BNDigital

História geral | Um serviço à francesa, por excelência

21 ago 2021

Artigo arquivado em História Geral
e marcado com as tags Democracia, Guilhotina, Idade Contemporanea, Jacobinos e Girondinos, Revolução Francesa, Secult

2021 está sendo um ano atípico? Deveras. 1792, entretanto, não ficou atrás. "Mas, meu caro plumitivo", dirá o amigo leitor, "1792 já passou há muito". Ora, sim e não, estimado legente. É que seus efeitos se fazem sentir até hoje, em meio às complexas idas e vindas da política mundial - quantos e quantos paradoxos, afinal, nos reservam a democracia. Ocorre que em 1792 a Revolução Francesa, iniciada em 1789, seguia a pleno vapor: atingia mesmo seu ápice, em termos de violência. Ao derrubar o desigual Antigo Regime na França, a ruptura foi importante em tamanha escala que passou a marcar, na historiografia, o início da Idade Contemporânea. A burguesia francesa daquele momento, que aos poucos ganhava força e coesão como classe organizada inspirada em ideias iluministas, vinha desde a Idade Média cozinhando em banho-maria uma boa dose de revolta contra os excessos e os privilégios da nobreza e do clero, as figurinhas carimbadas do Estado absolutista. Que sabiam das agruras do povo os ensebados cortesãos de Luís XVI, entocados no palácio de Versalhes, preocupando-se com luxo e etiqueta? Não havia sido por acaso que, em meio à desastrosa gestão do ministro das finanças Jacques Turgot, que só conseguiu tornar a fome no país mais aguda a partir de 1775, tenha sido falsamente atribuída a Maria Antonieta, a chique porém frívola rainha francesa, a frase que, na falta de pão, seus súditos devessem apelar aos brioches. Pouco mais tarde a facção mais radical da burguesia francesa, alimentada pelos vacilos reais, mimosearia a consorte e toda a aristocracia em seu entorno com aquele que viria a se tornar o último grito da moda parisiense, verdadeira coqueluche destinada somente aos VIPs, quisessem ou não, pois os ditames fashionistas são, de fato, tirânicos. Coisa pela qual a nobreza perdia a cabeça. Ora, é claro que estamos assuntando o que seria o novo serviço à francesa de seu tempo: a guilhotina. Num 21 de agosto como hoje, mas no ano da graça de 1792, há exatos 229 anos, pela primeira vez, ela foi usada contra um fidalgo, Louis Collenot d'Angremont, para delírio dos chamados sans-culottes. Seria o primeiro de muitos.

Rápida, limpa (com a devida ironia) e eficaz, a implacável geringonça número 1 da Revolução Francesa era constituída por uma armação de cerca de quatro metros de altura, na qual uma lâmina losangular, de corte oblíquo e peso considerável, é presa por uma corda guiada por um carrasco. Até hoje ela carrega seu nome por conta de um médico, o francês Joseph-Ignace Guillotin. Ele não criou a guilhotina, bolada, aparentemente, por algum sádico medieval. Guillotin sequer era a favor da pena de morte. Apenas sugeriu publicamente, em outubro de 1789, na aurora revolucionária, que, se execuções devessem ocorrer, que se usasse o mecanismo, muito mais humano, ou melhor, menos desumano, do que uma forca ou um machado, até então habituais nos carniceiros círculos punitivos do poder. Bastava soltar a corda e chamar o próximo da fila, sem grande estrebuchamento. Ao contrário do que se costuma dizer, por sinal, Guillotin morreu velhinho, no conforto de seu lar, e não guilhotinado.

No contexto revolucionário francês, a guilhotina foi usada pela primeira vez em praça pública, em rito sumário de pena de morte por decapitação, em 25 de abril de 1792, depois de muitos debates na Assembleia Nacional Constituinte a respeito da legalidade da pena capital. Quem a debutou, afinal, foi um ladrão de estradas. Mas, barril de pólvora que era então a nação francesa, já que a Revolução ainda estava em curso, em processo que levou anos, cerca de quatro meses depois, a 10 de agosto, o palácio de Tulheiras, onde vivia a família real, foi invadido, e seus ocupantes presos. O rei bem que tentou fugir para o exterior, mas fora reconhecido e detido. Acabava de cair a monarquia. Instituído o chamado Tribunal Revolucionário, a tremebunda arapuca cortante passou a funcionar como nunca, de início levando desta para uma melhor condenados por crimes violentos. Naquele momento, a vida de Luís XVI, ex-rei, também estava por um fio, com os incontáveis apoiadores de sua deposição querendo sangue. Assim, naquele mesmo mês de agosto, apenas onze dias após o fim da realeza por aquelas bandas, um contrarrevolucionário era levado à lâmina: Louis d'Angremont, escritor e chefe de bureau militar da Guarda Nacional francesa em Paris, entrou para a história como o primeiro executado por razões políticas na Revolução. Adicionalmente, para grande impressão geral, na época, ele não era qualquer um, mas um nobre.

Antes do fim do reinado, a Assembleia, sabe-se, estava dividida entre os dois grupos que tinham, de fato, o poder nas mãos: burgueses girondinos, menos exaltados e um tanto conservadores, que achavam que o processo revolucionário já tinha trabalhado o suficiente, sobretudo ao parir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a demolição da prisão da Bastilha, e burgueses jacobinos, ainda com sangue nos olhos e fogo nas ventas, que acreditavam que mudanças mais profundas deveriam ocorrer para que de fato a liberdade, a igualdade e a fraternidade aflorassem. Aqueles à direita, estes à esquerda nas dependências da Assembleia, vincando a terminologia quanto a posturas políticas até hoje. Enquanto os girondinos, um tanto mais ricos que os jacobinos, ficavam confortáveis com a perspectiva de uma monarquia constitucional, seus opositores, numerosos, queriam logo a república, e a fórceps. O segundo grupo, plebe rude, numerosa e aviltrada por imemorável exploração, impôs suas regras.

Grupos revolucionários passaram a se organizar em enclaves territoriais, desenvolvendo formas locais de autogoverno - modelo que, aliás, inspiraria a Comuna de Paris, quase 80 anos depois. Isso acontecia num contexto bélico, já que, para piorar a situação, a França estava em guerra com a Áustria e com a Prússia, apenas duas de várias guerras em que o país se envolveria durante seu período revolucionário. Pela instabilidade administrativa, piorada por conflitos internos e pelos interesses e pressões de outras nações europeias, as condições de defesa francesas não eram das mais favoráveis. Entre a falta de confiança popular nas autoridades de um governo ainda provisório recheado de complôs, em setembro de 1792, um mês após a instituição do Tribunal Revolucionário, uma série de massacres varreu Paris, Orléans, Meaux e Reims, vitimando cerca de 1.400 pessoas. A violenta onda jacobina abriu caminho para que, após certo período na prisão, para a alegria do povão, o próprio Luís XVI fosse parar na guilhotina, a 21 de janeiro de 1793. Pouco depois começava o chamado Período do Terror, o mais sombrio na revolução que, anos mais tarde, terminaria na ascensão de Napoleão Bonaparte - mas essa já é outra história.

Com certeza pareceu uma eternidade para quem a viveu, mas a doida explosão sanguinária do chamado Reinado do Terror não foi muito longe, tendo durado menos de um ano. Historiadores consideram que o hiato começou não com as mortes de Louis d'Angremont e Luís XVI, mas a 5 de setembro de 1793, quando o grupo jacobino, liderado por certo Maximilien de Robespierre, impôs o afastamento da facção girondina do poder. Não foi nenhuma manobra parlamentar: a direita foi literalmente expulsa da Convenção Nacional pelos sans-culottes, o mesmo pessoal que havia retirado a família real das Tulheiras na base do porrete. A 10 de outubro, a Convenção, munida de uma nova Constituição, de fato ampliava as conquistas civis da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas o cenário bélico dentro e fora do país complicava sua aplicabilidade. É que no início daquele mesmo ano de 1793 a França revolucionária ainda teve tempo de declarar guerra à Inglaterra e à Holanda - além de curiosamente ter fundado o Museu do Louvre. Fato é que foi dada a partida n'O Terror naquele 10 de outubro, quando a Convenção Nacional declarou, simplesmente, que "O governo provisório da França será revolucionário até a paz". Entendedores entenderiam.

No mês seguinte à derrota dos girondinos, seria a vez de Maria Antonieta acabar com o pescoço na lâmina. Quem te viu, quem te vê, dona Maria. Após sua execução, os operadores da guilhotina devem ter ficado com bursite: até o ano seguinte uma pá de gente, vista como inimiga da Revolução, pertencendo previamente à aristocracia ou não, seria decapitada. Morreram milhares, muitas vezes sem julgamento. Sobrou até para o químico Antoine Lavoisier e para dezesseis carmelitas de Compiègne. Inclusive revolucionários perderam a cabeça, girondinos e jacobinos. Total clima de paranoia e perseguição. Ironicamente, o órgão responsável por gerir a matança em escala quase industrial se chamava Comitê de Salvação Pública, presidido por Robespierre, hoje considerado pai do terrorismo de Estado moderno. O excesso de violência acabou gerando um golpe girondino em 27 de julho de 1794, o chamado 9 de Termidor, fazendo com que o próprio líder fosse guilhotinado no dia seguinte, junto com uma centena de outros jacobinos. Quem te viu quem te vê, seu Max. E que não se pense que a guilhotina sossegou o facho, findo o O Terror.

Verdade seja dita: quem nunca ao menos gracejou a respeito de quem, em tese, bem merece os serviços de uma guilhotina? Entre personalidades públicas, sobra gente nas listas de rejeição popular: da pseudocelebridade aporrinhante ao esportista sem noção, do criminoso pé-de-chinelo ao déspota que parece se esforçar em não fazer sobrar uma mariola nas devastadas terras do país. Aí reside, talvez, algo inerente ao ser humano. O filósofo Jacques Rancière, no mais do que necessário livro "Ódio à democracia", que mostra os paradoxos do modelo representativo, e mesmo a hipocrisia do sistema de governança tido como ideal pelo mundo ocidental, já bem dizia: é normal que julguemos mal aqueles que, de acordo com nossos valores, não estejam aptos a ocupar a posição que ocupam. O progresso democrático que sentimos hoje, aliás, foi se dando aos poucos, em episódios de lutas populares diversos, e nos mais variados campos, e não exatamente por "democratas" oficiais, sempre interessados no estabelecimento de oligarquias. Conforme lembra Rancière: o "governo da maioria" nunca foi de ser confundido com o "governo de qualquer um". Que o digam a sangrenta luta pelo sufrágio na Inglaterra e o próprio uso da guilhotina na França, que teve a pena de morte extinta apenas em 1981, sob o governo do socialista François Mitterrand. Ao carrasco dentro de cada um de nós, basta soltar a corda.

Explore os documentos:

O diário do carrasco Sanson, no Suplemento de Cultura d'O Estado de S. Paulo

Em Manchete, em 1956, o cartunista Borjalo faz graça com possíveis usos da guilhotina

Uma "Crônica da Revolução Francesa", no Suplemento de Cultura do Estadão, por Elias Thomé Saliba:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/126

http://memoria.bn.br/DocReader/098116/127


No ano de 1969, reportagem de Manchete sobre penas de morte destaca o uso da guilhotina na França, ainda naquele momento

Finda em 1981, a pena de morte na França era tema de reportagem em Manchete, levando Marcel Chevalier, o carrasco oficial daquele país, à aposentadoria:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/204537

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/204538


Em 1988, Manchete mostra os preparativos para o bicentenário da Revolução Francesa, em Paris: saudades da guilhotina

No ano seguinte, a revista dá o devido destaque aos 200 anos da revolução