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História do Livro | Livros e Leitores no Brasil Colonial

07 dez 2020

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Ao contrário dos países colonizados pelos espanhóis na América do Sul, o Brasil só veio a ter imprensa após a chegada da Família Real portuguesa, em 1808. Antes disso, os livros que circulavam vinham do estrangeiro, e foram muito poucos durante os séculos XVI e XVII, com exceção dos existentes na colônia francesa conhecida como França Antártica. Ali, a maior parte do material impresso seguia a inspiração calvinista, ao passo que no restante da colônia os livros eram utilizados, principalmente, para a catequese nos moldes da Igreja Católica.

Segundo Luiz Carlos Villalta, da UFOP, os colégios jesuítas eram os únicos a possuir uma quantidade considerável de livros: 3.000 no da Bahia, em 1694, 1.263 no do Pará em 1718, enquanto a biblioteca do Rio de Janeiro tinha espaço para acomodar até 5.000 volumes. Não havia uma instituição jesuita, mesmo nas localidades mais remotas, que não possuísse pelo menos algumas obras. A finalidade desses acervos era dar suporte às atividades educacionais e de catequese (que, na verdade, andavam par a par).

Em contraste, as bibliotecas familiares no Brasil dos primeiros séculos da colônia eram muito modestas, contando com uns poucos títulos de obras devocionais e um número ainda menor de livros de ficção, entre os quais se encontraram exemplares das “Novelas” de Miguel de Cervantes. Nos inventários constam algumas obras proibidas de circular pela inquisição. Uma delas, muito célebre, é “A Diana”, de Jorge de Montemor, livro publicado por volta de 1559 e considerado a primeira novela pastoril da literatura castelhana (de autor português, mas escrita originalmente em espanhol e surgida com o título “Los Siete Libros de La Diana”), A obra teve pelo menos trinta edições em espanhol e várias em francês e ajudou a popularizar o gênero, que traz jovens pastores e pastoras em idílios amorosos, frequentemente envolvendo mitos clássicos e magia. Cervantes a mencionou em “Dom Quixote”, afirmando que não deveria ser queimada como outros livros, mas a Inquisição portuguesa pensava de forma diferente – e assim, em 1591, uma lisboeta que vivia em Salvador, Paula de Siqueira, foi acusada por um padre de possuir e ler a novela considerada “sensual”. Muito depois, já em 1768, outro padre, Antunes Leitão, teve de pedir licença à Mesa Real Censória para ler a obra, que aparentemente ainda era proibida.

Veja um exemplar de 1570, impresso em Antuérpia, de “Los Siete Libros de la Diana”, pertencente à Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.

O aumento da urbanização, com mais pessoas trabalhando no comércio e em diferentes ofícios e mais funcionários administrativos, contribuiu para que, a partir do século XVIII, houvesse mais livros e bibliotecas particulares. Ainda não existiam universidades no Brasil; os filhos de famílias de posses estudavam no exterior, frequentemente em Coimbra, e de lá traziam livros, o mesmo acontecendo com os funcionários do Governo, religiosos enviados para as igrejas da colônia e algumas categorias profissionais.

Villalta salienta que, ao se mudar de Portugal para o Brasil, ou vice-versa, os viajantes deviam registrar os títulos dos livros em suas bagagens nos órgãos censórios; isso pode ter sido um transtorno para alguns, mas deixou uma rica documentação que hoje pode ser usada como fonte de pesquisa. Sabe-se, assim, que as maiores bibliotecas pertenciam a advogados e sacerdotes, com os médicos, cirurgiões e navegadores vindo em seguida. Em todos os grupos predominavam as obras relativas ao exercício de suas profissões, havendo também alguns títulos literários. Entre eles, obras de Camões, Cícero, Horácio e John Milton, e ainda livros ilustrados, muitos dos quais censurados, como as obras de Voltaire.

Na década de 1740, o tipógrafo António Isidoro da Fonseca, já bastante conhecido em Portugal, se instalou brevemente no Rio de Janeiro, onde teria feito imprimir quatro folhetos. Segundo o bibliotecário e pesquisador de livros raros Thalles Siciliano, Fonseca burlou as proibições pedindo licença aos órgãos censórios religiosos, mas não consultou as autoridades civis; quando estas tomaram ciência do feito, a oficina foi desmontada e o impressor enviado de volta a Portugal, onde o Conselho Ultramarino recusou seu pedido de se reinstalar no Brasil.

Veja um dos raros folhetos impressos por Fonseca, datado de 1747, pertencente à Divisão de Obras Raras.

Ainda no século XVIII, refletindo as transformações que aconteciam na Europa, surgiram no Brasil as primeiras academias literárias, as quais, segundo a pesquisadora Kátia de Carvalho, estimularam a leitura na colônia. Ao mesmo tempo, trouxeram e passaram a debater ideias iluministas, às quais o governo português era contrário. Por isso, as academias e sociedades científicas sofreram perseguição; muitas tiveram livros confiscados e foram fechadas, tais como a Sociedade Literária do Rio de Janeiro, que tinha como secretário o poeta Silva Alvarenga. Também recrudesceu a vigilância sobre as obras admitidas na alfândega. Ainda assim, vários livreiros se estabeleceram no Brasil. Rubens Borba de Moraes faz menção a Manoel Ribeiro dos Santos, radicado em Vila Rica, enquanto outros pesquisadores listam pelo menos quatro livreiros no Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XVIII. A maioria era de origem francesa, o que pode ser explicado pelo fato de os livros franceses terem grande circulação em Portugal. Isso é irônico, de certa forma, já que as ideias iluministas, que a Coroa portuguesa buscava coibir, tinham surgido e germinado exatamente na França.

E foi um ultimato vindo da França que trouxe ao Brasil a família real portuguesa, com o que, por fim, a imprensa chegou ao país. Mas isso já é outra história.


Detalhe da página de rosto de um folheto impresso na oficina de António Isidoro da Fonseca, no Rio de Janeiro, em 1747.