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Literatura | O Erotismo Transcendente de Gilka Machado

25 out 2021

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Chamada por Carlos Drummond de Andrade de “a primeira mulher nua da poesia brasileira”, Gilka Machado (Rio de Janeiro, 1893 – 1980) foi uma das poetas mais conhecidas e aclamadas no Brasil do início do século XX.

Gilka provinha de uma família de artistas. Seu pai era poeta, sua mãe e tias, atrizes de teatro e radioteatro; os avós maternos foram musicistas, e o bisavô, Francisco Moniz Barreto, foi considerado por Sacramento Blake o maior repentista do Império e o maior poeta da Bahia, perdendo apenas para Gregório de Mattos. Em Gilka, o talento não demorou a se manifestar: na adolescência, ela ganhou os três prêmios principais de um concurso de poesia feminina promovido pelo jornal “A Imprensa”, no qual se inscreveu usando pseudônimos. O reconhecimento, porém, veio acompanhado de críticas, pois os versos tinham uma carga erótica mal tolerada pela moralidade da época. Principalmente por virem de uma mulher, a quem alguns se referiram como “matrona imoral”.

Em 1910, Gilka se casou com o poeta, jornalista e crítico de arte Rodolfo Machado, com quem teria um filho, Hélios, e uma filha, Heros Volúsia. No mesmo ano, participou da fundação do Partido Republicano Feminino, criado pela professora de origem indígena Leolinda de Figueiredo Daltro, cujo objetivo era representar e integrar as mulheres brasileiras na sociedade e na política. Gilka atuou como primeira secretária do partido, ao mesmo tempo que continuava a escrever e colaborar em periódicos como “Fon-Fon” e “A Semana”.

O primeiro livro, “Cristais Partidos”, foi publicado em 1915. O poeta Olavo Bilac se ofereceu para escrever um prefácio, mas Gilka recusou, dizendo que preferia aparecer “sem escudos”, pois, se apresentada por Bilac, seria aplaudida sem que de fato a avaliassem. O livro continha poemas escritos por ela entre os treze e os dezessete anos de idade, nos quais se distanciava dos modelos considerados adequados para a escrita feminina e se propunha a questionar as estruturas sociais.

Leia uma apreciação de “Cristais Partidos” no Jornal das Moças (1916), na qual, embora Gilka sempre use a voz feminina, lamentando a repressão que faz a mulher “buscar um companheiro e encontrar um senhor”, seu trabalho é descrito como um “másculo e deleitoso versejar”.

Leia alguns poemas do livro junto a outra crítica em que se afirma: “não fosse a imagem sedutora da poetisa, eu juraria estar lendo livro de um homem de rara emotividade” (A Faceira, 1917)

Embora o desejo e o erotismo estivessem presentes em seus versos, a lírica de Gilka Machado não pode ser definida simplesmente como “poesia erótica”. O próprio Drummond observou que seus poemas traziam muitos elementos místicos e simbolistas, além de traços de preocupação social denominados por ele “uma espécie de anarquismo romântico”. Isso refletia, possivelmente, muito de sua própria realidade: ao contrário de outras escritoras da época, provenientes das classes mais favorecidas, Gilka vivia modestamente. Irene Lage de Brito, que escreveu sobre ela em sua dissertação de Mestrado na UnB, conta que a poeta enviuvou em 1923 e não voltou a se casar; para sustentar a si e aos filhos, trabalhou como faxineira na Estrada de Ferro Central do Brasil, recebendo um salário muito baixo. Às dificuldades materiais e aos ataques voltados para sua escrita somava-se o racismo, manifestado por escritores como Afrânio Peixoto, que não hesitou em relatar sua decepção ao visitar Gilka Machado e encontrar uma mulher negra, usando um vestido caseiro, em vez da senhora “branca e vistosa” que faziam supor as fotos publicadas em periódicos.

Apesar das circunstâncias desfavoráveis, a poeta foi em frente com seu trabalho, publicando poemas e artigos e proferindo conferências. Em 1916 foi publicada sua conferência “A Revelação dos Perfumes”, tratando da sensorialidade a partir da história dos perfumes e da importância dos odores na criação artística, e em 1917 saiu novo livro de poemas, “Estados de Alma”. Mais cinco volumes se seguiriam até 1932, quando alguns trabalhos da autora saíram numa coletânea publicada na Bolívia.

Veja o anúncio de uma conferência de Gilka Machado no “Jornal das Moças” (1917).

Em 1933, após um longo período de votações por parte de quase 200 intelectuais brasileiros, a revista “O Malho” elegeu Gilka Machado “a maior das poetisas brasileiras”, com 100 votos – a segunda colocada teve 41. A matéria se refere, ironicamente, aos detratores da escritora, que, “desconhecendo seus predicados, tiveram o auxílio de uma tal de moral” para criticá-la. Lamentam, também, o fato de a Academia Brasileira de Letras ainda não admitir mulheres entre seus membros.

Veja a matéria com o resultado da eleição em “O Malho”, 1933, e saiba quais foram as outras escritoras a receber votos.

Continuando a linhagem de artistas da família, Heros, a filha de Gilka Machado – que usava o nome Eros Volúsia -- se tornou uma renomada bailarina, que integrou o corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, teve aulas com Maria Olenewa e trouxe para o balé clássico influências de ritmos populares, como o maxixe e o lundu. Em 1934, aos vinte anos, era considerada “A Bailarina do Brasil”, com um estilo que influenciou Carmen Miranda e a levou a ser capa da Revista Life (1941) e a participar do filme estadunidense “Rio Rita” (1942), além de vários filmes nacionais. Tornou-se professora do Serviço Nacional de Teatro e criou o primeiro curso de dança no Brasil que aceitava alunos negros.

Quanto a Gilka Machado, conseguira abrir uma pequena pensão na Rua São José, frequentada por escritores e intelectuais, onde vivia com a mãe e a filha. Acompanhou de perto a carreira de Eros Volúsia, que, como ela, jamais teve medo de ousar e de transpor barreiras. Publicou mais três livros entre 1938 e 1968. Em 1976, com a morte do filho Hélios, dedicou-lhe o poema “Meu Menino”, que foi o seu último. No mesmo ano recusou a sugestão de Jorge Amado para se candidatar à Academia Brasileira de Letras, cujos estatutos haviam mudado. Aceitou, porém, uma homenagem da ABL através do Prêmio Machado de Assis, outorgado em 1979, um ano antes de sua morte.

Gilka Machado inspirou várias escritoras brasileiras. Também alguns homens, tais como Nelson Rodrigues, que, segundo seu biógrafo Ruy Castro, era leitor contumaz de Gilka e admitia a influência da poeta em sua obra. Mário de Andrade e Jorge Amado a admiravam, bem como Drummond, que escreveu para ela um epitáfio. Edições de suas “Poesias Completas” saíram em 1978 e 1992, mas sua obra caiu em relativo esquecimento até que, já nos anos 2010, voltou a atrair a atenção de alguns pesquisadores e começou a ser resgatada. Em 2017, saiu uma nova edição de suas poesias completas, e vários trabalhos vêm sendo publicados sobre ela, contribuindo para que volte a ter o merecido reconhecimento.


Caricatura por Taba quando da vitória do concurso de melhor poetisa. O Malho, 1933.