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História da alimentação | Codex Romanoff: Léo e seus pitacos gastronômicos

08 abr 2021

Artigo arquivado em História da Alimentação
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Em tempos em que somos forçados a ficar em casa, é bom saber se comportar. Do contrário, a vida em família fica insuportável, sobretudo à mesa, naqueles momentos em que parentes de diferentes humores, disposições e opiniões políticas são obrigados a ficar lado a lado. Se o assunto é cozinha, aliás, também é bom saber se virar entre as panelas: depender só de delivery sai os olhos da cara. É por isso tudo que hoje propagandeamos valiosíssimos ensinamentos de Léo, além daqueles já muito abordados. Mas que Léo? Ora, o definitivo, o maior dentre todos os Léos: o da Vinci. Hoje, mesmo os axolotes sabem que, como bom polímata, movido por uma curiosidade espiroqueta fora da curva, o mestre renascentista foi anatomista, engenheiro, cientista, inventor, matemático, escultor, pintor, botânico, arquiteto, poeta, músico... Pois foi também dono de boteco (digo, de taverna), mestre de cerimônias e gastrônomo de mão cheia, preocupado em documentar o que e como se comia das mesas italianas (tinha que ser lá!) no final do século XV. Está tudo lá, em seu chamado Codex Romanoff: um compilado expondo suas noções sobre técnicas de cozinha, macetes, receitas, sugestões, devaneios, modos de se porta à mesa, novidades para melhor rendimento de certos alimentos, ideias para a construção de máquinas culinárias, propriedades nutricionais de insumos e antídotos, hábitos alimentares da alta sociedade de seu tempo e tantas outras coisas. Se muitos consideram que a corte de Luís XIV, com os salamaleques e frufrus empombados do palácio de Versailles, foi a precursora da finesse culinária e da etiqueta ocidentais, sinto em dizer: Léo esteve preocupado com isso cerca de 200 anos antes. Temos aqui, portanto, mais uma de tantas batalhas entre as culturas alimentares da França e da Itália, tendendo a aumentar um pouquinho o placar para a terra da bota; se Luís era o Rei Sol, Léo foi sábio universal.

Calma, ávido leitor. Antes de abocanharmos o apetitoso Codex Romanoff, há que contextualizar o documento com a trajetória de Léo. Nascido como filho bastardo em 15 de abril de 1452, criado pelos avós maternos no vilarejo de Anchiano, então parte da República de Florença, Léo mudou-se com cerca de 14 anos para a capital, uma das mais ricas e cosmopolitas do mundo. Lá, por intermédio do pai, se tornou aprendiz na oficina do artista Andrea Del Verocchio, onde provavelmente lidou muito com tratos alimentares e fornadas de todo tipo. Anos mais tarde, em 1473, sua carreira deu outra guinada em direção às panelas e aos caldeirões: já entendido dos prazeres do paladar, foi quando se tornou supervisor da cozinha da Taberna dos Três Caracóis, onde, jovial e visionário, tentou, para desespero da clientela local, impor novos estilos de comida, muito calcados em vegetais. Sim, Léo era desses, ligado em gourmetização. E pior, naquele contexto: vegetariano. Deu com os burros n’água: o povo queria mesmo era o rame rame de sempre, centrado na carne, o indicativo alimentar de nobreza. O fundo do poço pareceu se aproximar quando, três anos depois, Léo foi processado por sodomia. Absolvido, resolveu dar a volta por cima. No entanto, em 1478, mesmo ano em que a peste negra chegava passando firme seu rodo sobre Florença, um incêndio reduziu a cinzas a Taberna dos Três Caracóis. Que fazer? Como à época ainda não existiam startups, nem era possível virar coach ou consultor, Léo usou seus conhecimentos de cozinha para abrir com um amigo seu, certo Sandro Botticelli, outra taberna, no mesmo local. Novamente, os florentinos reagiram com horror à folhas que Léo insistia em colocar em suas cumbucas. E a peste bubônica, por outro lado, grassava. Ainda se achava que a mesma era transmissível pelo ar, nauseabundo como em todo centro urbano europeu de então, e o empreendimento não deu certo. Então, veio o ano da graça de 1482. Foi quando Léo migrou para a charmosa (embora, naquela época, acatingada) Milão, onde passou a trabalhar para o poderoso chefão local: Ludovico Sforza. Deve-se sempre fazer uma mesura ao se falar nesse sujeito – mas, para mais sobre ele, favor googlear, que nosso foco aqui é Léo. Cumpre destacar que Sforza, do alto de sua poderosa e influente família, soube farejar a genialidade de da Vinci, colocando-o como mestre de banquetes e cerimônias em seu luxuoso palácio. E foi por aí que começou a ser escrito o Codex Romanoff, do conhecimento culinário acumulado por Léo, com boa base empírica, no decorrer dos anos até ali e além.

É bem verdade que Léo viveu anos em Milão, sob proteção dos Sforza. Em 1490, aliás, pôde até levar o intrépido e traquinas Gian Giacomo Caprotti da Oreno para viver consigo, sem sofrer novo processo por sodomia. Gian Giacomo, apelidado de Salai, algo como “Diabinho” ou “Diabrete” segundo a gíria da época, foi, assim como seu mestre, muito além de um simples belo rostinho: serviu de modelo para pinturas, pupilo, ajudante e cobaia de Léo. Pau para toda obra, são de Salai a cara, a cútis e os fartos cachos do São João Batista pintado por da Vinci em 1514, hoje devidamente acomodado no Louvre, embora o rapaz tenha sido apontado como nada santo: ao que consta estava mais para contraventor, deslumbrado e perdulário – foi mesmo chamado pelo seu magoado protetor de “ladrão”, “mentiroso”, “teimoso” e, pior, “glutão”. Amenidades, enfim. A verdade é que, para fora dos portões palacianos dos Sforza, os tempos recrudesciam, entre disputas militares entre os estados que formavam a encrenqueira Europa de então.

Em 1499, enquanto o Velho Mundo ainda se maravilhava com a recente descoberta de Cristóvão Colombo do outro lado do planeta, Sforza sofreu uma importante derrota para invasores franceses, e da Vinci se viu obrigado a deixar Milão. Via Mântua, o crânio fugiu para Veneza, onde, em meio às batalhas do momento, usou seu gênio para atuar como engenheiro militar, bolando planos para defender a cidade de ataques navais. Era o que precisava para atrair a atenção de um novo patrono: passou então a trabalhar para o poderoso César Borgia, filho do papa Alexandre VI, em Roma, novamente como engenheiro militar e cartógrafo de campanhas. Futuramente, Léo se mudou de volta Florença, depois novamente para Milão. Os franceses (sempre eles!) foram expulsos de lá em 1512, fazendo com que o seboso e amundiçado Maximiliano Sforza, filho de Ludovico, ascendesse ao poder. Embora devesse respeito aos Sforza, Maximiliano não era como o pai: nessa altura Léo fechou com ainda outra família de políticos e mecenas, passando a prestar serviços para Juliano de Médici, tendo, portanto, regressado a Roma, então sob o controle do papa Leão X, também um Médici. Pouco depois, em outubro de 1515, Francisco I da França reconquistou Milão, tendo costurado um acordo com Leão X, em 19 de dezembro daquele ano, num encontro ocorrido em Bolonha com a presença de nosso renascentista vegetariano favorito. No fim das contas Francisco empregou Léo, que recebeu do monarca o solar Clos Lucé, em Amboise, no vale do Loire, para onde se mudou em 1517. Nessa época, da Vinci já era aquele simpático coroa calvo, de longos cabelos e barbas, à Gandalf, das imagens a que somos acostumados: faleceu apenas dois anos depois da mudança para a França. Nessas idas e vindas, onde diabos foi parar o Codex Romanoff, que no total acumulou experiências de da Vinci nas cozinhas de diversos nobres? É fato que o campeão das ciências deixou incontáveis manuscritos não assinados espalhados cá e lá.

Ora, o Codex Romanoff se chama Romanoff porque foi parar na casa dos Romanoff. Dã. Os Romanoff, ou Romanov, foram a última família imperial russa, quase extinta quando a revolução de 1917 naquele país passou fogo em Nicolau II e nos seus. Existem rumores de que os originais do documento atualmente estão no Museu Hermitage, em São Petersburgo, que os teriam guardado por anos. Sua existência só foi trazida a lume no incrível ano de 1981. Mas, hoje, o próprio museu às margens do rio Neva nega que o possua. A tumultuada história russa, que passou pela dissolução da União Soviética no início dos anos 1990, não nos deixa descartar a hipótese de extravio. Ademais, a autenticidade do Codex Romanoff como produto de Léo da Vinci sempre foi contestada, embora muitos sustentem que, sim, apesar de ser (ou ter sido) uma obra com apenas uma cópia, é (ou foi) de autoria do grande prodígio renascentista. Cá para nós, no Brasil, é possível consultar o conteúdo do códex no livro “Os cadernos de cozinha de Leonardo da Vinci”, lançado pela editora Record em 2002.

É necessário pontuar: se você pretende ler o códex e tentar repetir uma receita davinciana, melhor pensar duas vezes. A comida nos tempos de Léo era, naturalmente, diferente da de hoje, embora com certas semelhanças. Ela estava dentro de fortes códigos de hierarquia, indo da nobreza ao vulgar: quanto mais baixa a posição social na Itália de então, mais o pão era fundamental, e sua farinha menos pura e refinada. As diferenças entre as comidas dos grandes centros urbanos e as do campo, local visto como de penúria, eram enormes. A distinção entre certos alimentos passava por concepções religiosas, ao passo em que o poder de comer carnes era o suprassumo para qualquer comensal de elite. Banquetes eram, naturalmente, como ainda hoje, o ápice da refeição como símbolo de status social, sobretudo quando leva-se em consideração não só a fartura, mas o grau de sofisticação no preparo das comidas e o entretenimento voltado aos convivas: nem todos têm cacife para comer polentas sendo entretido por bailarinas e saltimbancos. Ainda assim, cabe notar que a gastronomia italiana no Codex Romanoff está, literalmente, há séculos do que se entende por gastronomia italiana hoje: a atual, aparentemente, é Nutella, a do códex, raiz, e raiz das brabas. Como vegetariano, Léo foi, dizem, um dos raros de seu tempo, senão o único – foi, por isso, um peixe fora d’água em carniçais ambientes palacianos. Mas, em terra de sapos, de cócoras com eles: leões marinhos, ursos, porcos espinho, caracóis e cegonhas estavam no cardápio de Ludovico Sforza e companhia, assim como carnes menos bizarras. Ao lado de incontáveis polentas. Fora os vinhos, os pães, os ovos, os laticínios, as ervas, leguminosas e frutas, e certos grãos e favas. Seja como for, receitas de testículos de carneiro com creme e mel, cristas de galo com miolo de pão, intestinos fervidos, peixe empanado com dedos de nabos, sopa de caracóis, marmelada de repolho, frango cru, sopa siciliana de gáudio “com sabor de fumaça” e pastelão de cabeça de cabra (para pessoas rudes, diz-se), podem ser devidamente esmiuçadas no códex. Assim como as mil e uma formas de se comer polenta: algumas bem simples, como com ovos e ervas, outras um luxo, como os bolinhos de polenta folheados a ouro, criado por Léo para a satisfação de seu patrão.

Segundo o Codex Romanoff, assim como tortas de rã e rins, asno com ameixas em escabeche é prato para gente desclassificada, no caso, “cantores ambulantes, bufões, estroinas, rufiões, charlatões e tagarelas”. Pudins de sangue de porco são, isso sim, ideais para pessoas de bom gosto, sobretudo durante a Quaresma. Ostras cruas devem ficar para os comensais ricos e libidinosos. Libélulas dão bons enfeites para assados, naturalmente. Já que tocamos no assunto dos insetos, é bom deixar claro que certas larvas e insetos podem ser comidos, mas certamente não aranhas e moscas grandes – em caso de picadas de escorpiões, aliás, nunca é demais lembrar, um antídoto a se considerar é vinho com orégano (favor não tentar em casa, amigo leitor). Necessário afugentar as moscas do recinto, então? De fato. Diz Léo: “O método para mantê-las afastadas consiste em polvilhar com pimenta o ambiente, especialmente as reses que ali se encontram penduradas”. Se nas cozinhas palacianas milanesas daquele tempo não era de se estranhar um leão marinho dependurado, outras considerações de nosso mestre gourmetizador podem trazer menos espanto: “Na minha cozinha não há lugar para cabra alguma. Quando estão vivas cheiram mal e comem tudo, inclusive minhas mesas e bancos. Mortas, cheiram ainda pior. Para livrar-se do fedor das cabras, livre-se das cabras”.

A etiqueta, no Codex Romanoff, merece um parágrafo à parte. Nele, Léo critica a quantidade de provadores, para a eventualidade de envenenamentos, no séquito de César Borgia, pois eram tantos que a comida esfriava. Da Vinci mete o malho também em Maximiliano Sforza, que deve ser colocado perto de uma porta aberta, para a circulação de ar: o pestífero excelso nunca trocava suas roupas íntimas e tinha o caçurrento hábito de soltar seus furões à mesa, para que comessem a comida dos demais. Não sobrava nem para certo papa, comedido à mesa, em público, e pecaminoso glutão quando em seus aposentos. Ademais, “Ainda que não o faça durante a Quaresma, Sua Santidade costuma permitir que os sacerdotes que ocupam as mesas mais baixas atirem suas sopas e seus frangos nos que visitem suas mesas, dancem sobre a mesa e batam no rosto daqueles que não desejam se unir a eles”. Outros procedimentos vistos como indecorosos são devidamente listados por Léo no códex, sobretudo quando referentes a banquetes junto à nobreza. Para esclarecimentos, frisa-se, de uma vez por todas, que ao menos à mesa de Ludovico Sforza, o comensal “Não porá sua cabeça no prato para comer”. “Não limpará sua faca na roupa do vizinho”. “Não fará aos pajens de meu senhor sugestões luxuriosas nem brincará com seus corpos”. “Não limpará sua armadura na mesa”. “Não porá pedaços mastigados de sua própria comida no prato de seu vizinho sem primeiro perguntar a ele”. “Não fará caras feias nem girará os olhos”. “Não conspirará à mesa (a não ser que o faça com meu senhor)”. E, afinal, “Deverá abandonar a mesa se está para vomitar. E o mesmo se tiver de urinar”. Nunca é demais deixar tudo em pratos limpos.

Muito do diário gastronômico do mestre de banquetes de Ludovico Sforza vai além do gosto, tendo também muito a ver com saúde, seja pelas propriedades, seja pelos métodos de conservação e consumo de certos alimentos: aqui o da Vinci gourmet junta-se ao da Vinci médico. Em nota dirigida a seu senhor, o cientista talvez tenha sido a primeira mente ocidental a pontuar coisas óbvias, que já despontavam, sem que se soubesse, na medicina tradicional oriental: “(...) se o senhor deseja cuidar da saúde, deveria comer apenas quando tem fome, fazer sempre refeições moderadas, mastigar bem a comida e cuidar de que tudo aquilo que consuma esteja bem cozido e seja leve”. Léo, afinal, não era nada professoral, concluindo o ensinamento com uma pitada de doce humildade: “Meu senhor engole sem mastigar e tem um enorme apetite. Para toda regra há exceções. Ou talvez eu esteja equivocado”. Mas, às vezes, o da Vinci chefão dos banquetes palacianos sabia ser duro com o manda chuva: “Se meu senhor pusesse ordem em suas cozinhas não precisaria de nenhum provador [de venenos] em sua mesa”. Eram tempos áureos na gastronomia italiana, onde sair vivo mesmo das refeições mais requintadas talvez fosse uma façanha. Que o diga o texto intitulado, no códex, “Sobre a maneira de se dispor à mesa os assassinos”, com informações básicas, como “Se um assassinato foi planejado para a refeição, é claro que se deve posicionar o assassino nas proximidades de sua vítima”. O ideal, logicamente, é “levar a cabo sua tarefa sem que nenhum comensal o perceba, com a exceção de sua vítima”. Caso contrário, “uma vez que o cadáver (...) tenha sido retirado pelos serventes, o normal é que o assassino também abandone a mesa, já que, algumas vezes, sua presença poderia perturbar a digestão daqueles que estão sentados perto dele”. Por essas e outras, sempre será nosso da Vinci sempre será nosso mestre.

Ainda com relação aos venenos, Léo expõe diversas considerações a respeito do que fazer quando se quer envenenar um comensal, deitando e rolando, também, num papel avesso ao do mestre cuca interessado nas propriedades saudáveis a serem trabalhadas em suas receitas. Se Sforza quisesse riscar do mapa algum convidado, não seria Léo quem faria objeções. Na parte em que pondera a respeito da cozinha envenenada, desabafa a respeito de certas dificuldades: sabe o leitor o perrengue que era tentar matar alguém envenenado em plena Itália do século XV? Solta o verbo Léo, ultrajado: “Salai negou-se a prestar-me seu auxílio em meus experimentos desde que me encontrou colocando em sua comida quantidades incrementadas de estricnina e beladona, e negou-se a aceitar minhas explicações e a compreender que o fazia tendo como objetivo aumentar sua resistência diante das substâncias que pudessem atacá-lo (levando em conta a má fama dos hóspedes desta casa)”. Conclusão: néscios aqueles que dizem que não se fazem mais cobaias como antigamente.

Há que se ressaltar que, apesar de certas estripulias contra a integridade física de Salai, Léo foi um mestre de banquetes humano, como qualquer outro: às vezes estava temperamental, outras vezes de saco cheio. Levante a mão o cozinheiro que nunca fez algo mais ou menos assim: “Se os restos que sobraram de um banquete pareceram ser apetitosos demais para serem dados aos criados ou aos cães (...), pique tudo e coloque em uma panela com nove partes de água e polenta. Depois, ferva durante meio dia em fogo baixo para eliminar seu sabor ruim natural. Pode ser servido a todas as criaturas, que se verão sumamente agradecidas por sua preocupação e seu cuidado”. Então tá. Mas cuidado com a polenta. Pode causar melancolia. Diz o mestre, em outra passagem: “Estou triste porque passei todo o dia vendo pratos de polenta. Eles parecem tão tristes”. Em outros momentos, Léo não poupa críticas a colegas de cozinha, revelando-se severo julgador, caso à época pudesse distribuir estrelas Michelin para os comes e bebes cortesãos de sua época. Investe, impiedoso, em certa ocasião, contra um tratado culinário romano datado do século I: “Estive lendo De re coquinaria, cujo autor é Coelius Apicius. O homem estava louco. A quem agradaria, hoje em dia, comer leirão”, uma espécie de roedor silvestre, “com mel, alho poró guisado com mel e depois coberto com vísceras de atum ou línguas de grous e cegonhas”. Juntemos os dedos para cima e sacudamos a mão à italiana: ora, francamente.

Se as considerações de nosso dileto gourmand científico sobre os restos da comilança do dia anterior podem parecer contraditórias – sobras podem ser apetitosas e ao mesmo tempo ter sabor ruim? –, resta dizer que, em certos momentos do Codex Romanoff, ao transcrever receitas, listas de compras e invencionices malucas em geral, Léo se confundia nos cálculos mais simples, ficava com preguiça de concluir várias fabulações e julgava, volta e meia, que era bem capaz de escrever bobagens: como não amar um cientista assim? Depois de se dedicar consideravelmente a um trecho “Sobre as quantidades de líquidos e comidas que devem ser consumidas a cada dia para maior benefício do corpo”, a entrada seguinte no códex, intitulada “Sobre o de acima”, conclui, singelamente: “Creio estar equivocado nesse assunto”.

Entende-se, afinal, que o sabichão mor da humanidade jamais tenha revisado seus escritos gastronômicos. Tudo bem. Ainda assim, Léo era da Vinci, como no seguinte trecho, inconcluso, mas que nos deixa a honra de completar seu pensamento. Ao passo em que foi o inventor da aviação e da balística, obreiro supremo da Renascença, genitor de Mona Lisa e do Homem Vitruviano, Léo veio ainda com outra criação revolucionária, que ditou os rumos da humanidade. Em suas considerações “Sobre a carne e o pão”, o mestre tasca apenas o seguinte, de início: “Pensei em colocar uma fatia de pão entre duas fatias de carne... Como chamarei este prato?” Mas tarde, depois de bem digerir o assunto, quando não de testar empiricamente a ideia, nosso gênio a corrige, na entrada “Mais sobre a carne e o pão”: “Estive meditando um pouco mais sobre a carne e o pão. O que aconteceria se colocasse um pedaço de carne entre duas fatias de pão? Como chamaria este prato?”. Ora, bolas. Estaríamos diante do tataravô dos fast foods?


Retrato de Leonardo da Vinci, por Flumen Junius, Ernesto Augusto de Souza Silva e Rio. Produzido em 14 de abril de 1870.