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Cinema | O Cantor de Jazz, primeiro filme falado da história, tem pré-estreia em Nova Iorque - 06 de outubro de 1927

06 out 2021

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Jakie Rabinowitz, um jovem cantor, tenta a sorte em bares musicais para desgosto de seu pai,um cantor litúrgicoque deposita em seu filho único a preservação da tradição judaica, destinando a ele a missão de prestar seu talento na sinagoga da comunidade. O descompasso entre a herança familiar e a busca pelo estrelato na Broadway é a tônica para “O cantor de jazz”, produção cinematográfica norte-americana lançada em 1927. O enredo de percalços, conciliação e superação vividos pelo mocinho ou mocinha da vez se tornariam a marca das produções hollywoodianas e com “O cantor de jazz” não poderia ser diferente. O roteiro é temperado por um misto de conflitos entre o desejo de autorrealização do cantor e o sentimento de resiliência frente ao pai autoritário, melodrama perfeito para o desfecho redentor.

Interpretado pelo celebrado Al Jolson, a película reúne ingredientes suficientes para manter “O cantor de jazz” na lista dos filmes mais citados da história do cinema. Primeiro por se tratar de um filme “talkie”, uma novidade para a indústria cinematográfica ao sincronizar som e imagem gerados na própria fita e, por lançar o gênero musical como grande aposta do cinema americano.Em 1998, o American Film Institute classificou como um dos melhores filmes norte-americanos de todos os tempos. Mas, não é só de glórias que vive a obra dirigida por Alan Crosland para o estúdio da Warner Bros. O filme também é marcado por polêmicas, feridas abertas, que vez ou outra são reeditadas pelos meios de comunicação.

A sinopse que mistura dados biográficos da trajetória de Al Jolson, lança mão de um recurso no mínimo controverso. O uso de maquiagem de cortiça queimada, popularmente conhecida por “black face” daria ao esperançoso “Jackie” a habilidade artística necessária para dar vazão a sua persona jazzística. Curiosamente, de acordo com o historiador e crítico de jazz Ted Gioia, o próprio Jolson teria apelado a maquiagemapós muito lutar para ter sucesso em espetáculos vaudeville. A caracterização imprimiria força e ousadia para sua performance.

Contrariamente a nobre justificativa de Jolson, a história revela outro ponto de vista se comparada a um passado não muito distante. Em meados do XIX, as apresentações de menestréis no norte dos E.U.A. tinham como prática enegrecer o rosto das pessoas, fazendo alusão ao comportamento dos negros, a maioria escravizados. Caricaturas preguiçosas, ignorantes e infantilizadas faziam parte do repertório.Thomas Darthmouth Rice seria o primeiro a representar um sorridente escravo negro, o personagem Jim Crow, que daria nome anos depois a lei de segregação racial que assolou a comunidade afro-americana até os anos 1960, período de consolidação dos movimentos pelos direitos civis.

No cinema, a visão estereotipada sobre a população negra não era novidade, basta recordar a narrativa empregada em “The Birth of Nation” ou “O Nascimento de uma nação” produção de 1915 que remonta os antecedentes e os desdobramentos da guerra de secessão (1861-1865). O drama épico conforma a condição animalesca, sexualizada e exótica historicamente atribuídas aos afrodescendentes.

Cabe ressaltar de que não se tratava de uma prática exclusivamente da cultura americana. Pintar o rosto de preto para imitar e rir dos negros e escravos data, ao que se sabe, da Europa medieval. “Comediants” usavam máscaras negras para representar comportamentos grosseiros e feitiçarias.

Retomar o cantor de jazz a luz dos tempos atuais poderá configurar para alguns críticos interpretações pouco procedentes, posto que a prática “black face” era comumente aceita. As escusas sob a alegação dos “outros tempos” costuma ser o mote para absolver e considerar os méritos da produção. De fato, é necessário recorrer ao contexto da época para não cair em conclusões antecipadas. Mas há de se ter em mente a persistência de um continuum quando observamos aspectos da cultura negra tomadas de empréstimo pelas culturas dominantes, neste particular pelo mainstream de Hollywood.

A devoção genuína de Jolson, encarnando o seu cantor de jazz, ao mesmo tempo situava o estilo musical em uma dimensão exótica, dada a curiosidade trazida pelo ritmo sincopado e creditava envergadura original dada a positiva repercussão da performance de Jolson entre público e meio artístico. Esse fenômeno de tradução das culturas minoritárias, da apropriação cultural, ainda que tais categorias sequer fossem conhecidas e admitidas, se encontravam latentes, porém travestidas sob o signo da idealização, adaptação ou mesmo homenagem. Essa tendência, se pudermos colocar nesses termos, será notada ao longo de toda produção cinematográfica do século XX. A reencenação da obra com adaptações em 1952 (sem black face), uma versão rock com Neil Diamond em 1980 (com black face atenuado), além de uma produção para TV estrelada por Jerry Lewisdenotam pretensa isenção quanto as consequências negativas suscitadas por tal prática.

Voltando aos méritos do filme, oelenco composto por May McAvoy, Warner Oland, Eugenie Besserer, Richard Tucker, Robert Gordon, Otto Lederer e Joseff Rosenblattcompartilha atuação consistente, salvo avaliação sustentada pelo desempenho irregular de Jolson, cujo destaque se daria nas sequências de canto. Os créditos da trama se concentram mais nas qualidades técnicas, na trilha sonora de Bernard Herrmann, e na edição. Apesar de não ser integralmente falado, parte das cenas contam com diálogos reproduzidos aos moldes do cinema mudo, a escolha do gênero musical e projeção sonora sincronizada repercutiu em inteligente estratégia para a sensibilização do público. Os conflitos entre a tradição manifesta na ortodoxia judaica e a inovação soprada pelos ventos da modernidade novaiorquina metaforiza o cinema falado como porta de anunciação do progresso e importante divisor de águas.

Frou-Frou, 1929.