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Literatura | João Antônio e a Periferia

30 set 2021

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Conhecido pela mestria com que retratava a periferia das grandes cidades do Brasil e seus habitantes, João Antônio foi contista, cronista e jornalista, gêneros que muitas vezes se mesclam em seu trabalho literário.

João Antônio Ferreira Filho (São Paulo, 1937 – Rio de Janeiro, 1996) passou a primeira infância na Zona Oeste de São Paulo, entre o Morro da Geada e Presidente Altino, bairro industrial onde trabalhavam várias pessoas da região. Estava com sete anos quando a família se mudou para a Vila Pompeia. Seu pai, português, tinha uma pequena mercearia, onde o filho o ajudava quando criança.

Durante os anos escolares, o menino adquiriu o gosto pela leitura através dos quadrinhos, passando depois a livros adaptados. Alguns foram recebidos como prêmio por sua participação no jornal “O Crisol”, dirigido por Homero Mazarem Brum, que publicava textos literários escritos por crianças. Em 1954, trabalhando durante o dia como office-boy e frequentando à noite o curso de Magistério, João Antônio publicou o conto “Um Preso” no jornal “O Tempo”, no qual colaborava esporadicamente.

Em 1958, o escritor ingressou no curso de Jornalismo da Faculdade Casper Líbero, que não chegou a concluir, e passou a fazer alguns trabalhos de redação para uma agência de publicidade. Dois anos depois, um incêndio destruiu a casa onde vivia com a família, e nele se perderam os manuscritos do livro no qual vinha trabalhando. Ele o reescreveu de memória, usando como espaço de escrita a Biblioteca Mário de Andrade, bem como outras bibliotecas, pensões e a casa de amigos. Em 1963, por fim, a obra saiu com o título de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, apelidos de três personagens, jogadores de sinuca.

Navegue pelas páginas da “Revista Leitura” e veja entrevistas dadas por João Antônio acerca do seu livro de estreia.

Com nove contos que refletiam o ambiente e reproduziam as expressões usadas pelas pessoas da periferia de São Paulo – a “língua dos pés de chinelo”, como disse o autor --, o livro foi um sucesso imediato de público e de crítica. Angariou vários prêmios e propiciou inúmeros convites para escrever em periódicos e editoras. João Antônio se mudou para o Rio de Janeiro e ali se dedicou ao jornalismo, trabalhando no caderno de cultura do Jornal do Brasil. Em 1966 voltou a São Paulo por algum tempo e ajudou a fundar a revista “Realidade”, na qual inaugurou e aperfeiçoou um estilo de escrita que ficaria conhecido como “conto-reportagem”. O primeiro desses textos foi “Um dia no cais” (1968), que retrata o cotidiano de prostitutas, marinheiros e outros trabalhadores, bem como pessoas em situação de rua, que circulavam nas imediações do porto de Santos.

Leia “Um Dia no Cais”, publicado na “Realidade”. Aproveite para ver algumas propagandas da época, entremeadas às páginas do conto-reportagem.

Alternando sua residência entre o Rio e São Paulo, João Antônio escreveu também para a revista “Manchete”, para “O Pasquim” e para vários periódicos alternativos. Seu segundo livro, “Leão de Chácara”, foi publicado em 1975, mesmo ano em que saiu um livro de reportagens e perfis, “Malhação do Judas Carioca”. A estes se seguiriam vários outros, com destaque para “Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto” (1977), um livro experimental que refaz o roteiro do escritor carioca -- lido e admirado por João Antônio -- pelos bares, cafés e redações de jornais do Rio de Janeiro.

Também em 1977, “Malagueta, Perus e Bacanaço” foi adaptado para o cinema. O filme dirigido por Maurice Capovilla foi intitulado “O Jogo da Vida” e trouxe Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Maurício do Valle nos papéis principais. Teve participação de jogadores profissionais de sinuca e foi musicado por João Bosco e Aldir Blanc. Veja nota sobre o filme na Revista Manchete.

João Antônio seguiu publicando livros, vários dos quais premiados. Entre eles, “Ô Copacabana!” (1978), “Dedo-Duro” (1982) e “Abraçado ao meu Rancor” (1986), pelo qual foi agraciado com uma bolsa de estudos na Europa. Entre 1987 e 1989 viveu na Alemanha e viajou também pela Holanda e Polônia, realizando conferências. Voltando ao Brasil, publicou mais seis livros, dos quais o último, “Dama do Encantado” (1996), continha os perfis de vários artistas a quem admirava, bem como o do jogador de futebol Mané Garrincha. Morreu em outubro do mesmo ano, em casa, onde a polícia o encontrou após ser acionada por familiares preocupados com a falta de notícias.

Os textos de João Antônio refletiam seus lugares de memória, mas também tinham muito de denúncia social. Suas críticas, cheias de um rancor deliberadamente adotado como estética, se voltavam com frequência para a classe média, que ele chamava de “mérdea” e acusava de alienação e descaso. Seu trabalho foi comparado ao de contistas como Dalton Trevisan e Plínio Marcos, principalmente o segundo, que também retratou sem filtros as classes marginalizadas da sociedade. Por sua vez, Jorge Amado, na orelha de “Dedo-Duro”, declarou ser João Antônio “um integrante da estirpe iniciada por Manuel Antônio de Almeida”, com seu picaresco Sargento de Milícias, e levada adiante por Machado de Assis, Marques Rebelo e Lima Barreto.


Ilustração de Sardi com os personagens Malagueta, Perus e Bacanaço. Suplemento Literário de “O Estado de São Paulo”, 1982.