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Literatura | Huckleberry Finn: 136 anos de traquinagens e controvérsia

11 mar 2021

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Um livro hoje faz aniversário. Se comemoramos os natalícios de simples e mortais seres humanos, individualmente, nada mais justo que prestar as devidas loas aos novos anos de uma obra imortal, dessas repletas de mística, personagens e ensinamentos perenes. Pois o aniversariante de hoje nos conta uma história um tanto rocambolesca, sobre um menino pobre, caipira e semiletrado do sul dos Estados Unidos, em tempos pré-guerra civil. Em sua necessidade de fugir de um pai abusivo – e, de quebra, aproveitar para deixar a escolarização um pouco de lado e viver grandes aventuras –, o moleque, um tanto endiabrado, empreende uma fuga mirabolante, passando por mil perrengues dignos de Sessão da Tarde, contando com três ajudas fundamentais: a sorte, a lábia e Jim, um escravo fugido que também buscava uma vida livre, digna. Eis as credenciais do clássico mais traquinas da literatura mundial, que completa 136 anos neste 18 de fevereiro: As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain.

Na verdade, o livro que tem Huck Finn como protagonista é até um tiquinho mais velho: 18 de fevereiro de 1885 foi apenas a data de publicação de sua primeira edição nos Estados Unidos, berço do autor. Um tico antes, em 10 de dezembro de 1884, o livro já havia sido publicado no Canadá e no Reino Unido. Seu protagonista, além disso, nasceu quase dez anos antes; em outro sucesso de Mark Twain, As Aventuras de Tom Sawyer, de 1876. A história em que Huck estrela veio a lume desenrolada, pouco a pouco, de um trecho da novela mais antiga, removido pelo escritor – Huck Finn, sabe-se, era originalmente um personagem coadjuvante, amigo de Tom Sawyer. Há que se reparar o longo hiato entre ambos os livros, afinal: as desventuras de Huck nasceram a fórceps. Deram um trabalho e tanto a Twain, que, no intervalo de 1876 a 1883, fez de tudo com o manuscrito: o reinventou, reescreveu, repaginou, revisou e revisou e revisou... Chegou mesmo a desistir da obra, certa feita, felizmente mudando de ideia depois de uma inspiradora viagem pelo Rio Hudson. “E se aquele moleque que tanto me dá trabalho empreende uma fuga pelo Rio Mississipi?”, deve ter refletido.

Uma vez concebidas de acordo com sua definitiva versão, As aventuras de Huckleberry Finn deram o que falar. De início, uma de suas ilustrações, inserida pelo impressor às pressas na página 283, chamava a atenção para a pelve do personagem Silas Phelps, fazendo com que uma tiragem de trinta mil cópias fosse descartada, depois reimpressa, sem a obscenidade. No entanto, depois que o livro atingiu a crítica e certa parcela de leitores, nova polêmica se instaurou: um episódio a mais na grande novela cultural das percepções sensíveis frente ao que, em dados momentos da história, é (justa ou injustamente) considerado como politicamente incorreto. A linguagem usada no livro, na ambientação sem pudores da dureza da vida rural do sul americano do século XIX, foi considerada reprovável, digna não de respeitáveis leitores, mas da “ralé” iletrada. Fora isso, a grande capacidade de Huck de se desvencilhar de situações perigosas enrolando seus algozes na conversa fiada, contando uma mentirinha aqui e outra ali, quando não omitindo ou exagerando cá e lá certas informações, foi encarada como artimanha grave, coisa desleal, indigna, embuste e malandragem da pior espécie: péssimo exemplo para jovens fãs de romances de aventura. Talvez houvesse certa expectativa quanto ao protagonista ser parecido com seu amigo, o fantasioso e um tanto quixotesco Tom Sawyer. Mas Huckleberry Finn, apesar de igualmente engenhoso, era mais antiheroi que heroi, tipo ainda não muito bem aceito para o leitor médio daquele tempo – e naquele país, dividido ao meio. Sua engenhosidade tinha, na verdade, outra nascente, menos pueril, mais vida real. Os cambalachos e o comportamento indócil e alvoroçado do pirralho, certamente defeitos numa sociedade burguesa, religiosa e conservadora, eram afinal não só cabíveis, mas necessários frente a situações inclementes do contexto no qual o personagem se inseria: estamos imersos no abafado, úmido e selvagem sul escravocrata, passando fome e dormindo enlameados ao relento, afinal. Realidade que nem todos estavam dispostos a ver. Se batota não é coisa de gente proba, que pena: pelo menos é coisa de gente viva.

Com o tempo, As aventuras de Huckleberry Finn fizeram sucesso estrondoso, marcando presença forte na cultura literária americana: seu personagem fez a cabeça de gerações e gerações. Além de gostosa de ler, foi, ainda por cima, apontada como obra esteticamente inovadora, um dos pilares da prosa americana moderna, ao lado de outro colosso, Moby Dick, de Herman Melville. No entanto, assim que Huck chegou às bibliotecas americanas, ainda na década de 1880, muitas acharam melhor retirar o livro de suas prateleiras: era um produto controverso, cheio de palavras ríspidas, feias, do “zé povinho”, retratando uma realidade rude, nua, crua e atual. Havia, ainda por cima, a questão política em torno de Jim, escravo fugido: impossível ler a obra sem refletir a respeito do escravismo e dos direitos civis, em geral. Mark Twain, no fim das contas, não via com maus olhos o banimento de Huck Finn das bibliotecas, crendo que isso traria publicidade e curiosidade popular suficientes para catapultar consideravelmente as vendas do romance. Por outro lado, havia franco boicote. Muitas críticas ao livro eram como a de sua colega escritora, Louisa May Alcott, que veio a público dizer que era melhor o autor parar de escrever para jovens: baita problema que ia além da vontade de Twain, que concebera tanto as aventuras de Tom Sawyer quanto as de Huck Finn para o público adulto. Num âmbito mais literário que moral, nos anos subsequentes, mesmo Ernest Hemingway criticou o segundo livro, do qual era fã, em particular referindo-se a seus capítulos finais, que teriam descambado para a comédia barata – opinião secundada, aliás, pelo biógrafo de Mark Twain, o vencedor do Pulitzer Ron Powers. Mas a César o que é de César: o mesmo Hemingway, em As verdes colinas da África, declarou que “toda a literatura norteamericana [moderna] derivou de um único livro”, Huck Finn. Bastaria lê-lo somente até o ponto em que Jim é capturado e volta ao cativeiro: “Esse é o verdadeiro fim”, sentenciou o autor de O velho e o mar, “O resto é papagaiada”. Bom, ele não usou o termo em inglês para “papagaiada”, que nem existe, mas cá o escriba (que não é tradutor juramentado nem nada) crê que foi isso o que ele quis dizer. Ocorre que a prisão de Jim força Huck a resgatá-lo, mas, para isso, o garoto recorre ao expansivo Tom Sawyer, que, de fato, desponta do nada no meio da história: o espalhafato de tal participação especial muda o tom da narrativa, praticamente colocando Huck de volta no papel de coadjuvante.

E quanto à questão racial, latente no livro? Diferentemente da altercação inicial, do século XIX e início do XX, é nela em que reside a segunda cizânia sobre a obra, que dura até hoje. As aventuras de Huck Finn já foram tratadas tanto como benéficas à busca pela igualdade racial quanto como francamente racistas. Dentro e fora da classe acadêmica, muitos consideraram (e ainda consideram) que Mark Twain, ao humanizar – e não objetificar ou animalizar – a figura de Jim, além de expor fragilidades do sistema escravocrata, fez um bom serviço em nome do abolicionismo e mesmo da luta contra o racismo. Outros, também na academia e fora da mesma, acharam (e ainda acham) o contrário: dizem que o autor não chegou a ser, em momento algum, antirracista, tendo construído Jim de forma superficial e estereotipada. Aliás, muito estereotipada: justamente conforme o público branco de sua época estava acostumado a ver o negro (na verdade, seu simulacro pejorativo) em variadas expressões culturais, da literatura ao teatro. Isso vai muito além do criticado uso constante da palavra “nigger”, no romance: termo banalizado nos EUA do final do século XIX, certamente num contexto em que ainda não era um denunciativo cabal de racismo.

Polêmicas envolvendo raça, classe social e linguajar marcaram a história sempre problemática do livro com bibliotecas públicas e com o sistema educacional americano: apesar de seu uso em escolas, ao longo dos anos, a partir da década de 1980 Huck Finn voltou a pipocar como controverso, situação de onde ainda não saiu, justamente do ponto de vista da representação negra. É obra banida aqui e acolá, ou editada. Nesse sentido, muitas perguntas permanecem no ar: era um livro concebido para crianças e jovens, para início de conversa? Quais os limites para se representar uma sociedade racista e ser, de fato, racista como ela? Sendo um clássico, sua leitura deve ser contextualizada ou universalizada? Deveriam algumas palavras ser substituídas, à revelia do autor, há muito falecido, para que estudantes continuem tendo acesso ao clássico, mas em versão não ofensiva? Mas o não uso dos termos ofensivos não tiraria a oportunidade de jovens leitores refletirem por que Huck estaria usando palavras tão deploráveis para se referir a um amigo? Que desafios essas reflexões trazem para as traduções? Questões técnicas narrativas e de estilo obliteram ou dialogam com o conteúdo da obra? O que é exatamente o conteúdo de uma obra literária? O que o autor quis dizer com tudo isso, afinal? Estaria Ernest Hemingway errado e seriam justamente os capítulos finais de Huck Finn sua redenção antirracista? O debate perdura, tão clássico quanto o próprio Twain.

Há mais uma coisa a dizer. Dentro da intertextualidade de As aventuras de Huckleberry Finn existe uma história memorável, dessas que atestam a eterna luta humana entre civilização e barbárie, esta muitas vezes contida na outra. Pouco lembrada, é francamente obliterada pelas polêmicas que cercam o livro. Ainda assim, segundo Roberto Bolaño, para quem Mark Twain contribuiu tanto para a fundação do romance americano moderno quanto para a do latino-americano, tal história, longe das contendas em que a obra sempre esteve submersa e longe do próprio Huck, deveria ser fixada nas paredes de cada bar neste mundo, e de cada escola, também – ao que cá reforçaremos: deveria figurar em cada condomínio fechado com piscina, e em cada supermercado e loja de departamento, talvez também no Congresso Nacional de qualquer país. Bom, essa história segue mais ou menos como abaixo – perdoe de antemão o leitor: quem a escreve (na verdade transcreve) não tem talentos twainianos.

Numa pobre cidade sulista dos EUA do século XIX, por onde Huck Finn tem a sorte (na verdade o azar) de passar, um bêbado inconveniente se prostra na frente da casa de um velho militar reformado, veterano condecorado, e começa a insultá-lo. Do nada. Lá pelas tantas o dono da casa, que se enfeza com calma, se é que é possível se enfezar com calma, vai até o bêbado e diz algo como “Você tem até as 13h para continuar me xingando. Se disser mais uma vírgula a meu respeito depois desse horário, vai pagar caro”. Ou “vai pagar com a vida”, algo assim, claro como água. Talvez houvesse aí certa temperança da parte do milico, afinal, alertava o pinguço dando-lhe um prazo de tolerância, quem sabe nem predicasse punição retroativa.

Mas acontece que o bêbado acabou, sim, dizendo vírgula a respeito do militar reformado, e pior: depois das 13h. O ofendido, com toda a placidez do mundo, saiu de casa, baleou o inconveniente no meio da rua, deitou a pistola na calçada e voltou para dentro. Na rua, foi aquele bafafá. A filha do baleado chegou, em prantos. Curiosos brotavam de todos os lugares. Carregaram o bêbado furado para dentro de um bar, botaram uma bíblia em seu peito, mas não adiantou: bateu as botas ali mesmo. E foi aí que um cidadão qualquer, semianônimo, o homem médio, comum, ali, na multidão que juntou, disse algo, talvez não muito a sério, a respeito de linchar o militar. Talvez. Quem sabe? Porque ficara no ar: teria ele sido razoável ao matar o bêbado?

A comoção começou a ganhar novos contornos. Passado o devido tempo, uma verdadeira turba foi para casa do militar ofendido, agora promovido à categoria de assassino, com paus e pedras nas mãos. Gritaria, poeira levantada, alvoroço. Portão derrubado. O barulho ensurdecedor do povaréu raivoso só parou quando se deram conta de que o militar estava de pé no telhado, com um rifle na mão, olhando para baixo, ameaçador como um liquidificador sem tampa. E foi aí que ele falou o seguinte (imagine o leitor seu puxado sotaque sulista americano, embora o trecho esteja transcrito em português, enfim, talvez seja bom imaginá-lo com sotaque à gaúcha):

Essa ideia de vocês lincharem alguém é divertida. A ideia de vocês acharem que têm coragem pra linchar um homem! Só porque são valentes pra cobrir de piche e penas umas pobres mulheres párias e desamparadas que aparecem por aqui, acham que têm força pra pôr as mãos num homem? Ora, um homem tá seguro nas mãos de dez mil da laia de vocês… desde que seja de dia e que vocês não ataquem por trás. Eu não conheço vocês? Ora, conheço vocês por dentro e por fora. Nasci e fui criado no Sul, e já vivi no Norte, por isso conheço o homem comum por toda parte. O homem comum é covarde.


Já teria bastado. Mas o macho-man continuou:

Os seus jornais tanto falam que vocês são um povo valente, que vocês acham que são mais valentes que qualquer outro povo… mas vocês são apenas tão valentes quanto. Por que os seus júris não enforcam os assassinos? Porque têm medo de serem mortos com tiros pelas costas disparados pelos amigos do cara no escuro… exatamente o que eles próprios fariam.


Já teria bastado, novamente. Mas ele continuou, mais ainda:

Vocês não queriam vir. O homem comum não gosta de encrenca e perigo. Vocês não gostam de encrenca e perigo. Mas se meio homem que seja… como Buck Harness, ali… grita ‘Lincha o cara, lincha o cara!’, vocês ficam com medo de recuar, com medo de todos descobrirem o que vocês são… uns covardes… e assim soltam um berro e agarram-se no rabo da casaca daquele meio homem e vêm vociferar aqui, praguejando e prometendo as grandes coisas que vocês vão fazer. A coisa mais desprezível é uma turba, é o que é um exército… uma turba. Eles não lutam com a coragem que nasce dentro deles, mas com a coragem que tomam emprestado da sua massa e de seus oficiais. Mas uma turba sem nenhum homem à frente está abaixo do desprezível. Agora, o que vocês devem fazer é pôr o rabo entre as pernas, ir pra casa e se meter num buraco. Se qualquer linchamento real acontecer, vai ser no escuro, à maneira do Sul.


A multidão se arrastou para trás, se despedaçou. E a vida continuou. Nosso aniversariante de hoje é Huck Finn, que presenciou toda essa história e depois a narrou. Mas nós, leitores, que a ganhamos de presente.

Explore os documentos:

“Em torno de Mark Twain”, ensaio de Willy Lewin, publicado no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, em 1962

Em 1969, reportagem da revista Manchete saúda Mark Twain como “pai do humor americano”:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/99578

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/99579

Em 1974, Manchete aborda uma das inúmeras representações de Tom Sawyer e Huck Finn no audiovisual:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/140746

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/140746

A revista Cruzeiro, concorrente de Manchete, faz o mesmo, na ocasião:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/191653

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/191654

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/191655

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/191656

Ruy Castro, escrevendo para Manchete em 1974, vai direto ao ponto “9 entre 10 pessoas” que não leram Tom Sawyer, verdadeiro “manual de travessuras”, “foram parar no analista”:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/147476

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/147477

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/147478

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/147480

Donald Henagan, do New York Times, transcrito no Suplemento Literário do Estadão, em 1982, comenta o banimento de Huck Finn das livrarias:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/10883

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/10884

“Huckleberry Finn, vivo aos 100 anos”, de Norman Mailer, originalmente para o New York Times Review of Books, também no Suplemento Literário, em 1985:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/11985

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/11986


Manchete saúda Mark Twain como “pai do humor americano”