca Nacional, aliás), replica-se, na íntegra, o manifesto de 1924.


Na Manchete, em 1965, Lêdo Ivo conta um pouco sobre a "Geração de 45" na literatura: escritores da terceira fase do modernismo:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/63492

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/63493


Um pouco mais de Oswald de Andrade no Correio da Manhã de 25 de julho de 1968.


Reportagem de Homero Homem para a Manchete, em 1968, coloca "modernistas de 22" para julgar os hippies, a Pop Art e a minisaia:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/86303

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/86304


Na Manchete, em 1971, Di Cavalcanti rememora a Semana de 22:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/116462

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/116463


Por fim, Manchete, em 1972, aborda os 50 anos da Semana de 1922, dando destaque a peça teatral então em cartaz no Teatro Municipal de São Paulo. Edição trata não só da "redescoberta" do primeiro modernismo nos anos 1960, mas da trajetória de seus canonizados expoentes:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/125118

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/125119

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/125121

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/125122