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Literatura | A Voz Poderosa de Eneida

20 set 2021

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Eneida de Moraes (Belém, 1904 – Rio de Janeiro, 1971), ou apenas Eneida, como preferia que a chamassem, foi um dos nomes mais importantes da literatura paraense, além de incansável defensora da igualdade e da justiça social.

Filha de um comandante de navio, que viajava pelos rios da Amazônia e de lá trazia lendas e histórias dos ribeirinhos, Eneida aprendeu a ler com sua mãe. Aos sete anos, sem que a família soubesse, inscreveu-se no concurso de contos infantis do “Tico-Tico” e ganhou o primeiro prêmio. Aos dez foi matriculada no internato do Colégio Sion, em Petrópolis – RJ. Voltou a Belém em 1918, quando a cidade efervescia com um renovado movimento cultural, e travou conhecimento com poetas e escritores. Eunice Ferreira Santos, da UFMG, conta que Eneida passou a integrar o grupo chamado “Associação dos Novos”, dos quais também faziam parte nomes como Peregrino Júnior, Paulo de Oliveira e Abguar Bastos.

Aos 19 anos, atuando como secretária e colaboradora eventual da revista “A Semana”, Eneida perdeu a mãe para a gripe espanhola. Ingressou na faculdade de Odontologia, profissão que nunca exerceu, casou-se e teve dois filhos. O casamento terminou em poucos anos, e foi quando Eneida passou a assinar seus trabalhos apenas com o primeiro nome. A partir de 1927, escreveu para a revista “Belém Nova” e para o jornal “Para Todos”, dirigido por seu amigo Álvaro Moreyra, que, juntamente com a esposa Eugênia, teve um importante papel na vida e na carreira da escritora paraense.

Leia “Este é o meu testamento”, crônica publicada no jornal “Para Todos” em 1927, ainda assinada como “Eneida Costa de Moraes” (Hemeroteca Digital).

Por algum tempo, Eneida fez parte de um grupo modernista liderado por Abguar Bastos, que contestava alguns posicionamentos de Oswald de Andrade. As divergências, porém, não eram grandes, e ela acabou por publicar dois poemas na revista de Oswald, “Antropofagia”, em ambos fazendo referência à cultura amazônica. Mais perto do final dos anos 1920 passou a escrever críticas literárias e crônicas políticas no jornal “O Estado de São Paulo”. Em 1929 saiu seu primeiro livro, “Terra Verde”, contendo poemas já publicados em periódicos que, mais tarde, ela qualificaria como “adolescentes”.

Em 1930, a escritora recebeu o Prêmio Muiraquitã, outorgado por intelectuais da Amazônia, pela participação na vida literária do Pará. Logo a seguir, foi viver no Rio de Janeiro, onde frequentava assiduamente a casa dos Moreyra; ali conheceu e passou a conviver com artistas e escritores como Vinicius de Moraes, Di Cavalcanti e Manuel Bandeira. Em 1932 ingressou no Partido Comunista e, por algum tempo, residiu em São Paulo, participando do movimento revolucionário, da Aliança Nacional Libertadora e da União Feminina do Brasil. Foi presa em 1936 e ficou um ano e meio na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, dividindo a cela com várias mulheres, entre as quais Maria Werneck de Castro, Nise da Silveira e Olga Benário Prestes. Ali escreveu vários contos, um dos quais foi incluído em antologia por Graciliano Ramos, outro detento que conheceu na prisão e que a ela se referiu em “Memórias do Cárcere” como “mulher de voz forte e enérgica”.

Nos dez anos que se seguiram, Eneida passaria por várias outras prisões, enquanto continuava a militar e a escrever para periódicos alternativos. Em 1947 participou da fundação da União Brasileira de Escritores e tornou-se uma das redatoras do jornal “O Momento Feminino”; foi quando aprofundou seus estudos sobre o feminismo, que vinham desde a década de 1928.

Leia artigo de Eneida em “O Momento Feminino”, publicado em 1947, com notícias internacionais que dizem respeito a mulheres (Hemeroteca Digital).

No início de 1950, a escritora passou algum tempo na Europa. De Paris, escreveu para diversos periódicos, tais como “Manchete” e “Diário de Notícias”. Neste permaneceria até sua morte, em 1971. Regressou ao Brasil e passou a pesquisar e escrever sobre cultura brasileira, folclore e festas populares, especialmente o Carnaval, um de seus temas favoritos. Sobre ele publicou inúmeros artigos e o livro “História do Carnaval Carioca” (1958), a primeira obra de peso sobre o assunto. Pouco antes havia publicado, entre outros livros, “Cães da Madrugada” (1954) e “Aruanda” (1957), que inclui a crônica “Companheiras”, um relato comovente e impactante sobre o convívio com outras presas políticas na Casa de Detenção.

Leia sobre o lançamento de “Cão da Madrugada” na “Última Hora”, 1954 (Hemeroteca Digital).

Leia reportagem de Eneida sobre Carnaval e Literatura na revista “Leitura”, 1958 (Hemeroteca Digital).

Eneida escreveu outros livros nos anos seguintes, como o autobiográfico “Banho de Cheiro” (1962) e “Molière Narrado para Crianças” (1965). Algumas de suas obras permanecem inéditas. Em entrevistas na década de 1960, a autora se dizia “satisfeita com a própria vida”, apesar de trabalhar muito, cerca de 14 horas por dia, e de não poder distribuir gratuitamente seus livros como gostaria. Definiu-se, também, como “uma mulher do povo”, a quem interessavam todas as coisas do Brasil. Até o fim da vida militou a favor da justiça e da igualdade, tanto por meio de seus textos -- cheios de um “lirismo matizado de social”, como os define Josse Fares, da UNAMA --, quanto por iniciativas no campo da cultura e da educação de crianças e adultos, incentivando a fundação de escolas e idealizando um Museu da Imagem e do Som, hoje funcionando em Belém. Segundo depoimentos, era muito generosa com outros escritores, especialmente iniciantes, que procurava encaminhar e apresentar a editores.

Veja um cartão de Eneida a Arthur Ramos, não datado, apresentando o escritor paraense Dalcídio Jurandir (Divisão de Manuscritos).

Ao falecer, no Rio de Janeiro, Eneida teve seu corpo trasladado para Belém, onde poderia, como ela própria declarou, “tornar-se seiva da floresta”. Escolas de samba do Rio e do Pará a homenagearam em seus enredos, e muitos pesquisadores se debruçaram sobre seus trabalhos. Em 2020, após terem estado esgotados durante anos, seus livros “Terra Verde” e “Cão da Madrugada” foram reeditados, fato comemorado por leitores, estudiosos e todos quantos se recordam de Eneida. Como afirmou João de Jesus Paes Loureiro, um dos jovens poetas ajudados por ela e hoje um dos mais importantes autores paraenses, “A lembrança é uma mulher de sentimento livre, de uma grande inteligência, com uma utopia política de um Brasil justo com forte expressão literária (...), pioneira na afirmação da mulher como intelectual independente”.

Eneida retratada no periódico “Para Todos”, 1927.