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História do Livro | Relatos sobre o Brasil: o Livro de Hans Staden

02 set 2020

Artigo arquivado em História do Livro
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No século XVI, quando os prelos e oficinas tipográficas já haviam se multiplicado e alcançado boa parte da Europa, foram publicados os primeiros relatos de viajantes sobre o Brasil. O mais conhecido é o do alemão Hans Staden, que teve suas aventuras (ou melhor, desventuras) entre os tupinambás popularizadas por meio de várias edições, traduções e adaptações.

Hans Staden (Homberg, Hesse, ca. 1525 – Wolfhagen, Hesse, ca. 1576) foi um mercenário de infantaria que esteve duas vezes no Brasil. A primeira viagem se deu entre 1547 e 1548, a bordo de um navio comercial português. A segunda se iniciou em 1549, num navio espanhol que, dirigindo-se à região do Rio da Prata, naufragou perto de Santa Catarina. Staden chegou a São Paulo dois anos mais tarde e foi contratado pelo governador-geral Tomé de Sousa para ajudar na defesa do litoral, vivendo numa fortificação na Ilha de Santo Amaro. No início de 1554, foi capturado por tupinambás, que o mantiveram em cativeiro durante nove meses, sempre sob a ameaça de ser morto e devorado. Por fim, conseguiu que o deixassem partir numa nau francesa.

Staden regressou à Alemanha em 1555. Em 1557, seu livro – cujo longo título pode ser traduzido como “Verdadeira História dos Selvagens, Nus e Devoradores de Homens, Encontrados no Novo Mundo, a América” – foi publicado na oficina de Andreas Kolbe, em Marburg, Alemanha. Era dividido em duas partes: a primeira, o relato de suas viagens ao Brasil, e a segunda, uma compilação de textos curtos sobre usos e costumes do povo tupinambá.

O livro continha um mapa e 52 xilogravuras, quase todas feitas especialmente para a edição, com base nos desenhos do próprio Staden. Continha também uma dedicatória do autor, destinada a Philipp, o Magnânimo, landgrave (título equivalente a “conde”) de Hessen, sublinhando a importância de sua fé para mantê-lo vivo em meio aos infortúnios. Por fim, continha um prefácio escrito por uma figura de relevo na época: Johannes Dryander (1500 – 1560), anatomista, astrônomo e matemático, professor da Universidade de Marburg e velho conhecido do pai de Hans, Gernand Staden.

Foi na qualidade de amigo da família e a pedido do autor que Dryander revisou o livro e corrigiu alguns pontos relativos à ciência, especialmente o que se refere à cosmografia, por ele definida como “descrição e medição das terras, cidades e rotas de viagem”. Luciana Villas Bôas afirma ser essa uma concepção típica do Renascimento, embora o livro de Staden não tenha sido organizado segundo o modelo das obras de cosmografia, e sim como aquilo que a pesquisadora denomina “coletânea de viagens”: em vez de reforçar o conhecimento já consolidado pelos clássicos, valoriza a experiência pessoal e o testemunho ocular de seu autor, o qual, por várias vezes, Dryander assegura não estar mentindo nem agindo em busca de fama. Na segunda parte do livro, é também o olhar de Staden que fornece as informações sobre os tupinambás, sistematizadas de acordo com categorias próximas às que se então se utilizavam na etnografia.

Verídico ou não, e com um título instigante – num mundo em que monstros marinhos ainda figuravam em mapas, e em que havia tanto por descobrir, um relato em primeira mão sobre antropófagos certamente atrairia compradores --, o livro de Hans Staden, organizado e publicado sob a supervisão de Dryander, alcançou um rápido sucesso. Kolbe, o impressor, ligado à Universidade de Marburg e que vinha sofrendo com a contenção de gastos, empenhou todos os seus esforços para produzir uma bela edição, com tiragem de 1.000 ou 1.500 exemplares; o livro foi levado à já famosa feira de Frankfurt e vendido a preço acessível. Fez tanto sucesso que o reimprimiram no mesmo ano... e pelo menos duas edições clandestinas saíram por outras tipografias.

Nos tempos que se seguiram, a obra continuou a ser reeditada, e logo foi traduzida para outros idiomas. A primeira tradução holandesa saiu em 1558, e no século XVII haveria outras, estimuladas pela vinda de holandeses para o Nordeste do Brasil. Em 1592 surgiu uma tradução para o latim, no âmbito da coletânea sobre viajantes publicada por Théodore de Bry (1528 – 1598), que usou as xilogravuras de Staden como base para fazer matrizes em metal.

A primeira edição em português só apareceu em 1892, com tradução de Tristão de Alencar Araripe e publicada na Revista do IGHB; excluía tanto as apresentações de Staden e Dryander quanto as xilogravuras, importantes para a compreensão da obra e de seu conteúdo. Em 1900, Albert Löfgren publicou uma versão integral, buscando aproximar sua linguagem daquela utilizada por Staden; em 1925, Monteiro Lobato fez o contrário, reescrevendo o texto de Löfgren com um vocabulário, segundo ele, mais popular e se limitando à primeira parte do livro. Publicou-a por sua empresa, a Cia. Editora Nacional, com uma tiragem de 3.000 exemplares. E, dois anos depois, produziu uma versão voltada para as crianças, com Dona Benta contando a seus netos a história de Hans Staden.

Hoje, o livro conta com novas edições, foi adaptado para os quadrinhos e para o cinema. Sua importância como documento é perene, visto se tratar de uma das primeiras obras etnográficas sobre o Brasil e a primeira a apresentar informações sistematizadas, além daquelas que se inserem ao longo do relato do viajante.

Conheça o livro de Hans Staden, que integra a Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional. Perceba como algumas xilogravuras têm detalhes que se assemelham a mapas. O prefácio de Dryander está na página 9 da obra digitalizada.


Além de muitas vezes se assemelharem a mapas, mostrando a localização de rios, povoados e aldeias, as xilogravuras do livro de Staden retratavam as naus europeias de forma muito fiel.