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História e Memória | 80 anos atrás, um caderno em branco chegava a Anne Frank

01 jul 2022

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e marcado com as tags Anne Frank, Antisemitismo, Diário de Anne Frank, Holocausto, Literatura Mundial, Secult, Segunda Guerra Mundial

No último dia 12 de junho passaram-se exatos 80 anos do dia em que Annelies Marie Frank fizera seus 13 anos. Teria sido um aniversário qualquer. No entanto, foi nessa ocasião em que a adolescente ganhara de seu pai, Otto Heinrich Frank, um diário. Nele, pelos dois anos seguintes, Anne escreveria, sem se dar conta de que para o mundo, como era sua vida naquele momento: judia, vivia às escondidas com a família numa Amsterdã ocupada por forças nazistas, em plena Segunda Guerra Mundial. Originários de Frankfurt, na Alemanha, os Frank haviam se refugiado em paragens holandesas já em 1934, apenas um ano após a ascensão do Partido Nazista ao governo alemão. Mas a febre armamentista e os desejos de expansão de Adolf Hitler os alcançou: em maio de 1940 os Países Baixos foram tomados de assalto pela Wehrmarcht, iniciando também por lá a perseguição aos judeus. Otto e sua esposa Edith, juntos das filhas Margot e Anne, tiveram que abandonar sua casa, mas não saíram da cidade. Por pouco não conseguiram um visto para emigrar para Cuba. Ocultos e de improviso, a partir de julho de 1942 dividiram então compartimentos anexos a um imóvel comercial – tendo pouquíssimo alimento – com outra família em fuga, os van Pels, contando com a solidariedade de um punhado de amigos e conhecidos. Em 12 de junho de 1942, enfim, às vésperas de viver os dias de clandestinidade que mudariam sua vida, a caçula dos Frank já tivera aniversários mais alegres. Mas vivia-se, como se podia. Eis a origem de O diário de Anne Frank.

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Quando começou a escrever em seu diário, Anne Frank não imaginava que o mesmo, um dia, seria lido por qualquer pessoa que não ela. Ali estava, afinal, sua intimidade, que deveria permanecer trancada a sete chaves. Descrevendo seu dia-a-dia, a jovem discorria em detalhes não apenas seus anseios e angústias, mas sobre sua vida em face à perseguição nazista. Expunha como eram sua família e seus companheiros de esconderijo, como se desdobravam os principais eventos políticos da guerra, que planos colocaria em prática quando o horror acabasse, etc.

A partir desses escritos, Anne então passou a alimentar um projeto ambicioso plano: assim que a guerra anunciasse seu fim, escrever uma obra de ficção que relatasse à posteridade a peculiaridade brutal daqueles dias – mais ou menos como fizera, de fato, o italiano Primo Levi, apenas dez anos mais velho do que Anne. Nesse sentido, em certo momento a adolescente chegou a editar alguns trechos de seus escritos, melhorando sua prosa e alterando nomes de pessoas citadas: daí que os van Pels viraram van Daans. E que cada dia relatado foi passado a limpo como uma carta a uma amiga, a fictícia Kitty, inspirada numa personagem criada pela escritora holandesa Cissy van Marxveldt, que Anne amava.

Mesmo quem nunca leu os Diários de Anne Frank sabe que o fim de sua autora foi triste. Os Frank e os Pels foram detidos pela Gestapo em 4 de agosto de 1944, por uma delação anônima. Foram direto para campos de concentração. Junto da irmã, Anne acabou em Bergen-Belsen, falecendo de tifo epidêmico no ano seguinte, quando contava apenas 15 anos de idade. Otto passara pela infeliz experiência de sobreviver a ela, e também a Margot e à esposa, Edith. Liberado do cárcere de Auschwitz em 27 de janeiro de 1945, voltou para Amsterdã, onde, ao fim daquele ano, percebeu que era o único da família ainda vivo. Então, recebeu em mãos, de uma conhecida que antes havia ajudado a família a se esconder, o diário feito por sua caçula, deixado para trás.

O diário lido por Otto estava recheado de considerações carinhosas da jovem à figura paterna, sua maior influência no âmbito familiar. Não há como imaginar a dor e o amor que então sentira, como pai, como ser humano. “Eu não tinha ideia da profundidade de seus pensamentos e sentimentos. Ela guardou todos esses sentimentos para si mesma", disse, depois de ler os escritos de Anne, surpreso com a precisão e com o refinamento da jovem escriba. Pudera. Anne planejava ser escritora, quando adulta. Ao menos esse foi um sonho realizado.

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Publicados em 1947, quando as feridas da Segunda Guerra Mundial ainda eram muito recentes, os relatos de vida Anne Frank de 1942 a 1944 foram imediatamente reconhecidos como um dos mais sensíveis e icônicos memoriais sobre o Holocausto e o terror nazista. O livro que então chegava às livrarias foi elaborado a partir da fusão de duas versões manuscritas: os diários nus e crus de Anne, propriamente ditos, e a narração variante elaborada pela autora como produto publicável. Preparados e editados por Otto, os originais foram remetidos à historiadora Annie Romein-Verschoor, que os tentou publicar, sem sucesso. Em seguida, seu marido, Jan Romein, escreveu sobre eles em um artigo para o jornal holandês Het Parool, publicado a 3 de abril de 1946. Ali, dizia que “a voz de uma criança” era capaz de “concretizar toda a hediondez do fascismo, mais do que todas as evidências de Nuremberg reunidas”, em alusão aos julgamentos de Nuremberg, que enquadraram parte das monstruosidades do expurgado Terceiro Reich. Foram tais palavras que despertaram o interesse das editoras.

Het Achterhuis, algo como “O anexo”, ou “A casa dos fundos” foi a primeira edição do Diário de Anne Frank, publicada em 1947, na Holanda. O livro foi rapidamente vertido para o francês e o alemão, publicado já em 1950 nos países europeus respectivos a essas línguas, e em 1952 chegou ao Reino Unido e aos Estados Unidos. Nestes, recebeu o título mais familiar aos leitores brasileiros: Anne Frank: The Diary of a Young Girl. Dos EUA, onde passaram a fazer parte do currículo escolar, os escritos da filha mais jovem dos Frank foram catapultados à categoria de obra prima, tornando-se emblemáticos na cultura popular ocidental. Premiados filmes, telenovelas, peças de teatro e demais adaptações ajudam a reforçar o legado de Anne Frank.

Anos mais tarde, conforme o livro se estabelecia como um marco na literatura mundial, se acenderiam algumas polêmicas. Até chegar às prensas em 1947 os originais sofreram diversos cortes e alterações: por pudores, foram censurados muitos trechos em que Anne expressava sua hostilidade à mãe, narrava suas descobertas amorosas e apontava as mudanças que a puberdade impunha ao seu corpo. Boa parte do material censurado só seria publicada a partir da década de 1990, após a morte de Otto Frank.

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Entre momentos felizes e tristes, de ordem íntima ou calcados em avaliações do mundo ao redor da autora, O diário de Anne Frank que nos chega hoje nos põe à frente dos olhos a conversão de uma criança em adulto, em marcha forçada. Seu estilo preciso e mesmo econômico, como tudo acaba sendo em tempos nefastos, não deixa de ser essencialmente confidente e sensível. O livro materializa e personifica as consequências de uma desumanidade inúmeras vezes evocada em números, numa quantificação estéril e impessoal: entre grupos de extermínio, câmaras de gás e condições de vida precárias em campos de concentração foram cerca de seis milhões de judeus assassinados sob Hitler, dos quase nove milhões então residentes na Europa. Pois Anne Frank se coloca como a sua representante. Como tristemente dizia Primo Levi, ecoando palavras de Jan Romein: "Uma única Anne Frank mexe conosco mais do que incontáveis outros que sofreram o mesmo que ela, mas cujas faces permanecem nas sombras. Talvez seja melhor assim; se fôssemos capazes de absorver o sofrimento de todas essas pessoas, não seríamos capazes de viver”.

Não há como quantificar a dor e a revolta causadas pela brutalidade. Mas, mais do que se lamentar, há que se refletir: para que a atrocidade nunca mais se repita. Ao lermos o que Anne, uma garota comum presa aos grilhões de seu tempo, tinha a dizer por aqueles dias de terror e opressão, expondo seus medos, inseguranças, esperanças, gracejos, desabafos e sensibilidades, percebemos que ela não é um número: é como qualquer um de seus leitores. Pois. Existem várias outras Annes. Garotas que, na juventude, tiveram verve e nervos para relatar preto-no-branco experiências pessoais em meio aos mais sombrios períodos da humanidade. Caso de Esther Hillesum. E de Miriam Chaszczewacka, também. Rutka Laskier. Tatyana Nicolayevna Savicheva. Yoko Moriwaki. Věra Kohnová. Marta Hillers. Marie Vassiltchikov. Mais recentemente, Zlata Filipović e Malala Yousafzai. Anne Frank são elas. Anne Frank somos nós.

 

Explore os documentos:   

Manchete, revista carioca fundada por Adolpho Bloch, judeu de origem ucraniana, abordava em 1955 a adaptação do Diário de Anne Frank ao cinema:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/26555

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/26556

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/26557

 

O Cruzeiro, também do Rio de Janeiro, também revela detalhes sobre o projeto de levar Anne Frank às telas, em 1958: “Hollywood correu mundo para achar a jovem que reviva o sonho e a dor de Anne Frank”, avaliando cerca de 10 mil candidatas nos EUA, na Europa e em Israel. Para ilustrar a reportagem, a revista usava a foto favorita da jovem, onde a mesma havia escrito, ironicamente, a 10 de outubro de 1942: “Esta é uma foto com a qual eu gostaria de me parecer sempre. Então, talvez tivesse uma chance de ir para Hollywood”:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/117039  http://memoria.bn.br/DocReader/003581/117040

 

Ainda em 1958, Clóvis Garcia, em coluna teatral para O Cruzeiro, foca a adaptação do Diário de Anne Frank aos palcos: Pequeno Teatro de Comédia, em São Paulo, encena a versão de Frances Goodrich e Albert Hackett, com direção de Antunes Filho e Dália Palma no papel da protagonista:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/117798

 

Reportagem fotográfica de Vivole Ítalo e Adyr Vieira publicada em O Mundo Illustrado em 1961 mostra um pouco do imóvel em que Anne Frank ficara escondida entre 1942 e 1944, em Amsterdã:

http://memoria.bn.br/DocReader/119601/22681

http://memoria.bn.br/DocReader/119601/22682

 

Wilhelm Harster, Wilhelm Zoepf, Gertrude Slottke: em 1967, Manchete mostra “Os carrascos de Anne Frank no banco dos réus”, em julgamento ocorrido em Munique. Diante do tribunal, “ex-prisioneiros dos nazistas mostram cartazes lembrando o drama da pequena Anne”:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/76940

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/76941

 

“O SS confessa: ‘eu sabia que eles iam morrer’”. Reportagem de Pierre Joffroy, para a Paris-Match, é republicada na Manchete, em 1967, sobre o julgamento dos responsáveis pelas atrocidades com judeus na Holanda durante a Segunda Guerra:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/77340

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/77341

 

“O pai de Anne Frank rompe o silêncio”. Em 1979, Manchete publica reportagem sobre a vida de Otto Frank, então beirando os 90 anos, como sobrevivente do holocausto.

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/184247

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/184248

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/184250

 

Em 1981, Manchete noticia o que poucos até então sabiam: recentemente falecido, Otto Frank “havia retirado 40% do manuscrito” do Diário de Anne Frank, referindo-se a trechos que continham “particularmente descrições de cenas íntimas da família”. Técnicos do governo holandês estudam a publicação “au grand complet” do livro:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/200249

 

Em 1984, ainda na esteira da liberação de manuscritos de Anne Frank com a morte de seu pai, Mário Bendetson anuncia, em edição de Manchete, o lançamento no Brasil de Contos do esconderijo, pela editora Record, reunindo “fábulas, contos, ensaios e uma novela inacabada” de punho da jovem autora. Traduzido da edição holandesa de 1982, “O público brasileiro precisou esperar 40 anos para descobrir que Anne Frank (…) possuía um veio literário não esgotado em seu Diário”. Bendetson exprime perplexidade com as restrições de publicação impostas até ali por Otto: “É estranho, pois não há nada no livro que possa parecer proibido”:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/228580

 

Somente em 1991 o Diário de Anne Frank sem cortes foi publicado, na Holanda e na Alemanha. Publicando extratos antes vetados, em 1992 Manchete revela que “Quarenta e cinco anos após o lançamento da primeira edição do Diário de Anne Frank, (…) uma nova versão mostra a verdadeira face de Anne e coloca em questão a autenticidade da imagem tradicional”.

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/273168

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/273169

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/273170

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/273171

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/273172

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/273173

 

Adulterações nos originais do Diário de Anne Frank levantaram suspeitas quanto à autenticidade da obra como um todo. Perícia nos manuscritos dos anos 1940 afastaram as dúvidas: mesmo sem sua jovem autora imaginar, a obra  permanece “uma verdadeira introdução à própria existência do Holocausto”, segundo José Guilherme Correa, em Manchete, em 1993:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/280603

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/280604

 

As últimas cinco páginas ocultas do Diário de Anne Frank vêm à tona e são publicadas em 1997. Haviam sido arrancadas do caderno original por Otto Frank e ficaram, após sua morte em 1980, em possa de Cornelius Suijk, diretor do Centro Americano Anne Frank, em Nova Iorque. Conforme revelava Manchete, em 1998:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/306116

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/306117