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Literatura | Carlos Zéfiro: 100 anos, sem vergonha

30 nov 2021

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e marcado com as tags Carlos Zefiro, Centenário de Carlos Zefiro, Erotismo Brasileiro, HQ, Quadrinhos Brasileiros, Secult

Neste ano, o pacato funcionário público carioca Alcides Aguiar Caminha, detentor de respeitável carreira no departamento de imigração do Ministério do Trabalho, completaria 100 anos, vivo fosse. Uma figura anônima? Sim e não. O seu Alcides tinha vida dupla. Se tornou para lá de conhecido no ramo editorial brasileiro - sobretudo em suas fileiras menos requintadas - como Carlos Zéfiro, quadrinista erótico na ativa entre as décadas de 1950 e 1970. Nascido a 26 de setembro de 1921 e falecido em 5 de julho de 1992, o artista atingiu a categoria de "cult" entre os anos 1980 e 1990. Em 1992 e 1993 foi laureado pelo conjunto de sua obra no Troféu HQ Mix e no Prêmio Angelo Agostini, respectivamente. Pudera. Em tempos pudicos e vigilantes, suas bandas desenhadas de pura saliência eram vendidas clandestinamente em bancas de jornal, de forma dissimulada, sob o profano e informal título de "catecismos". Caminha, aliás Zéfiro, não era nenhum prodígio das belas artes: como bom fenômeno da cultura popular, traçava por cima de outras imagens, aprendendo a desenhar sozinho, do jeito que queria e o que bem entendia. E entendia de uma coisa: volúpia. Publicou no mínimo 500 revistinhas em quadrinhos artesanais, com cerca de trinta páginas, sempre em preto-e-branco, quase sempre no formato 10x14 cm - moldes copiados por muitos. O conteúdo libertino e proibitivo, ligado ao baixo preço de seus "catecismos", fazia de seu trabalho um sucesso: no auge chegou a vender tiragens de 3 mil exemplares, distribuídos individualmente de banca em banca no Rio de Janeiro, por um colega. Entretanto, como pornografia é a miúdo um ramo considerado "rasteiro" na cultura de massa, Zéfiro, por longos anos protegido pelo anonimato, nem sempre recebeu as devidas atenções, sobretudo, é claro, por parte da cultura oficial. Mas foi um fenômeno, afinal. Forçando-se um pouco a barra, foi uma versão brasileira, improvisada, empobrecida, ilegal e menos empombada de Hugh Hefner. Não que seu trabalho não fosse galante: apenas era mais safado. O quadrinista é afinal apontado, um tanto informalmente, como responsável pela iniciação sexual de gerações anteriores e posteriores à revolução sexual.

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Alcides Caminha era um simples e modesto sujeito, acima de qualquer suspeita. Morador de Anchieta, na Zona Norte do Rio, era casado desde os 25 anos e pai de cinco rebentos - não admira que tivesse familiaridade com os prazeres da carne. Concluiu o segundo grau apenas aos 58 anos de idade. Parecia se assanhar um pouco só na música: foi compositor, parceiro de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, com quem bolou sambas para a Estação Primeira de Mangueira. Isso hoje é uma curiosidade saborosa, mas, na época, não lhe enchia a barriga. Por trás da burocracia de seu ganha-pão oficial no Ministério do Trabalho, tirava um por fora se valendo de seu autodidatismo gráfico. Bolou suas picantes HQs, afinal, mesclando quadrinhos e fotonovelas românticas mexicanos com o de imagens, estas, sim, pornográficas, e de fazer corar. Sabia-se que o artista tomava como base fotos despudoradas e trechos de publicações da Editormex, decalcando, despindo e dando traços mais libidinosos a certas figuras, aqui e ali. Sem palavras de baixo calão e sempre com fundos morais, um tanto felizes, contextos e personagens brasileiros deram então as caras em sua instigadora arte, um tanto amadora, ou "naif". Mas seus leitores não ligavam para pontos de vista estéticos ou classificações técnicas. Gostaram mesmo era de lubricidade, sobretudo após as oitavas ou décimas páginas dos "catecismos", que era quando as coisas começavam a esquentar. O bufante nome Carlos Zéfiro, aliás copiado por Caminha de um autor mexicano de fotonovelas, foi adotado não só por pudor, mas por segurança: a lei 1.711, de 1952, exonerava funcionários públicos que recaíssem em "incontinência pública escandalosa". Era o caso. Mesmo que o teor licencioso da obra do discreto burocrata do Ministério do Trabalho ajudasse a sustentar sua numerosa família.

Ao fim e ao cabo, a ocultação de Alcides Caminha, quando vivo e na ativa como artista de cunho erótico, também se mostrou útil em outros aspectos que não os meramente ligados à moral no serviço público: os da perseguição oficial e dos quiprocós judiciais. No início dos anos 1970, auge tanto da atenção popular aos voluptuosos traços de Carlos Zéfiro quanto da repressão do governo militar nos campos da ideologia e da moral dos bons costumes, órgãos de vigilância davam batidas em bancas e sebos que vendessem livrinhos de sacanagem. Uma investigação chegou a ser aberta pelo aparato policial em Brasília, contra esse tal de "Zéfiro". Queriam descobrir a identidade do artista. E chegaram perto. O dono de sebo Hélio Brandão, amigo, colega de trabalho e facilitador de Caminha - sujeito que fornecia imagens de inspiração, e depois imprimia e distribuía os "catecismos" pessoalmente de banca em banca, diga-se -, chegou a ser preso por três dias, mas não deu com a língua nos dentes e a averiguação terminou arquivada. No âmbito das copyright, os decalques com imagens de outras publicações eram também um problema. Desenhados diretamente em papel vegetal, sem a necessidade de fotolito, os quadrinhos de Zéfiro discretamente seguiam para impressão em diferentes gráficas, dentro e fora do Rio de Janeiro, e acabaram atingindo inúmeras cidades. Sábia decisão, ao se manter o anonimato do desenhista? Sim. Mas com o devido preço: aliada à impossibilidade de patenteamento, a troca constante de impressoras dava vazão ao surgimento de diversos imitadores, que pipocaram Brasil afora a partir da década de 1970. Independente porém pirateado sem restrições, Alcides Caminha acabou sendo o criador e mais prolífico artista de todo um gênero ilícito. Que foi, aliás, o único da literatura erótica no Brasil nos anos 1950 e 1960.

Com a concorrência de outros autores de "catecismos" Carlos Zéfiro já vinha lidando há algum tempo. Mas, conforme os anos 1970 iam terminando e a reabertura política ia afrouxando a censura, outros conteúdos de viés erótico passaram a monopolizar a atenção dos onanistas de plantão: especialmente fotonovelas pornográficas coloridas de origem escandinava. Fora da imprensa, a pornochanchada começava a dar as caras. Após sua prisão, Hélio Brandão havia decidido dar um tempo em sua empreitada gráfica clandestina, que começava a dar dores de cabeça que já não compensavam. Os "catecismos", em geral, vinham sobrevivendo na subcultura, por reimpressões mais ou menos toscas, passados de mão em mão, vendidos em feiras populares. Na primeira metade dos anos 1980, ao passo que o gênero minguava, alguns autores começavam a escrever a respeito: o cartunista Ota e o colecionador Joaquim Marinho, principalmente.

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Nas décadas de 1970 e 1980, os responsáveis pelo jornal crítico e humorístico O Pasquim, fenômeno editorial e ícone da carioquice escrachada e despojada, eram curiosos, mas não tinham lá grandes ganas investigativas. Queriam mais era dar pitacos e tirar sarro, bolando boa parte da linha editorial do tabloide no boteco mais próximo. Mas eram, no duro, fascinados pela obra de Carlos Zéfiro, à época já visto como figura de longa data no "baixo mundo" das bancas de jornal. Cartunistas do naipe de Jaguar e Ota, por exemplo, não tinham pudores em rasgar elogios ao mestre oculto, que não raro era transformado em personagem nos textos humorísticos d'O Pasquim - como o de Aldir Blanc, publicado em 1977, disponível no link ao fim destas mal traçadas linhas. Ficava-se então na dúvida: os pasquinautas sabiam, afinal, quem era, como era, o que comia e onde habitava Carlos Zéfiro? Aparentemente não, mas os responsáveis pelo graçolista hebdomadário eram especialistas em tirar onda e em enrolar seus leitores, prendendo sua atenção. Em 1983, a pulga atrás da orelha com relação à identidade do heroi do pornô carioca era tanta que Jaguar entrevistava seus "testas-de-ferro". Na chamada, o humorista e editor se explicava, excitado:

Senhoras e senhores, o Pasquim passa a entrevistar duas figuras da maior importância na Literatura Erótica Brasileira: Eduardo Barbosa, desenhista e autor de inolvidáveis historinhas, e Hélio, fiel amigo e bastante procurador do legendário Carlos Zéfiro, o responsável por inúmeras ereções da minha geração. Hélio inclusive é quem teve que enfrentar todos os processos levantados contra o Zéfiro, que (...) ninguém sabe quem é, embora seu traço clássico seja imediatamente reconhecível. Mais tarde, os originais do Zéfiro serão disputados pelos colecionadores como obras importantes do nosso século.

Jaguar e companhia em 1984 chegaram a publicar, pela sua editora, Codecri, a revista Zéfiro, de edição única, com trabalhos do mestre da safadeza gráfica. Mas, apesar de seus esforços, possivelmente Alcides Caminha morreria no anonimato, não fosse por seus herdeiros e por Juca Kfouri. Editor da revista Playboy em 1991, o jornalista revelou somente naquele ano a identidade de nosso cultuado heroi, já aposentado, porém eternizado como virtuoso tracejador de partes íntimas. Em entrevista a Kfouri, toda a verdade veio à tona, depois de mais de 30 anos. O furo jornalístico veio bem a tempo. O Eduardo Barbosa citado acima pel'O Pasquim, era um quadrinista do rol de imitadores de Caminha, e indicara ao editor de Playboy a identidade real de Carlos Zéfiro. Confrontado por Kfouri, Caminha negou, temendo perder uma mirrada aposentadoria. Posteriormente surgiu outra história, talvez em mal entendido: a de que Barbosa, autor de outros "catecismos", atribuía a si a pena por trás da assinatura de Carlos Zéfiro. Seja como for, os filhos de Caminha o convenceram a assumir frente a Kfouri. Com a estrondosa revelação na entrevista, Hélio Brandão quebrou o silêncio, confirmando que era Alcides Caminha o autor original, precursor do gênero. Findo o mistério, o desenhista, então com seus 70 anos de idade, veio a colher os louros, participando da I Bienal de Quadrinhos, de 1991, como convidado de honra. Justo. Mas já no ano seguinte Alcides partiu desta para uma melhor, apenas um dia depois de receber homenagem no Troféu HQ Mix, deixando órfã uma verdadeira legião de marmanjos salientes. Alguns já meio coroas, com status de "colecionadores".

Oh, lascívia. Linguagem atávica e universal, que vai da alta à baixa cultura, das pinturas rupestres ao pós-moderno. Que seria da arte, em geral e afinal, sem a exploração da sexualidade?

Explore os documentos:

Em 2005, Conceição Freitas, do Correio Braziliense, aborda o relançamento dos Catecismos de Carlos Zéfiro, pela Editora A Cena Muda.

Um gracejo: ainda no anonimato, em 1977 Carlos Zéfiro vira personagem de Aldir Blanc, no humor d'O Pasquim.


Um mito: Carlos Zéfiro é tão cultuado n'O Pasquim que, em 1983, o semanário carioca entrevista até seus "testas-de-ferro", Hélio Brandão e Eduardo Barbosa:

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/27206

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/27207


Em depoimento para o Jornal da ABI em 2011, Juca Kfouri fala sobre a revelação da identidade de Carlos Zéfiro.