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Literatura | O Pirotécnico Murilo Rubião

25 ago 2021

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e marcado com as tags Gêneros Literários, Literatura Brasileira, Literatura Fantástica, Murilo Rubião, Realismo Mágico, Secult

Com raízes na Antiguidade e debatida por pesquisadores como Tzvetan Todorov e Jorge Luis Borges, a Literatura Fantástica pode ser descrita, de forma bem ampla, como o gênero em cujas obras há elementos que fogem às regras do mundo conhecido. Incluem-se aqui as narrativas insólitas, as que admitem a presença do maravilhoso ou sobrenatural e/ou, ainda, a utilização de tecnologias (talvez) possíveis, mas ainda não disponíveis.

Dentre as vertentes do gênero está o Realismo Mágico, também conhecido como Realismo Fantástico. Na origem, mistura características do romance gótico, surgido no século XVIII, a uma corrente da literatura surrealista, e com frequência apresenta temas ligados ao imaginário e ao folclore de diferentes povos. Podemos defini-lo como um gênero em que o cotidiano é invadido por acontecimentos insólitos, sobrepondo duas realidades. Elementos presentes na cultura de um povo e/ou lugar emergem com força e muitas vezes fazem contraponto a ideias ou tecnologias introduzidas pelos colonizadores.

O Realismo Mágico é especialmente forte na América Latina e na África. Tem entre seus expoentes nomes como o cubano Alejo Carpentier, os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, o colombiano Gabriel García Márquez, a chilena Isabel Allende, o nigeriano Amos Tutuola e o moçambicano Mia Couto, entre muitos outros. No Brasil, os autores ligados de forma mais consistente ao gênero são José J. Veiga, autor de romances e livros de contos, e o contista Murilo Rubião, de quem agora passamos a falar.

Murilo Eugênio Rubião (1916 – 1991) nasceu em Silvestre Ferraz, hoje Carmo de Minas (MG). Cursou Direito na Universidade de Minas Gerais e lá atuou na política estudantil, tendo sido um dos fundadores da União Estadual dos Estudantes. Ao mesmo tempo fundou, com alguns colegas, uma revista literária, intitulada “Tentativa”, e iniciou uma troca de correspondência com Mário de Andrade. Publicadas mais de cinquenta anos depois (1995) com o título “Mário e o pirotécnico aprendiz”, as cartas, segundo Suzana Canovas (UFG), antecipavam algumas críticas que seriam feitas a Rubião e o alertavam para os riscos de trabalhar com o simbólico e banalizar o que deveria se manter como um elemento maravilhoso aos olhos do leitor. O próprio jovem se mostrava inquieto por não saber bem a que gênero pertencia sua literatura e temia estar sendo influenciado por Franz Kafka - um ponto, aliás, levantado pelo experiente e sempre arguto Mário de Andrade.

Fosse como fosse, o aprendiz de escritor, como Rubião se denominava, continuou a escrever e a revisar incessantemente, ao mesmo tempo que se tornava redator da “Folha de Minas”, onde trabalhou por mais de uma década. Em 1942 formou-se na Universidade, e logo começou a assumir cargos de direção em associações de jornalistas, radialistas e escritores. Mais tarde viria a ocupar diversos cargos políticos, entre os quais o de chefe de gabinete de Juscelino Kubitschek, então governador de Minas Gerais (1951), e o de diretor de Publicações e Divulgação da Imprensa Oficial do Estado (1975, ano em que se aposentou).

O primeiro livro de Murilo Rubião foi o volume de contos “O ex-mágico” (1947), que, na época, o crítico Sérgio Milliet classificou de “desigual”, apontando como um problema a tentativa do autor de controlar os arroubos da imaginação por meio da linguagem. Seguiram-se “A estrela vermelha” (1953) e, vários anos depois, “Os dragões e outros contos” (1965). Muitos desses textos foram publicados em periódicos.

Leia o conto “Os dragões”, publicado no Correio da Manhã a 13 de julho 1953 (Hemeroteca Digital)

Embora o insólito em seus textos e a escolha de temas lhe valessem frequentes comparações com Kafka, Murilo Rubião afirmava que suas maiores referências eram autores ligados à tradição do fantástico, tais como Hoffmann e Chamisso, e ainda Machado de Assis, de quem era leitor contumaz e devotado. Era extremamente exigente com seu trabalho; em entrevista concedida ao “Correio da Manhã” em 1956, disse ter escrito mais de 150 contos para escolher os que compuseram “O ex-mágico”, que vários editores recusaram por achar as histórias “estapafúrdias”.

Leia o artigo completo publicado no “Correio da Manhã” em 1956 (Hemeroteca Digital).

O mais famoso livro de Murilo Rubião é “O pirotécnico Zacarias”, publicado em 1974. Aqui, segundo afirmou na época o crítico Rui Mourão, nota-se muito bem a influência de Machado de Assis, em especial o de “Memórias póstumas de Brás Cubas”; o realismo ficcional está aberto para o território do sonho e as reflexões provocadas pela consciência, e o apuro com a linguagem segue par a par com “uma invenção de mundo fantasista, alucinada e ingovernável”.
Leia “Bárbara”, um dos contos de “O pirotécnico Zacarias”, publicado na “Tribuna da Imprensa” em 1975. Em nota, o jornal se refere a Murilo Rubião como “um legítimo Cronópio”, termo usado pelo escritor argentino Julio Cortázar para seres indefinidos criados em um de seus contos, mas que, com o tempo, passou a ser usado como sinônimo de pessoa idealista, sensível e imprevisível, embora um pouco ingênua (Hemeroteca Digital).

Nos anos subsequentes, o autor mineiro publicou quatro outros livros, sempre de contos curtos, muitos dos quais seriam republicados em coletâneas e obras completas. Alguns foram traduzidos em vários idiomas e adaptados para o cinema e o teatro. Seu conto “Teleco, o coelhinho” (1965), sobre um animal que muda constantemente de forma, é presença constante não apenas em antologias de Literatura Fantástica, mas também naquelas que reúnem os melhores contos já escritos no Brasil.

Perfeccionista e sempre cético quanto à qualidade de seu trabalho, Murilo Rubião deixou apenas trinta e dois contos publicados, além de alguns textos incompletos, que integram o acervo doado por sua família à Faculdade de Letras da UFMG. Foi o suficiente para consagrá-lo como pioneiro do Realismo Mágico no Brasil, cuja obra influenciaria autores como José J. Veiga e Moacyr Scliar.

Murilo Rubião em 1956 (Correio da Manhã).