BNDigital

Literatura | Na amarelinha, há 37 anos Cortázar chegava ao céu

12 fev 2021

Artigo arquivado em Literatura
e marcado com as tags Julio Cortazar, Literatura Argentina, Literatura Latino Americana, Secult

Em tempos adversos, um bom remédio mental, desses que nos ajudam a não criar mais e mais macaquinhos no sótão – ou ao menos a não criar maus macaquinhos –, é viajar na maionese. Em doses diárias, de preferência, dar a devida importância à útil inutilidade da troça e do joguete, do sonho brincante e da baboseira séria e responsável. Seja fazendo a cabeça borboletear discretamente, ou pirando com todo o deslumbre multicolor possível. Pois a viagem de hoje é essa: tal qual os times grego e alemão no futebol de filósofos do Monty Phyton, como seria o plantel literário-futebolístico de nuestra América Latina? Ora bolas.

Como todo mundo sabe, poetas dão bons goleiros, nem que seja só para levar boladas: no gol, o robusto Pablo Neruda, mas o reserva Carlos Drummond de Andrade, apesar de franzino, é tão bom quanto, sendo peça de reposição apenas no papel. A zaga seria majoritariamente uruguaia, com chutões e carrinhos por trás de Eduardo Galeano e Juan Carlos Onetti, mas com Machado de Assis como xerifão central: não passa nem suspiro por ali. Nas laterais, lógico, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa – afinal, melhor deixá-los afastados em campo, ou, na iminência de qualquer vitupério entre ambos, convocar às pressas os respectivos reservas, Adolfo Bioy Casares e Elena Poniatowska, já que trata-se de time misto. Como meia defensivo, Carlos Fuentes, obviamente, mas com o substituto Octavio Paz mantido constantemente aquecido, e, como meia atacante, a sempre fatal Silvina Ocampo. Volante clássico, Roberto Bolaño desferiria endiabrados contra ataques, mas, estando no departamento médico, ficaria momentaneamente substituído por Rómulo Gallegos. Clarice Lispector e Alejo Carpentier, ela armadora, ele segundo volante, tratariam a pelota com elegância digna de fazer o ingresso valer o dobro – Miguel Angel Asturias e Juan Rulfo de reservas, aí. E centroavantes teríamos dois, indiscutíveis, verdadeiros Maradona e Messi das letras: Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, terror definitivo para qualquer defesa adversária, mestres da criatividade e da inovação, fanfarrões e zombeteiros na medida exata; tão precisos e inusitados nas palavras que nos deixam desconcertados, sem elas, justamente. Difícil apenas saber quem seria o camisa 9 e quem seria o 10.

Resta refletir: fez algum sentido o parágrafo anterior? Claro que não, quem faz sentido é militar. Montamos um time com 13 jogadores. Selecionado milagroso, decerto, confiado à técnica Juana Inés de La Cruz, que, com a famigerada faixa com o “100% Jesus” escrito, à cabeça, faria tamanho plantel rezar de acordo com sua cartilha. Contrastaria com Witold Gombrowicz, aliás, que seria aquele gringo da comissão técnica que traria, sempre, algo de valioso da experiência europeia. Abobrinhas, enfim. Uma verdadeira plantação delas, por todo o lado. Por que? Porque, brincadeiras à parte, dedicamos hoje nossas caraminholas ao craque argentino que mais nos ensinou – e ensina ainda, para quem quiser aprender – a ler brincando, ou a jogar o jogo da leitura. Trata-se de Don Julio Florencio Cortázar, o responsável por aposentar a camisa 9 ou 10 de nosso time de estrelas: há exatos 37 anos, neste 12 de fevereiro, o autor se despedia dos leitores, ao menos os de carne e osso. Não sem antes se tornar imortal, revolucionando a literatura não só da América Latina, mas desta pelota rodopiante chamada Terra – e talvez de outros mundos também.

Nosso craque sul americano, é bem verdade, nasceu na Bélgica em 26 de agosto de 1914, de pais argentinos – e, como muitos craques do futebol atual, morou a maior parte de sua vida, momento de seu ápice profissional, na Europa. Aos 3 anos, cruzou o Atlântico, para o lado de cá, para passar uma infância um tanto melancólica e convalescente, longe da figura paterna, no bairro de classe média bonaerense de Banfield, entre cuidados da mãe, de uma tia e da avó. Podia ter resultado numa espécie de J. R. R. Tolkien: acamado, sonhava com elfos e duendes ao ler, e muito, os livros que passavam pela atenta curadoria materna – prova de que alguns males vêm para bem. O resultado veio anos mais tarde, com a edição de seu primeiro livro de sonetos, Presencia, publicado em 1938 sob o pseudônimo de “Julio Denis”. Tal qual outro Denis, o Pimentinha, Julio não era de todo previsível: cerca de três anos antes havia se formado professor de letras, enquanto frequentava aulas de pugilismo – quem diria? –, chegando mesmo a elaborar, mais tarde, toda uma filosofia do esporte. Lecionou em cidades do interior argentino e no ensino superior – como teria sido como professor? –, mas quando Juan Domingo Perón assumiu a presidência, em 1946, abriu mão do cargo de professor de literatura na Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional de Cuyo, para trabalhar como tradutor. Sua produção literária, todavia, seguia. Curiosidade: em entrevista à revista brasileira Manchete, em 1978, Jorge Luis Borges dizia que se orgulhava de ter sido o primeiro editor em Buenos Aires a publicar escritos de seu compatriota, que teve seu livro de estreia, aliás, ilustrado pela irmã do autor de O Aleph. Já no início dos anos 1950, quando os rasgos autoritários do peronismo se faziam visíveis e sensíveis, Cortázar, não de todo iniciante na literatura, já quase quarentão, achou melhor aceitar uma bolsa de estudos na França.

Julio Cortázar voltou a seu continente natal, fazendo sua simpática monocelha desfilar brevemente pela Itália, pela Suíça e pela Espanha, mas foi na pátria de Proust, Flaubert e Baudelaire que se estabeleceu, definitivamente, em 1951: a bolsa dada pelo governo de Jules Vincent Auriol era de apenas dez meses, nada que não se pudesse dar um jeito. Lá, de início, continuou sendo tradutor, fazendo mil planos com amigos artistas, apesar da falta de grana. Casou com a também tradutora Aurora Bernárdez, em 1953. Esses dias inspirariam, dez anos depois, o maior sucesso literário já publicado pelo escritor, O jogo da amarelinha, narrando desventuras e ajustes de contas de seu alter ego, Horacio Oliveira, entre outras coisas. Mas antes que pulemos para o jogo, cabe ainda dizer outras coisas.

Foi na Paris dos anos 1950 e 1960, afinal, que nosso craque argentino pariu um sem número de obras que redimensionaram a literatura hispânica, chutando para escanteio moldes estabelecidos, um tanto empoeirados, rompendo com noções de linearidade temporal, dotando seus personagens de rara profundidade psicológica e abraçando de vez aquilo que a miúdo se chama de “fantástico”, este colocado sempre lado a lado do que a miúdo se chama de “real”. Na fronteira entre ambos, Julio. Justamente, os sabichões da crítica qualificam sua obra como realismo mágico, de fumos modernistas, com ticos de surrealismo aqui e ali, largamente influenciada por autores franceses e de língua inglesa, a exemplo de Jean Cocteau e John Keats. Mas talvez Cortázar tenha sido mais do que um ou mais rótulos. Ao fim e ao cabo, foi, através de sua nova estética, um dos pilares do chamado “boom latino americano”, expressão usada para aprazar o explosivo e exótico vulto que romancistas latino americanos de nova geração lançaram sobre o mundo editorial do Velho Mundo entre os anos 1960 e 1970 – da Europa, o “boom” pegou também o restante do globo, verdadeiro meteoro.

Vanguarda sudaca, Cortázar, García Márquez e Vargas Llosa mostraram para quem quisesse ver que a América Latina era muito mais do que um criadouro de bananas, golpes militares, café e revoluções; politicamente, aliás, romancistas do “boom” se tornaram mundialmente conhecidos por imprimir suas crenças políticas e sociais em sua obra, feito que os valeu reconhecimento, inclusive, em suas pátrias, então sob regimes autoritários que os preferiam no limbo. Cortázar passou a intensificar seu interesse e seu discurso na política na segunda metade dos anos 1960, bem quando estava em franca ascensão. Assim como outros, o proeminente argentino, sempre à esquerda, algo que lhe rendeu boas discordâncias com o liberal Vargas Llosa, era um exilado ilustre. E permaneceu sob esse status por décadas: embora sem renunciar à nacionalidade argentina, obteve a francesa em 1981, em declarado protesto à ditadura militar instaurada nos pampas em 28 de junho de 1966, em substituição ao peronismo.

Estabelecido como romancista, contista, cronista, ensaísta, articulista, poeta, tradutor, intelectual politicamente engajado e brincalhão de carteirinha, Julio Cortázar, quando ganhou os holofotes, se viu em posições cômicas, para não dizer tragicômicas. Visitou Cuba em 1963. Foi o suficiente para ser considerado um agente infiltrado da KGB no Ocidente, pela CIA. Do lado de lá da Cortina de Ferro, entretanto, o consideravam um agente do imperialismo, posto que denunciava a perseguição aos dissidentes soviéticos. Na Argentina, cabe considerar, havia um dossiê nada simpático com seu nome, preparado com carinho pelos militares no poder: pisar lá, nem pensar. Assim como outros intelectuais de esquerda do momento – como Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre –, Cortázar questionou a perseguição ao poeta Heberto Padilla, em Cuba, e rompeu com Fidel Castro, em 1971, poucos anos após romper o casamento com Aurora. Mas depois chegou a visitar clandestinamente a Nicarágua, quando ainda se preparava aquela que seria chamada de Revolução Sandinista, em 1979 – voltou a visitar o país posteriormente, reunindo escritos a respeito, mais tarde, em Nicaragua, tan violentamente dulce. Depois de um também doce romance com a lituana Ugné Karvelis, por volta de 1967 – há quem diga que ela influenciou em grande parte de seu engajamento político –, desde a virada da década esteve casado com a escritora, ativista, fotógrafa e tradutora de nacionalidade canadense Carol Dunlop, com quem escreveria, a quatro mãos, o divertido relato de viagem Los autonautas de la cosmopista.

Cortázar só sossegou o facho quando sofreu uma hemorragia gástrica, dessas que fazem os mais próximos pensar na conveniência de mandar fazer um paletó de madeira, em 1981. Foi quando François Mitterrand outorgou sua nacionalidade francesa, meio às pressas, na comoção. Mal havia se recuperado quando sossegou mais ainda: enviuvou, no ano seguinte. Aí, na verdade, o autor aquietou em excesso: sensível como sua gata, Flanalle, jamais se recuperou da perda de Carol Dunlop. A volta da democracia na Argentina, em 1983, não deixou de ser um cafuné em Don Julio, que mesmo em depressão viajou para o país de origem, onde foi devidamente aclamado pelo povo, por fãs e pela mídia, em contraste à inacreditável indiferença das autoridades – o presidente Raul Alfonsín se negou a recebe-lo. Mas afinal, em 12 de fevereiro de 1984, já de volta ao pequeno apartamento parisiense da Rue Martel, nosso boxeador camisa 9 ou 10 do maior time de puladores de amarelinha deste mundo foi descansar. Uma pena que tenha sido no Cemitério de Montparnasse, ao lado de tantos outros ilustres da cultura. Oficialmente, Cortázar foi vítima de uma leucemia, mas há disse-me-disse de que ele e Dunlop haviam contraído AIDS numa transfusão de sangue feita no autor, quando de sua hemorragia estomacal – não há evidência que confirme a segunda hipótese. Que diferença faz? Pode até haver uma lápide com o seu nome no cemitério mais garboso de Paris, junto a uma escultura retratando um espaventoso cronópio. Mas o que importa é o que se segue.

Entre os já iniciados na obra do mestre argentino – e que tais perguntas sirvam de estímulo aos não iniciados –, quem não o faz viver ao se divertir com os esverdeados, simpáticos, sensíveis, idealistas, um tanto ingênuos e tranquilões cronópios – seres imaginários semelhantes ao próprio Cortázar e à maior parte de seus admiradores, este escriba incluído – e com os seus aborrecidos contrários, os formais e pedantes famas, ou os brucutus e toscos esperanças, que aparentemente abundam neste planeta? E quem não ficou boquiaberto com o final de Os prêmios, depois de tanta tensão? Quem não se impressionou com a estrutura dos contos do autor, carregados de simbologia, de absurdo e de surreal, prendendo a respiração em narrativas curtas como Casa tomada, primeiro conto do livro Bestiário? Quem é capaz de esquecer do protagonista de Carta a uma senhorita em Paris, presente no mesmo livro, que se vê na embaraçosa situação de vomitar coelhos, compulsoriamente, no apartamento de terceiros? Quem, ao ler As armas secretas, não se maravilhou com o virtuoso e problemático saxofonista baseado em Charlie Parker, retratado em O perseguidor, e quem não desafiou fãs de Michelangelo Antonioni dizendo que As babas do diabo é superior, como conto, ao filme a que dera origem, Blow-up, mesmo a película contando com a canja de Jimmy Page, Jeff Beck e o restante dos Yardbirds? E agora a pergunta que vale um milhão de cronópios: quem, afinal, não quis fazer parte do maldito Clube da Serpente, vagabundeando pelas ruas da capital francesa dos anos 1950, entre jazz, vinho, cigarros Gauloises, riachos metafísicos, batidas policiais e amigos em eterna crise existencial, para em seguida não se emocionar com a situação de Lucía, A Maga, no clássico dos clássicos O jogo da amarelinha, desejando materializar a personagem apenas para abraça-la e depois devolve-la para dentro do livro?

O jogo da amarelinha. Peça-chave do “boom latino americano”, e, portanto, memorável por fazer a cabeça de gerações. Obra que merece muitas páginas na biografia de Cortázar, que dirá na história da literatura contemporânea – analogamente, merece um parágrafo inteiro neste humilde texto de fã. Rayuela no original em castelhano, O jogo da amarelinha ganhou nova e brilhante tradução ao português por Eric Nepomuceno, que foi amigo do autor, no relançamento da obra no Brasil pela Companhia das Letras, em 2019. O livro, sabe-se, é dois, embaralhados: uma estrutura complexa, longamente esquematizada pelo autor, que penou para dar coerência ao próprio emaranhado. Brincadeira que pregou peça no criador, literalmente. Mas nem por isso se trata de um quebra-cabeças difícil; é antes de tudo intrigante e divertido, propondo a participação do leitor, convidado a montar e desmontar a narrativa a bel prazer. Um livro-brinquedo-geringonça, de fato. Digno de escritor cronópio. Foi nele que Julio Cortázar quis deixar clara, mais do que nunca, uma ideia fundamental, a de despir e dessacralizar a literatura, ou seja, torná-la menos fama. Ali se propunha ao leitor o essencial: brincar, não se levar a sério em demasia – pois é assim que se leva a vida a sério.

Não interessa, afinal, se Cortázar foi, ou melhor, é um camisa 9 ou 10. O futebol literário que ele joga é pelada, de rua, com trave imaginária marcada por dois chinelos. Isso quando não uma mistura inusitada de pelada com amarelinha. A peladelinha. Ou amarelada. Usando luvas de boxe ou não, Don Julio saberia criar suas regras como ninguém. Joguemos.

Explore os documentos:

Entrevista de Julio Cortázar a Cley Gama de Carvalho, para o jornal Opinião, em 1973

Entrevista de Julio Cortázar a Abel Silva, para o jornal Opinião, em 1973

Conto Alguns cuidados para quando se vai subir uma escada, transcrito na Realidade, em 1973

Conto Para uma imagem de Cley, transcrito no jornal Movimento, em 1976

Entrevista de Julio Cortázar feita ao jornal Le Monde, replicada pelo jornal Movimento, em 1981

Obituário de Julio Cortázar no Caderno B do Jornal do Brasil, em 1984

Obituário de Julio Cortazár na revista Manchete, em 1984


Obituário de Julio Cortazár na revista Manchete, em 1984: