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História do Livro | Editora Globo

26 jun 2021

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Na virada entre os séculos XIX e XX, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, conheceu um rápido desenvolvimento urbano e econômico. A imigração fez crescer o número de habitantes; foram criadas faculdades de Direito, Engenharia e Medicina; a rede de transporte marítimo e ferroviário cresceu e se tornou mais eficaz, e vários setores econômicos foram estimulados, incluindo a produção e o comércio de livros.

O “Almanach rio-grandense” publicado em 1874 pela tipografia Deutsche Zeitung arrola apenas três livrarias em Porto Alegre: a de Joaquim Alves Leite, aberta em 1850, que vendia vários produtos além de livros; a de Madame Marcus, frequentada por estudantes; por fim, a Livraria Rodolfo José Machado, fundada em 1854, que também atuava como editora. Nas décadas seguintes, porém, esses números iriam crescer, passando a incluir várias novas casas, entre as quais as filiais porto-alegrenses da Livraria Americana e da Livraria Universal.

Segundo Eduardo Arriada, da UFPel, a mais importante editora gaúcha daquela época era a Livraria Americana, de Carlos Pinto. Fundada em 1871 na cidade de Pelotas – um dos maiores centros comerciais do estado --, a Livraria foi responsável pela edição do “Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande do Sul” entre 1889 e 1917, atuou no setor de livros didáticos e publicou literatura nacional e estrangeira, com nomes como Daudet, Maupassant, Zola e Dostoievsky. Suas obras saíam na série de bolso Biblioteca Econômica, com baixo preço e pequeno formato. Laurence Hallewell afirma que as traduções e edições não eram autorizadas pelos detentores dos direitos de publicação, configurando-se no que hoje conhecemos como “pirataria”.

Veja o prédio da Livraria Americana, em foto datada aproximadamente de 1910 (Divisão de Iconografia)

Em 1917, a Americana passou a ser propriedade da Livraria Universal, fundada em 1887 pelos irmãos Carlos e Guilherme Echenique. A Universal seguiu um caminho parecido com o da empresa de Carlos Pinto: inicialmente sediada em Pelotas, abriu filiais em Rio Grande e em Porto Alegre, publicou obras didáticas e de literatura e até mesmo seu próprio almanaque: o “Almanaque Popular Brasileiro”, dirigido por Alberto Ferreira Rodrigues. Encerrou suas atividades em 1929, quando Porto Alegre já contava com várias importantes livrarias. A maior parte se concentrava na Rua dos Andradas, também conhecida como Rua da Praia.

A Livraria do Globo também ficava nesse endereço. Fundada em dezembro de 1883 pelo português Laudelino Pinheiro Barcelos, era, a princípio, um negócio modesto, que anunciava a venda de “livros, músicas, papel, miudezas e objetos de escritório”. Pouco depois, Barcelos ampliou o negócio por meio de uma oficina tipográfica, na qual passou a realizar impressões por encomenda. Em 1890 contratou o jovem e dinâmico José Bertaso, que rapidamente galgou degraus na empresa, tornando-se sócio de Laudelino e, com a morte deste em 1919, proprietário da Livraria do Globo. Segundo Hallewell, Bertaso previu a escassez de papel que se seguiria à Primeira Guerra Mundial e fez um bom estoque, depois vendido com lucro. Também adquiriu a primeira máquina de linotipo do estado.

Em 1917, a Livraria do Globo abriu sua primeira filial, na cidade de Santa Maria. Em 1922, começou a publicar novas vozes da literatura gaúcha: Telmo Vergara, Darcy Azambuja, Ernani Fornari e vários outros. Ao mesmo tempo, visando à maior projeção da empresa, Mansueto Bernardi, encarregado do departamento de propaganda, fez publicar também alguns livros traduzidos, contratou editores especializados e artistas gráficos e fundou a “Revista do Globo”, um periódico de variedades que contou com colaboradores de renome, tanto nas ilustrações quanto na redação de artigos e colunas.

Ao deixar a firma, Bernardi foi substituído no setor editorial por Henrique, filho de José Bertaso. Em 1932, a direção da revista passou às mãos de um jovem escritor, Érico Veríssimo, já então colaborador e tradutor de vários livros publicados pela Globo. Entre os de maior sucesso estavam as histórias policiais da Coleção Amarela, iniciada em 1931 e que publicou 85 títulos em 18 anos. Em 1936, segundo Hallewell, a empresa contava com quinhentos funcionários e ocupava um prédio de três andares, e Henrique Bertaso viajava pela Europa a fim de adquirir os direitos de publicação de obras alemãs, italianas, espanholas e francesas.

Veja um anúncio da Coleção Amarela numa edição de 1932 da revista de variedades “Fon Fon” (Hemeroteca Digital)

Em 1938, após seu livro “Olhai os Lírios do Campo” se tornar um sucesso de vendas, Veríssimo assumiu o papel de conselheiro literário, uma espécie de curadoria principalmente dos livros a traduzir, que saíam pelas coleções Nobel e Biblioteca dos Séculos. Esta publicou obras de vulto, como “A Comédia Humana”, de Balzac. A edição de dezoito volumes foi considerada pelo crítico Nelson Werneck Sodré a maior realização da Globo até então, com destaque para o coordenador, Paulo Rónai. Além das traduções, a editora continuava a publicar autores brasileiros, principalmente locais, desde uma edição crítica dos “Contos Gauchescos e Lendas do Sul”, de João Simões Lopes Neto (1865 – 1916), até livros de estreia, como “A Rua dos Cataventos”, de Mário Quintana, que saiu em 1940.

Veja uma carta de Paulo Rónai a Artur Ramos, comunicando que está trabalhando na filial da Globo no Rio de Janeiro (Divisão de Manuscritos).

No início dos anos 1950, a quantidade de obras traduzidas se reduziu bastante, visto que medidas tomadas pelo Governo dificultavam o pagamento feito a autores e editores resisdentes no exterior. Os números voltaram a crescer na década seguinte, porém a Globo havia mudado seu foco para a produção de livros didáticos, publicações técnicas e obras de referência. O departamento de Dicionários e Enciclopédias era um dos mais ativos na empresa, e contou com a colaboração de autores e pesquisadores renomados, tais como Leonel Valandro, Francisco Fernandes e Álvaro Magalhães, organizador da “Enciclopédia Brasileira Globo”, que, segundo Hallewell, foi a primeira a contar com verbetes elaborados exclusivamente por especialistas brasileiros. Outro nome de relevo foi Edgard Cavalheiro, que mais tarde viria a ser gerente da Editora Cultrix.

Veja uma carta de Edgard Cavalheiro a Artur Ramos, escrita da filial da Globo em São Paulo, solicitando um texto a ser incluído em publicação da editora (Divisão de Manuscritos).

Em 1972, Érico Veríssimo publicou “Um Certo Henrique Bertaso”, livro em que narrava sua experiência na Editora Globo e homenageava o editor. Este faleceu em 1977, e pouco depois se iniciou uma grande reformulação, com a mudança da sede da firma para o Rio de Janeiro e a abertura de franquias. Em 1986 a empresa foi vendida à Rio Gráfica Editora, pertencente a Roberto Marinho, dono do conglomerado midiático também chamado Globo, que passou a utilizar a marca para os produtos da gráfica. Assim, o nome e a história da pequena livraria fundada em Porto Alegre continuam através de uma editora pertencente ao Grupo Globo, com sede em São Paulo, que publica livros de literatura e de não-ficção e revistas como a Época e a Galileu.

Detalhe de carta escrita por Érico Veríssimo a Artur Ramos, em papel timbrado do departamento de divulgação da Livraria do Globo (Div. Manuscritos)