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História do Livro | Entre o Velho e o Novo Mundo – séculos XVI - XVIII

18 out 2020


e marcado com as tags América Latina, Giovanni Botero, História do Livro, Novo Mundo

A partir do século XV, vários países da Europa se lançaram à tarefa de explorar e colonizar outros continentes. Novas rotas de viagem e comércio se estabeleceram, territórios foram mapeados; povos até então desconhecidos deslumbraram e inquietaram os europeus com seus costumes, descritos em primeira mão por viajantes como Hans Staden e André de Thévet.

Além dessas narrativas, que agradavam em cheio aos leitores ávidos por novidades, as tipografias se ocuparam de produzir mapas e atlas cada vez mais precisos, bem como tratados sobre as novas terras, sua fauna, flora e habitantes. Algumas dessas obras, escritas por filósofos e naturalistas, tinham viés científico, enquanto outras atendiam a finalidades mais práticas, tais como mapear as riquezas de uma região, identificar pontos estratégicos para a construção de feitorias e fortalezas e administrar o território. E, em muitos casos, as informações contidas numa obra podiam ter utilidade tanto para estudiosos quanto para agentes do governo ou representantes das companhias de comércio.

Segundo o historiador Peter Burke, os pontos principais de encontro e troca de informações na Europa dos séculos XV e XVI eram as cidades portuárias: Lisboa, Sevilha, Veneza e Amsterdam. As duas últimas conservaram a primazia na impressão de livros e mapas até o século seguinte, e eram polos importantíssimos de comércio e de difusão do conhecimento para outros países europeus. Lisboa se destacava por ser a capital do império ultramarino português, que, além do Brasil, incluía territórios na Ásia e na África, enquanto Sevilha era o ponto de partida e de chegada das expedições espanholas à América. Também era um importante polo tipográfico, onde se imprimia a maior parte dos livros destinados às colônias.

Além dessas cidades, Burke destaca a importância de Paris e Londres -- que sediavam embaixadas, companhias de comércio e instituições culturais -- e ainda a de Roma. Segundo ele, Roma e o Vaticano eram “o quartel-general do mundo católico e das ordens missionárias”, ao qual acorriam embaixadores de lugares tão distantes como o Japão e o Tibete e para onde convergia a correspondência de todas as casas e colégios jesuítas.

Foi por ter acesso a esse material, e ainda a tratados como “Décadas da Ásia”, do historiador português João de Barros, e “Delle Navigationi et Viaggi”, de Giovan Battista Ramusio, que o pensador e diplomata italiano Giovanni Botero (Piemonte, ca. 1544 – 1617) pôde escrever seu famoso tratado “Relazioni Universali”, considerado uma das pedras angulares da historiografia global. Publicado a partir de 1591, em quatro partes (uma quinta só viria à luz no final do século XIX), o livro trata da difusão do Catolicismo pelo mundo, cujas terras e habitantes descreve de forma minuciosa. Sua abordagem não se restringe ao ponto de vista geográfico ou mesmo político; Botero adota uma perspectiva integrada, chegando a tocar em questões sociais e antropológicas. A obra foi um best-seller imediato, que teve quase cem edições entre os séculos XV e XVI e foi traduzida para o latim, o alemão, o espanhol e o polonês.

Conheça o tratado de Botero, digitalizado a partir do microfilme. A edição é de 1599 e integra o acervo da Divisão de Obras Raras.

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 4

Segundo Bltyhe Alice Raviola, da Universidade de Milão, o pensamento de Botero se aproxima do de Bartolomé de las Casas (Sevilha, ca. 1474 – 1566), contrário à escravização e extermínio dos povos indígenas, embora favorável à evangelização. Nisso concordavam os missionários de todas as denominações; a catequese foi, se não o principal, pelo menos um dos mais importantes motivos pelos quais livros e prensas foram trazidos à América.

A primeira oficina tipográfica, proveniente da oficina de Juan Cromberger, de Sevilha, foi estabelecida na cidade do México, sob a responsabilidade de Juan Pablos. “Breve y más compendiosa doctrina Christiana en lengua Mexicana y Castellana”, do bispo Juan de Zumárraga e datado de 1539, foi o primeiro livro a ser impresso no continente americano. As obras seguintes foram também destinadas à evangelização: além de livros religiosos propriamente ditos, incluíam vocabulários e gramáticas em línguas indígenas, que continuaram a ser publicados na América Latina ao longo dos séculos seguintes.

Veja o traslado de uma licença concedida em 1703 pelo vice-rei do Peru, Melchor Portocarrero Lasso de la Vega, para que se imprimissem livros da doutrina cristã em guarani, a ser utilizados nas missões da província de Tucumán, atendendo ao pedido do padre Hernando de Aguilar, procurador geral da Companhia de Jesus. O documento pertence à Coleção Pedro de Angelis, que integra a Divisão de Manuscritos.

De modo geral, a circulação de livros nas colônias seguia os mesmos critérios utilizados nas metrópoles. As mesmas licenças eram necessárias para imprimir; as mesmas obras e autores eram censurados e lidos às escondidas pela pequena parcela alfabetizada da população. Alguns países do chamado Novo Mundo tiveram universidades ainda no século XVI, como o Peru e a atual República Dominicana, enquanto outros tiveram que esperar bem mais.

No Brasil, tanto a imprensa como as instituições de ensino superior só puderam existir após a mudança da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Isso, porém, não impediu que livros circulassem, que se transmitissem ideias e conhecimento, que se refletisse, debatesse e questionasse a ordem das coisas.


Parte do traslado da licença da impressão de livros em guarani, concedida em 1703.