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Literatura | Baudelaire: fantasma vivo a flanar

31 ago 2020

Artigo arquivado em Literatura
e marcado com as tags Charles Baudelaire, Melancolia, Modernismo, Paris, Poesia, Simblismo

“Enfim! Só! Já não se ouve mais que o movimento de alguns fiacres retardados e estafados. Durante algumas horas possuiremos o silêncio, se não o repouso. Enfim! Desapareceu a tirania da face humana, e já não sofrerei senão por mim mesmo. Enfim! É-me então permitido repousar num banho de trevas! Primeiro, duas voltas na fechadura. Parece-me que girar a chave aumentará minha solidão e fortificará as barricadas que me separam atualmente do mundo. Vida horrível! Cidade horrível!”

Ora, mas se não são palavras de um esteta. De um dândi. De um flâneur. Três atributos para lá de puídos nesse sujeito que encarnou da melhor forma a figura do poeta maldito. E já se vai mais um predicado. Entre tantos outros. Antena da raça, salaz, peixe fora d’agua, ébrio, esquisitão, tremebundo, desocupado, revolucionário, emo, dégénérer, gênio, misógino, hedonista, politicamente incorreto, sempre numa bad. Bad essa a miúdo denominada spleen, termo infinitamente mais chique, e ainda por cima não se tratando de qualquer spleen: era o spleen de Paris. Cidade horrível, é claro, mas que não poderia deixar de ser o lar perfeito para tão peculiar literato. Se hoje é um produto de exportação francês o humor azedo, movido a cigarros, vinho e um nariz que sempre preferia estar colado atrás de um livro, é a ele que se deve isso. Ora, deixemos de lado as pudicícias: hoje é aniversário da morte de Charles Pierre Baudelaire, nosso anti-heroi de testa grande e cenho franzido. Poderíamos lembrar o poeta em seu natalício, ocorrido no longínquo 9 de abril de 1821. Mas não, isso seria, digamos, uma inadequação estética: tal medalhão literário, flor do mal, daquelas que não se cheira, mais inspira lembranças de passamento; o seu, no caso, a 31 de agosto de 1867. Conservemos a melancolia em formol. Que horror.

A medonha senhora de capa preta e foice em punho levou Baudelaire por conta da sífilis. Já um ano antes o poeta sofria de hemiplegia, a paralisia de uma das metades sagitais do corpo. Sua morte, chegada antes do reconhecimento de seu legado, veio para pasto e gáudio da criatura que o antagonizava: o pequeno burguês, espécie do gênero “homem sério”, ordem “pessoa de bem”, filo “cidadão respeitável”, então se reproduzindo com rapidez na França do século XIX. Não só sua obra como sua vida eram parte de um mesmo espinheiro de verrinas contra o indivíduo comezinho, por demais ligado à busca pelo conforto e pelo status social na mesquinha vida convencional para se preocupar com os valores transcendentais da arte. O lançamento da opus magna de Baudelaire, As Flores do Mal, em 1857, dez anos antes de seu falecimento, lhe rendeu um processo na justiça. O motivo não era nada de novo sob o sol da censura: atentado à moral pública. Multado em 300 francos, assim como sua editora, em 100 francos, com todos os exemplares confiscados pelas autoridades, o autor teve que substituir seis dos 100 poemas da obra, apontados como o ultrajante motivo da pinimba. Assim iam os valores burgueses. Depois disso, há quem diga que Baudelaire procurara melhorar sua imagem, ao tentar ingressar na Academia Francesa – o que talvez tenha sido só um subterfúgio para tentar arrancar mais alguns trocados de sua bem posicionada mamãe, que, anos antes acusando-o de pródigo – não confundir com prodígio –, havia conseguido retirar de suas mãos a gestão de sua própria herança paterna. Havia aí a figura de um padrasto, o ainda por cima general Jacques Aupick, em eterno pé de guerra com nosso caro maldito. Caraminholas? Talvez. Bafafá, com certeza.

Se ao menos não inventou o gênero da poesia em prosa – a exemplo de “À uma hora da manhã”, cujo parágrafo de abertura transcrevemos acima –, Baudelaire o levou a outro nível. E, claro, não se contentou com a poesia: também traduziu, teorizou e apostrofou com o devido carinho a obra de muitos artistas, visuais ou das letras – em suma, exerceu um juízo mordaz, requintado, independente, rompido com quaisquer convenções e, portanto, temível em sua obra crítica. Coisa que só contribuía para inflar sua reputação. O poeta era visto com um telhado de vidro e tanto por aqueles que não iam de encontro à sua visão sobre a arte. Para ele, afinal, “o estudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido”. Porque, sim, há algo de perfeição tanto na beleza quanto no horror. Nesse sentido, Baudelaire forçou o cunho de um novo conceito, meio doido, ambivalente: o de “belo-horrível”, que se mostrou necessário na crise em que o poeta ajudara a instaurar no ideal estético da época, calcado em Hegel, que julgava que a arte necessariamente buscava o sublime, o unicamente belo, o verdadeiro. Por que a literatura se embostelaria de feiuras? Bom, o que importa é que, uma vez colocada em xeque essa visão, era dado o primeiro passo de uma caminhada que culminaria na ruptura entre o romantismo e o modernismo que só apareceria no início do século XX. Baudelaire, aí, foi decisivo.

Mas, como, afinal, além da falsa dicotomia entre o feio e o belo, Baudelaire encarava a arte, coisa que até hoje muita gente sequer consegue definir? Boa pergunta. Pode-se dizer que era um autor difícil de definir em poucas palavras. Teve um pé em tudo quanto era “ismo”: parnasianismo, romantismo, decadentismo, ocultismo, misticismo, satanismo... Dando um salto para a frente, influenciou mesmo o surrealismo, bem como a cultura beat, o movimento hippie e a contracultura dos anos 1970, cem anos depois de bater as botas. Ressaltemos ainda, para aqueles mais ligados nas formalidades literárias, que Baudelaire via a arte num sentido absoluto, onde esta se distingue da ideia de natureza. Apontado como precursor do simbolismo e pai da poesia dita moderna, embora tenha dialogado com inúmeras vertentes estéticas sem sequer ter defendido uma causa em seus escritos, nosso mal humorado literato visava a apreensão da realidade concreta através de correlatos objetivos, não raro imagens da vida cotidiana que cabiam como uma luva nas sensações que queria expressar – sem, no entanto, cair na tentação da subjetividade extrema. Assim se criava uma estética, em suas palavras, “contendo a um só tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista”, este devidamente diluído no meio social, para bem e para mal. E isso tudo, cabe notar, num momento em que, dada a intensificação da urbanização europeia a meados do século XIX, onde aliás já se sugeria a cultura de bombardeio de imagens aos olhos da massa espectadora, mudavam-se substancialmente as sensibilidades artísticas, em geral. Baudelaire era o homem certo no lugar certo e no momento certo, apesar de ser todo errado. No fim das contas, que poeta de quilate não é maldito?

É nesse ponto em que abrimos um parágrafo específico para tratar da solidão, tão importante na vida e no projeto baudelaireano. N’As Flores do Mal, nosso autor já matizava a figura do poeta como um albatroz que, antes voando livre, solene e belo, caía nas mãos de marinheiros, que lhe cravejavam um cachimbo ao bico para pura diversão. Para a ave, sequer adiantava sair correndo: impossibilitada de voar, tampouco poderia correr, com suas asas, embora imponentes no ar, jazendo como dois trambolhos desajeitados e inúteis ao chão. Como não ser um esteta, uma pessoa desligada das preocupações cotidianas rente ao chão, como trabalho e dinheiro, possuindo asas assim, capazes da mais altiva arte de voar e inerentes à mais completa humilhação? Cá está o spleen, essa forma de vazio ou tédio existencial, estado nublado e borocochô da alma capaz de gerar certa fossa pensante; sentimento presente desde a Antiguidade no discurso sobre a chamada “bile negra”, que seria secretada pelo baço para nossa pura melancolia – coisa não exclusiva do povo europeu, haja vista o adjetivo “esplenético” escrito por um embaçado Arthur Azevedo, num poema seu que só poderia se intitular “Que horror”. Coisa de poeta, sempre cercado de incompreensão, sozinho, portanto, mesmo no meio da multidão. Melhor dar uma volta para espairecer, ou ainda: melhor flanar, perambular só sem rumo pela cidade, sem se fixar em lugar algum, mas captando cenas aqui e ali e enchendo o sótão de macaquinhos. A solidão de tal trajeto, bem como o “estar apenas de passagem”, numa cidade-estado-de-espírito prenhe de sugestões ao observador atento, são as chaves tanto para a escrita de Baudelaire quanto para sua leitura: é no transitório, no efêmero que incide na ideia de urbe, captada pelo flâneur na rua ou no teatro de sua imaginação, que se fixa a eternidade. É poesia. E é fotografia.

Dizia Walter Benjamin, em seu texto “Sobre alguns temas em Baudelaire”, tratando da fugidia e fragmentária percepção da realidade, por parte do embasbacado pedestre-espectador das urbes modernas: “a aparição que fascina o habitante da metrópole – longe de ter na multidão somente a sua antítese, somente um elemento hostil – é proporcionada a ele unicamente pela multidão. O êxtase do citadino é um amor não já à primeira vista, e sim à última. É uma despedida para sempre que, na poesia, coincide com o instante de enlevo”. No pós-Baudelaire, tal abordagem desagregada sobre o mundo observado e sentido influenciaria mesmo os todo-poderosos Stéphane Mallarmé e Arthur Rimbaud, sem contar todo um batalhão de simbolistas e decadentistas na França e pelo mundo. Tamanha fecundidade, é bem verdade, também deu pela veneta: com todo o respeito, muitos poetas de burleta surgiram, assim, aos borbotões; qualquer estafermo a arriscar uns versinhos não podia, então, em hipótese alguma, deixar de copiar Baudelaire aqui ou ali. Um horror.

Impossível saber que diria Baudelaire a respeito de seus até hoje numerosos imitadores, na poesia e fora dela. Teria feito escola, feito valer sua crença? Ou ainda se sentiria uma ilha de circunspecção num mundo esbregue, piegas e absolutamente pancada das ideias? Independentemente do que achasse, talvez sua resposta fosse a mesma: é preciso diluir-se, desprender-se de padrões, ter ojeriza à mesmice, chamar para a briga a idiotice e entrar em comunhão com o gozo febril. Um libelo contra a superficialidade, um paradoxo em relação à fragmentação do sujeito moderno? Sabe-se-lá. Mas, se o dileto leitor destas linhas algum dia se sentar próximo ao túmulo de Charles Baudelaire, no Cemitério de Montparnasse, onde, por pura ironia e eterna iracúndia de tão irritável defunto, nosso poeta jaz junto à família de seu esconjurado padrasto, talvez ouça um gorjeio fantasmagórico (jamais melodramático) em clave etílica, mais ou menos assim: “Há que estar sempre embriagado. Tudo está nisto: é a única questão. Para não sentir o terrível fardo do Tempo que lhes dilacera os ombros e os encurva para a terra (...). Mas de quê? De vinho, poesia ou virtude, a escolha é sua. Mas embriaguem-se”. Fantasmas não existem, mas, para efeitos de spleen, suponhamos que sim, só por hoje. Tim-tim.