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Futebol | Zizinho, nota 100

21 out 2021

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Zizinho, nota 100

Pode até ser raro, mas, no futebol, o jogador perfeito existe. Foi o caso de certo meio-de-campo ofensivo, cria do bairro de Neves, em São Gonçalo (RJ), onde nasceu a 14 de setembro de 1921, há pouco mais de cem anos. Estamos falando daquele que foi, simplesmente, sucessor de Leônidas da Silva, o Diamante Negro; incentivador de Gérson, o Canhotinha de Ouro, e ídolo de Pelé, o Rei: Thomaz Soares da Silva. O Thomazinho. Que ganhou fama como Zizinho, o polivalente. Cá entre nós, a alcunha de Mestre Ziza lhe era muito mais adequada. Não raro sorrindo de orelha a orelha, com seu pintoso bigodinho à Clark Gable, o boleiro era destro, mas também mandava de canhota. Típico meia armador, tinha visão de jogo, driblava em ziguezague, passava, empurrava o time todo, cabeceava e finalizava como ninguém. Na bola parada, então, era gigante. Sabe aquele iluminado que ginga entre os beques adversários e faz a alegria do povão? Era ele, Zizinho. 50% raça, 50% categoria. Entregava a bola no pé do atacante, açucarada. Foi uns dos primeiros a cobrar pênalti com paradinha, no que inspirou Pelé. Tinha mania de amarrar as chuteiras em campo e certa predileção pelo azarado número 13. Amava uma pelada de praia e também peças de teatro, ora vejam só. E odiava mesa de massagista. Não tinha pudores em dizer que carregava um time inteiro nas costas, se assim o fosse. Fumava. Tinha lá suas indisciplinas e sabia jogar duro: revidava na bifa, não fazia cera. Virou "cobra" no futebol de botão de incontáveis moleques Brasil afora. E tudo o que fazia, no gramado ou na vida, ganhava os holofotes da imprensa. Um craque brasileiro, da época em que se podia jogar com correntinha de ouro no pescoço. Não à toa Zizinho foi eleito o melhor jogador da Copa do Mundo de 1950 - a do maracanazzo, mas isso é detalhe. A Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol, aliás, o elegeu em 1999 como o quarto maior jogador brasileiro de todos os tempos. Justo: esse foi Ziza.

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Zizinho deu as caras no mundo do futebol fazendo e acontecendo no pequeno Carioca Football Club de São Gonçalo. Dali foi para o Byron, clube de bairro de Barreto, em Niterói (RJ). Sonhava em jogar pelo seu clube do coração, o América carioca, mas, por incrível que pareça, não passou na peneira do Rubro. Acabou sendo indicado para o São Cristóvão e deixou para lá. Até que vingou num teste no Flamengo, onde, podendo largar o trampo de operário, ficou à disposição do técnico Flávio Rodrigues Costa. No rubro-negro, Zizinho barbarizou: fez história entre 1939 e 1950, em 318 jogos (187 vitórias, 56 empates e 75 derrotas), anotando belos 146 tentos. Era o maior ídolo da história urubu até a chegada do Galinho de Quintino, Zico. Pudera: além de esbanjar categoria e personalidade em campo, foi fundamental na encaçapada do Carioca de 1939 e na conquista, pela primeira vez, do tricampeonato estadual (numa época em que os estaduais eram valorizados), por parte do Flamengo, em 1942, 1943 e 1944. Foi no primeiro ano do tri que o prodígio de São Gonçalo chamou a atenção, merecidamente, da então Confederação Brasileira do Desporto, passando a vestir, além do manto rubro-negro, a amarelinha. E brilhou com tudo no título brasileiro da Copa América de 1949.

Em 1950 veio o assédio. Nada de se admirar. Talvez fosse mesmo hora do ídolo buscar novos ares. Outro clube carioca, o Bangu Atlético Clube, prometia mundos e fundos a Zizinho, caso se transferisse para lá. Os paulistas Palmeiras e Corinthians também estavam de olho na joia meio-campista. Julgando-se pouco valorizado pelo Flamengo, Ziza chegou a criticar publicamente o clube da Gávea, cujo presidente, na imprensa, argumentava que o craque já não era mais flamenguista há muito. Alguns dizem que o boleiro saiu do rubro-negro compulsoriamente, magoado, acusado injustamente de "se leiloar". Seja como for, a transferência foi polêmica que só - com torcida se sentindo corneada e abundantes críticas na imprensa, aliás. A quizomba, justo no ano em que a Copa do Mundo vinha ao Brasil, acabou com o craque realmente indo para o Bangu por 800 mil cruzeiros, com salário de 14 mil cruzeiro mensais. Uma bolada, para a época.

Independentemente do que rolava no meio clubista, na Copa Ziza deitou e rolou: não participou das duas primeiras partidas da Seleção Brasileira por estar lesionado, mas quando entrou em campo tocou o terror. Maravilhou a todos, inclusive os de fora do país, dando show, especialmente, na vitória contra a Espanha, um passeio de 6 a 1 que virou até marchinha de Carnaval. Foi por aí que Giordano Fatoria, jornalista italiano da Gazzetta dello Sport, tascou: "O futebol de Zizinho me faz recordar Da Vinci pintando alguma coisa rara". Na fatídica final contra o Uruguai Zizinho foi o melhor brasileiro em campo, único do setor ofensivo capaz de furar o bloqueio celeste, apesar de marcado por Schubert Gambetta. Nosso meia direito nunca se recuperou do maracanazzo.

Alguns dizem que a polêmica transferência, somada aos 2 a 1 uruguaios no final da Copa do Mundo em pleno Maracanã, ajudou a minar a reputação do Mestre Ziza, à época. Seja como for, no plantel da Zona Norte carioca, o craque ficou até 1957. E fez bonito: se tornou um dos maiores da história do Bangu, sendo hoje seu quinto maior artilheiro, com 122 gols - e também o maior artilheiro do time em uma só partida, com cinco notáveis tentos numa única tarde inspirada. No alvirrubro suburbano Ziza atraía torcida até em dia de treino. Ali ganhou os torneios de início do Rio de Janeiro e do Rio-São Paulo, enquanto ainda estava oficialmente no plantel de ouro canarinho. No entanto, logo o caldo do armador entornou na CBD. No Sul-Americano de Lima, no Peru, em 1953, Zizinho, capitão do escrete de Aimoré Moreira, jogava no sacrifício, contra recomendações médicas. Até que reclamou de um bicho que seria pago pelo escritor José Lins do Rêgo, chefe da delegação tupiniquim, julgando-o muito baixo. A grita foi parar na imprensa e o jogador acabou tendo sua fama de estrela mercenária, que já existia, reforçada. Junto de Aimoré, Lins do Rêgo escreveu um relatório cuja finalidade era cortar Ziza da Seleção. Outras indisciplinas também pesaram. E dito e feito. A ausência do craque na Copa do Mundo de 1954, na Suíça, quando ainda era considerado o melhor futebolista brasileiro da época, deixou todo mundo de queixo caído.

A derrota brasileira na terra do queijo furado fez com que a CBD reconsiderasse o papel de Ziza no escrete canarinho. Então, o mestre de São Gonçalo foi escalado novamente, ao menos para disputar as Taças Bernardo O'Higgins e Oswaldo Cruz. No Campeonato Sul-Americano de 1957 Zizinho também jogou, como titular, mas já tinha 35 anos. A queda da seleção na competição fez com que o técnico Vicente Feola considerasse a convocação de jogadores mais jovens para o Mundial de 1958. Guris como um tal de Pelé, do Santos, por exemplo. E o resto da história a gente já conhece. Com a amarelinha de 1942 a 1957, Mestre Ziza esteve em 54 jogos, 37 vitórias, quatro empates e 13 derrotas, marcando redondos 30 gols.

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Se 1957 foi o ano da última participação de Zizinho na Seleção Brasileira, também o foi no Bangu. Dali, já no início do ano, o meia levou seu drible em ziguezague para o São Paulo Futebol Clube, onde, apesar da idade, também virou ídolo, e em tempo recorde. É que, além de gigante em campo, pela experiência, assumiu papel de liderança. Dizem que foi o primeiro camisa 10 de ponta na história são-paulina. Disputou 67 jogos, anotando 27 gols no total, ajudando a colocar na sala de troféus do tricolor os títulos do Paulistão de 1957 e da Taça dos Campeões Estaduais de São Paulo e do Rio de Janeiro, em 1958. Mas Ziza estava, na verdade, encerrando sua carreira, e em grande estilo. Chegou a ser emprestado ao São Bento de Marília e teve curta passagem pelo Uberaba Sport Club. Até que se desligou temporariamente do futebol brasileiro ao aceitar uma curta e última temporada, entre 1961 e 1962, no Audax Italiano, do Chile. Depois dessa pendurou as chuteiras, literalmente.

Mestre Ziza também foi treinador, depois de deixar o gramado. Tudo começou no bom e velho Estádio de Moça Bonita. À frente do Bangu, onde já era ídolo, teve destaque na década de 1960, depois de uma curta experiência antes de ir para o Audax. De volta do Chile, assumiu novamente a batuta alvirrubra. Em algumas oportunidades, até atuou como técnico e jogador, ao mesmo tempo, quando a coisa apertava. Entre 1963 e 1964 treinou também o América, seu antigo clube do coração, à época "todo quebrado", conforme o craque revelava para a Revista do Esporte. Brigado com a direção do Mecão e dispensado, foi comandar o Canto do Rio, em compromisso verbal apenas por um estadual - depois, ficou a cargo das categorias de base do clube de Niterói. E então voltou ao Bangu, em 1965. Depois chegou mesmo a treinar a Seleção olímpica, conquistando, com ela, a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 1975, na Cidade do México. Zizinho comandou um plantel hoje pouco lembrado na história canarinho, com Cláudio Adão, Rosemiro, Eudes, Batista, Edinho, Tecão, Chico Fraga e Mauro Cabeção, entre outros. Mas foi nesse torneio, em 17 de outubro, que o Brasil impôs a maior goleada de sua história a um adversário, no caso, a Nicarágua: sonoros 14 a 0.

Mesmo com seu título como comandante da seleção olímpica, a carreira de Zizinho por ali foi curta: desistiu, decepcionado com o meio. Ziza não tinha papas na língua, também não vivia de favor. Depois, deu adeus ao futebol. Oficialmente, tinha virado fiscal de rendas do Estado do Rio de Janeiro, já em 1962, graças a seu QI, de nome João Havelange, que interveio junto ao governador fluminense de então, Celso Peçanha. Se aposentou no cargo público. Em 2001, aos 80 anos, Zizinho ganhou uma homenagem e tanto do Bangu, recebendo diploma de maior expressão banguense nos gramados. Seus pés foram gravados na calçada da fama do Estádio Mário Filho, com todas as pompas. Foi bem a tempo: no ano seguinte, mais precisamente a 8 de fevereiro de 2002, Mestre Ziza partiu para uma melhor, vítima de problemas cardíacos. Mas nessas horas a morte parece não existir. Se, diz a lenda, o ídolo chegou a jogar com uma das pernas quebrada por duas partidas, então nada é impossível. Nelson Rodrigues já dizia, em sua coluna do Jornal dos Sports: "A impressão que me dá Zizinho é de uma viçosa, uma florida, uma adolescente eternidade". Que assim seja.

Explore os documentos:

Quarto da direita para a esquerda, Zizinho no Flamengo tricampeão estadual, posando para O Cruzeiro, em 1944.

Imagem icônica do maracanazzo: Zizinho consolado pelo goleiro uruguaio Roque Máspoli, após a vitória celeste na final da Copa de 1950.

José Lins do Rêgo discorre sobre a frustrante passagem da Seleção Brasileira por Lima, em 1953: Zizinho foi um de seus alvos.

Ainda em O Cruzeiro, em 1953, Zizinho aparece com destaque na série "Ídolos do futebol brasileiro", pelo Bangu.

Flanando por Paris, Zizinho explica por que não foi convocado pela CBD em 1954, em entrevista a'O Cruzeiro.


O craque "ausente", em 1954, e convocado de volta em 1955:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/90991

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/95072


Um pênalti ecoa na mente do craque, em brincadeira gráfica de Manchete, em 1956.

No mesmo ano, Manchete dá espaço a Mário Filho, que discorre o seguinte sobre Zizinho, então estrela banguense.

Em 1957, Zizinho completa 50 jogos internacionais com a amarelinha: teve bolo.


Todo o destaque a Zizinho, em sua fase são-paulina:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/115940

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/115941

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/117594


Nas páginas da Revista do Esporte, em 1959, Zizinho "arquiva a bola", pensando em se aposentar.


Ainda em 1959, Zizinho posa para fotos na intimidade do lar, com suas faixas de campeão. E fala em "subornadores" no futebol paulista:

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/101

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/102


Na Revista do Esporte, Zizinho posa ao lado de uma jovem promessa santista.


Em 1960, um Zizinho agora técnico: nova fase no Bangu:

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/5597

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/5598


Enfim, Mestre Ziza, em reportagem na revista Cruzeiro, em 1960:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/127362

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/131712


Em 1963, Mestre Ziza passa a ser técnico do América.

Um Mecão totalmente "consertado" por Zizinho, em 1964, segundo a Revista do Esporte.


Em entrevista em 1964, Zizinho destacava: "Sou técnico para atender aos amigos". Pouco depois, era dispensado pelo clube, apesar de bons resultados:

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/13475

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/14683


A volta triunfal de Zizinho ao Bangu, em 1965:

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/16465

http://memoria.bn.br/DocReader/144118/16466