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Intelectuais Brasileiros | Alfredo Bosi

10 abr 2021

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Em memória de Alfredo Bosi

“A cultura de um homem culto não é uma coisa inocente.” (Alfredo Bosi)

No Suplemento Literário do Jornal O Estado de São Paulo de 15 de dezembro de 1974, foi publicado um artigo de Alfredo Bosi escrito em memória de seu professor Ítalo Bettarello, que foi também seu orientador de doutorado. Nem todos sabem, mas Bosi, autor da Dialética da colonização e da História concisa da literatura brasileira, entre outros livros fundamentais presentes nos programas dos cursos de Letras em todo o Brasil, começou sua carreira de professor universitário lecionando literatura italiana. Seu vasto conhecimento e seu trabalho como crítico literário o colocaram em destaque entre os intelectuais brasileiros contemporâneos.

“Em memória de Ítalo Bettarello”: com que admiração Bosi descreve o seu mestre! Começa por contar o seu tratamento aos alunos recém-chegados, o seu olhar/ouvir/tocar/sentir aguçado para as obras de arte, a sua leitura “herética” de Benedetto Croce. Bosi usufruiu desta leitura em sua caminhada intelectual, unindo-a a outras, dialeticamente. Faz citações em latim, em italiano, conta reminiscências, mostra as lições aprendidas – e ficam sempre as mais importantes. Aquela de que tiro o maior proveito está no final: há “os títulos, os papéis, as hierarquias, as carreiras” (nos governos, na caserna e também na Academia), mas “a alegria está na concepção”. O que concebem homens tão especiais, tão cultos, como Bettarello? Como Bosi?

No artigo, Bosi escreve também que “a cultura de um homem culto não é uma coisa inocente” – ou seja, não é acidental, nem passa sem modificar o seu meio. Nesta publicação de 1974, ele se refere, obviamente, à cultura letrada, ou à cultura universitária de que viria a tratar anos depois em Dialética da colonização. Neste mesmo livro, Bosi dispõe da etimologia, a partir do verbo no presente colo e dos particípios passado e futuro cultus e culturus, respectivamente, para apresentar suas ideias. De cultus temos o adjetivo “cultivado”, mas também o substantivo “culto”, no sentido religioso; na religião, a ancestralidade é o vínculo da tradição, a fonte da sobrevivência de um grupo como tal. No cultus encontra-se o passado, a origem. Culturus é “o que deve ser cultivado”, o que deve ser transmitido, e a educação é fundamental para este processo. Existe uma “dimensão de projeto”, como ele mesmo chama, que faz brotar planos para o porvir ainda no hoje.

Volto ao texto de 1974 e à cultura (letrada) de um homem culto: Bosi não foi meu professor senão por meio dos livros, ou de outros professores, alguns dos quais talvez alunos seus. No entanto, observo-o atentamente, tanto quanto consigo, pelos textos e pelas aulas de outros. Vejo nele Bettarello, vejo Croce – sua “ancestralidade intelectual”. Nas Letras há espaço para todas as culturas, classificadas sob diferentes critérios e igualmente respeitadas. Paradoxalmente, acaso não haverá nelas hoje espaço para a cultura letrada, nos moldes do que se entenderia pela “cultura de um homem culto” do artigo, que deseja conhecer outras línguas, compor versos em esquemas regulares, ler obras clássicas (e usufruir da leitura), ouvir música erudita, por exemplo? Será que este “culto” ficou mesmo no passado? Será que o que considerávamos “vasto conhecimento” tornou-se raro – ou algo que não vale a pena cultivar? Ou talvez seja um pouco mais simples: apenas o fato de que “as coisas belas deste mundo só existem depois que a nossa atenção despertou para elas”, como Bosi escreve, e muita gente ainda dorme ou está focada em outros objetos, ou objetivos.

Esta cultura não é uma coisa inocente. Mais que simplesmente citar frases memorizadas, lançar nomes de autores e obras em comentários brevemente conectados ou exercitar a retórica à romana, a cultura letrada é uma herança que pode ser transmitida – ou antes cultivada – para o progresso desta geração e das próximas. Uma educação nesta base vai exigir, também, “uma defesa miúda e dolorosa” – uma atitude realmente revolucionária.


Suplemento Literário do Jornal O Estado de São Paulo de 15 de dezembro de 1974 (edição n. 907).