BNDigital

Filosofia | Fides et Ratio: 23 anos depois

14 set 2021

Artigo arquivado em Filosofia
e marcado com as tags Academia Brasileira de Letras, Antônio Olinto, Carlos Heitor Cony, Filosofia, Tarcísio Padilha

Há exatos 23 anos, foi publicada a Encíclica “Fides et Ratio”, do Papa João Paulo II, que trata das relações entre fé e razão na busca da verdade. Foi uma resposta ao clima de opinião cultural e filosófico que nega a capacidade da razão humana de conhecer a verdade e reduz a racionalidade a coisa simplesmente instrumental, utilitarista, funcional e sociológica.

O documento descreve a situação não só da filosofia, mas também da cultura hodierna em geral. Ela caracteriza este nosso tempo, resultado de um exacerbado racionalismo do homem autossuficiente, pela tendência ao agnosticismo, relativismo e ceticismo, onde a "legítima pluralidade de oposição cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto atual, de desconfiança da verdade (...) Nesse horizonte, tudo fica reduzido à mera opinião (...) Em suma, esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia respostas a tais questões" (Fides et Ratio, 5,3).

Seu texto repousa sobre a tese de que não só a fé cristã e a razão não se opõem, mas, conforme afirma o Papa, ao iniciar sua encíclica, promulgada em 14 de setembro de 1998, “a Fé e a Razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade."

O próprio Jornal do Brasil, através do editorial “Fé e Razão”, manifestou-se a respeito do documento papal: "Fé e razão se reúnem agora para insuflar confiança ao homem nos tempos modernos, a partir da Revelação como conhecimento dado por Deus ao homem. O conhecimento pela fé restaura o sentido universal da verdade eterna, portanto imutável. João Paulo II assinala que "pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade", numa busca que não se satisfaz com aparências, mas com a verdade capaz de explicar o próprio sentido da vida que o homem procura ao longo da sua existência terrena." (Ver aqui)

Para o acadêmico Antônio Olinto, a encíclica trouxe o problema da inquietação até o limiar do novo milênio: "O significado maior dessa nova encíclica, inspirada no enlace fé-razão, pode ser resumido nas próprias palavras que nos vêm de Roma como básicas da sua mensagem: "No coração de cada homem existem algumas questões que estão para além de qualquer diferença de cultura, nacionalidade, raça ou religião" Um dos propósitos do avanço do homem é "caminhar em busca da verdade". Nessa caminhada, é preciso "levar os homens à descoberta de sua capacidade de conhecer a verdade e do seu anseio pelo sentido último e definitivo da existência." Como elemento essencial desse combate inquieto e incessante, posta-se a liberdade, e a encíclica de agora proclama: "Verdade e liberdade ou caminham juntas ou juntas miseravelmente perecem." [...] "Fides et Ratio", unindo fé e razão, surge como um documento de análise necessária e inadiável." (Ver Antônio Olindo, Tempo de inquietação)

Na ocasião, Carlos Heitor Cony destacou a importância histórica da encíclica: "Feita no limiar do terceiro milênio, ela retoma de forma surpreendente o fim último da filosofia tal como foi entendida pelos gregos: a ciência de todas as coisas com suas últimas causas comparadas à luz da razão." Para Cony, o papa "estava devendo à humanidade um documento que transcendesse o pastoral e penetrasse no núcleo de sua formação de "scholar". (Ver Carlos Heitor Cony, Fé e Razão)

O Professor Tarcísio Padilha, sucessor de Mário Palmério na ABL, ao comentar o documento, ressaltou que a "razão tende à verdade como seu fim natural e assim busca incansavelmente os vestígios de verdade, para melhor se aproximar da verdade a ser atingida neste itinerário marcado pela perfectibilidade." Todavia, diz ele, "a era atual se vem caracterizando por uma visão de mundo tisnada de arbítrio e de pragmatismo. O homem volta as costas à verdade para se refugiar no comodismo da opinião." Com a encíclica, João Paulo II "atesta sua visão global da cultura e a abertura para a transcendência que espreita os passos vacilantes do ser humano em sua caminhada a um destino que ultrapassa os meros limites da temporalidade." (Ver Tarcísio Padilha, A nova encíclica)

A encíclica também foi tema de debate na Academia Brasileira de Letras, com a participação de acadêmicos e filósofos. Foi discutida a relação entre fé e razão, a partir do que disse o Papa: "Está se alastrando no mundo uma fé com base no sentimento." (Ver aqui)

Para Fábio P. Doyle, escritor e membro da Academia Mineira de Letras, o tema da encíclica não poderia ter sido mais oportuno: "'Fides et Ratio'. É o que mais carece a humanidade, neste fim de milênio. Sem fé e sem razão, caminha a humanidade perdida em todos os caminhos que se abriram para o homem do século 20 através das conquistas científicas e dos avanços tecnológicos. As facilidades que se oferecem para os que apenas pensam em usufruí-las afastaram a civilização da busca da natureza, da razão e do sentido da vida. (...) Desenraizado, o homem vive ansiosamente pelo momento que passa, indiferente ao que passa, de seu comportamento afetar o equilíbrio e a paz dos que lhe estão próximos. "Quem sou eu, de onde venho, para onde vou? Por que existe o mal, o que é o bem, o que se esconde no vazio do espaço sem fim, por que vivemos e para onde vamos? São muitas as perguntas que podem ser feitas, e a encíclica "Fides et Ratio" de João Paulo II as propõem, e tenta motivar o homem a procurar respostas." (Ver Fábio P. Doyle, Fé e razão, a marca do papa pelos séculos afora)

Na Carta Encíclica, o Papa coloca Santo Tomás de Aquino como paradigma de união harmoniosa entre a fé e a razão e o apresenta como um autêntico modelo para quantos buscam a verdade. Nenhum dos escolásticos medievais foi mais atento do que ele ao diálogo da Razāo com a Fé, diz o texto da encíclica. Cabe aqui lembrar que, em 1974, a Biblioteca Nacional realizou a exposição "Santo Tomás de Aquino" para celebrar o VII centenário de sua morte. (Ver aqui: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon1285804.pdf)

O documento mereceu elogios de religiosos, filósofos, teólogos e homens de ciência. Por sua vez, o físico Luiz Pinguelli Rosa (COPPE/UFRJ) acredita que o diálogo proposto pelo papa nunca deixou de existir, pelo menos a nível individual. "Nada impede que um cientista acredite em Deus", afirma, embora ressalve que historicamente a ciência assumiu o papel antes ocupado pela religião como instrumento para explicar o mundo. Todavia, para Pinguelli, a ciência não é todo-poderosa. "Sobre o que existia antes do Big Bang, por exemplo, ela não sabe nada." (Ver aqui)

Explore o documento:

Síntese da encíclica Fides et Ratio.