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Literatura | Oblómov: da prostração à aventura no Brasil

17 nov 2021

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É como já dizia Otto, o Maria Carpeaux, em tons de conversa de botequim: "Os críticos franceses em geral não se preocupam com literaturas estrangeiras". Sério, caro polímata? Sério. "Quando muito, leem livros ingleses e alemães", continuava. E quanto aos russos? "Sobre a grande literatura russa do século passado", fincava Otto, entre bebericadas imaginárias, "um crítico parisiense exclamou, outro dia: 'Que literatura maravilhosa! É um caso talvez único, só há estrelas de primeira grandeza e nenhum escritor medíocre!'" Ora, ora. Carpeaux, austríaco naturalizado brasileiro, cá nestes lados do Atlântico fazendo e acontecendo como jornalista, crítico de arte, historiador, ensaísta e etc., não se impressionava com tamanha estupefação. Se maravilhava, isso sim, com Fiódor Dostoiévski e seus compatriotas. Suas palavras aqui transcritas vieram, afinal, de uma série literária especial da revista Manchete, intitulada, justamente, "As obras-primas que poucos leram". Pois, em edição de 22 de janeiro de 1977, o intelectual direcionava os holofotes para um sujeito que nunca colhera os mesmos louros que Dostoiévski, Liev Tolstói, Maxim Górki, Anton Tchekov ou Ivan Turguêniev. Tratava, na ocasião, da opus magna de Ivan Alexándrovitch Gontcharov: o romance Oblómov. Livro de cabeceira de Charles Cosac, sujeito aliás muito semelhante a seu protagonista, Ilya Ilyich Oblómov, um jovem aristocrata que possuía um dom e tanto: o de ficar prostrado, recluso, inventando mil justificativas para não sair do leito. Coisa de nossos tempos atuais? Necas. A obra foi escrita em 1859. E apenas há 55 anos foi lançada cá nestes tristes trópicos. A Oblómov e a seu autor, nossos mais sinceros e humildes suspiros.

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Quando lançado, em 1859, tempos em que o reinado do czar Alexandre II mal havia começado, Oblómov foi um estouro: sátira perfeita da nobreza do Império russo, gerando debates intermináveis, sob diferentes prismas, do social ao psicológico. Na época, o sistema servil ainda vigorava por aquelas bandas - caindo apenas em 1861, com a chamada Reforma Emancipadora, que colocou ponto final no problema apenas no papel. Como, então, a personalidade do imperador, um tanto liberal e modernizadora, antenada com a industrialização europeia, dialogava com seu gigantesco país, que então mais parecia entrevado no feudalismo? Frente a uma burguesia intelectual ávida por oportunidades, a figura de Ilya Oblómov, um aristocrata latifundiário trintão desencorajado com as pressões da vida adulta, bondoso porém cansado de suas obrigações, incapaz tanto de tomar decisões quanto de mover um grão de arroz, virou a piada do momento.

O livro maior de Gontcharov surfava na crítica social de seu tempo, ao parecer perguntar: para que serve gente como Oblómov, ao menos em termos socioeconômicos? Pelas adjacências do Volga e além, "oblomovismo" passou a ser um termo comum para se atribuir traços de modorra e preguiça a qualquer um, cunhado no próprio livro. Pudera: o protagonista só consegue sair da cama depois da página 50, para cair numa cadeira e em outro horrendo desafio, o de deixar o quarto. E só sai da inércia quando seu melhor amigo, Andrey Ivanovich Stoltz, o força, não a fazer algo de produtivo, mas a travar contato com a amável Olga. Oblómov, que só queria ficar quieto, conhece então o "amor", esse grande problema. Mas tem preguiça demais para ele. Quem completa Oblómov, afinal, é seu criado Zakhar, tão preguiçoso quanto ele. (Suspiros)

Embora seja difícil de acreditar, Gontcharov, ao pintar a nobreza de forma um tanto frívola e impotente, na verdade, não era nenhum revolucionário indignado: não só era um tanto conservador como trabalhava como censor do Estado imperial, cargo que ocupou durante cerca de trinta anos. O que se passava, nas palavras de Otto Maria Carpeaux, para a Manchete, em 1977, era o seguinte: "Embora fosse um dos censores do czar, Ivan Gontcharov sabia que os dias da servidão estavam contados e que uma nova classe subiria ao poder", no caso, a burguesia. Ainda assim, seu personagem mais emblemático, afinal, fora concebido mais como um retrato da natureza humana como um comentário mordaz a respeito das classes dominantes. O medo de mudança e o caráter supérfluo de Oblómov, aferrado em imagens de sua infância, foram lidos pela inteligência russa da época como incompatíveis com o século XIX, ao passo em que as figuras coadjuvantes de Andrey e Olga representavam o que seria uma "nova" Rússia, moderna e, por isso mesmo, rejeitada pelo lesado protagonista. Isso não quer dizer que Gontcharov fosse poupar os arautos do capitalismo em seu país: no julgamento do personagem título do livro, não havia como entrar em empreendimentos com homens práticos moderninhos como Andrey sem cair na especulação desonesta. Oblómov era estático, mas não era bobo.

Apesar de famoso a partir de 1859, Oblómov aparecera pela primeira vez em 1849, num conto de Gontcharov para a revista literária Sovremennik (Contemporânea), que acabou inserido como capítulo 9 da primeira parte do romance lançado em 1859. Foram necessários dez anos entre as publicações da curta narrativa e da longa não por preguiça, mas porque mil coisas se passaram com o autor no intervalo: sua mãe morreu, viajou o mundo à bordo da corveta Pallas (tendo escrito a respeito, mesmo nunca tendo botado o pé para fora da cabina), passou um tempo na Sibéria e acumulou muito serviço como censor. Só lá por volta do primeiro semestre de 1857 que Gontcharov escreveu, de fato, Oblómov, o romance, passando o ano seguinte inteiro revisando e reescrevendo o original. E então, a partir de 14 de janeiro de 1859, como era comum na época, o texto começou a ser publicado em folhetim, ou seja, em partes, no periódico Otechestvennye Zapiski (Notas Domésticas). E aí, foi só sucesso. Na ocasião, o escritor contou com prestígio suficiente para se tornar editor de um jornal, em 1862, e ascender na burocracia do Ministério do Interior. Mas, no universo literário, só veio a publicar outro romance, O precipício, em 1869, dois anos depois de se aposentar de seu cargo público. O problema é que, naquela momento, seu novo trabalho parecia querer desfazer a impressão causada por Oblómov: era mesmo uma condenação do niilismo e uma defesa de valores morais e religiosos mais ligados à velha e arcaica Rússia de antanho.

Falecido aos 79 anos em 1891, quando só então seu defasado país começava a ensaiar a industrialização, Gontcharov passou seus últimos anos um tanto isolado, sem nunca ter se casado, ressentido com críticas negativas a seus trabalhos pós-Oblómov. Num acesso irresistível de oblomovismo, seus últimos 24 anos, segundo Otto Maria Carpeaux, se passaram sem que fizesse "nada, absolutamente nada".

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Longe da Rússia imperial do século XIX em tempo e espaço, quem não era preguiçoso, afinal, era Francisco Inácio Peixoto. Mineiro de Cataguases, foi um escritor modernista do chamado Grupo Verde, que na década de 1920 esteve à frente da revista cultural Verde, por aqui já abordada. Mas, por acaso, também atuava como industrial e fazendeiro, financiando obras de arquitetura moderna em sua cidade natal, lá pelos anos 1940. Embora seus poemas, contos e romances hoje não sejam muito lembrados, na década de 1960 o esforçado Peixoto se embrenhou na inédita tradução de Oblómov para o português brasileiro, embora não a partir do original em russo. Assim, o romance de Gontchárov chegou às livrarias tupiniquins em 1966, através da Editora O Cruzeiro, braço editorial do conglomerado de mídia Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Sujeito que, aliás, foi outra antítese de Oblómov: era serelepe e espiroqueta, daqueles que acordavam às 5 da manhã para um banho de mar antes de cair na labuta e arrumar briga com meio mundo, na imprensa. Só de ler algo a respeito de Chatô dá para ficar cansado, mas isso é assunto para outro texto.

Em 1967, Oblómov era anunciado na revista carioca O Cruzeiro, carro chefe dos Associados, por NCr$ 5,00 o exemplar, junto com outros títulos da editora do grupo, em geral concernentes a assuntos de política, economia e sociedade. Só Deus e a alma penada do diretor do departamento comercial das Edições Cruzeiro sabem da aceitação que Oblómov teve (ou não) naquele momento, frente ao leitor brasileiro. Mas a revista ainda anunciava a venda do título em 1970, ao lado de colunas de figuras como Austregésilo de Athayde. É bem verdade que seu anúncio, na época, não tinha tanto destaque quanto os de aulas de judô ou de cursos técnicos de eletrônica. E, mesmo entre os livros propagandeados, O homem demolido, de Alfred Bester, uma ficção científica que narra as desventuras de detetives telepatas versus um gênio do mal em pleno ano de 2301, e A busca da paz, de Harlan Cleveland, um diplomata americano nos governos de Lyndon Johnson e Richard Nixon, apareciam à frente de Oblómov. Não que Gontchárov talvez ficasse prostrado, de cama, ao saber que seu maior sucesso, depois de chegar ao Brasil com mais de cem anos de atraso, caísse, aparentemente, no esquecimento.

Embora Otto Maria Carpeaux o abordasse no texto de que falamos acima, na Manchete, em 1977, Oblómov, o livro, parece cá ter ficado, assim como seu protagonista, recolhido, ao fundo das prateleiras tupiniquins. Mas foi ressuscitado em 2001, por uma nanica editora paulistana chamada Germinal (que não deve ser confundida com sua quase homônima Edições Germinal), com dita "nova tradução". Embora o relançamento tivesse sido de início comemorado, foi das páginas literárias dos jornais para o noticiário policial: é que a nova tradução era, na verdade, a mesma de Francisco Inácio Peixoto. O jornalista José Maria Cançado, na Folha de S. Paulo, em janeiro de 2002, havia apontado que a "nova" versão estava cheia de erros. Na verdade, eram arcaísmos pré-reforma ortográfica de 1971 e erros tipográficos grosseiros, que denunciavam o plágio quando comparados à versão das Edições Cruzeiro. Num esforço conjunto entre os jornalistas Arthur Danton e Euler de França Belém, que levantaram a questão com a ajuda de Anselmo Pessoa, professor da Universidade Federal de Goiás, especulou-se até que o nome da "tradutora" tivesse sido inventado. Quanto à Germinal, não se sabe se foi processada pelos herdeiros de Peixoto, pois, conforme apurado pela Folha de S. Paulo, tratava-se de uma empresa-hobby, mantida de forma semiprofissional por um editor como distração produtiva durante seus últimos momentos de vida, vítima que era de um câncer - outro sujeito que, reconheçamos, não caía no abatimento. O final feliz de Oblómov no Brasil ficou para 2013, quando enfim o romance foi traduzido diretamente do russo pelo bamba Rubens Figueiredo, e publicado pela Cosac Naify. Obrigado, Charles Cosac.
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Mas, afinal de contas, por que Oblómov é importante, hoje? Por que ler um catatau de 500 páginas a respeito de um sujeito que mal sai da cama? Se ele mesmo não se dá ao trabalho! Já não basta que nós, leitores contemporâneos, não saiamos, ou não queiramos sair do aconchego? E por que Otto Maria Carpeaux o considerava uma obra prima, uma epopeia irônica e cética sem igual na literatura universal, mesmo reconhecendo que "seu enredo poderia ser contado em poucas palavras"? Não seria um livro datado, a respeito de uma empoeirada aristocracia finada há muito, num momento específico de quebra de paradigmas sociais? Ora, ora.

Em tempos muito distantes de diagnósticos de depressão, crises de ansiedade, definhamento pandêmico ou síndromes de pânico ou burnout, o personagem de Ilya Ilyich Oblómov, ao radicalmente renunciar a tomada de qualquer tipo de atitude, parecia antecipar certa letargia do homem pós-moderno, aquele sujeito que fica pasmo frente às complexas e expressas idas e vindas do mundo contemporâneo. Sua atitude de certa forma é de ceticismo diante da realidade: só mesmo sendo muito insensível aquele que jamais fica atônito com o atual andar de nossa carruagem social. Quem nunca se sentiu vivendo uma vida sem objetivos e finalidades? E quem não sonha distraído, com os melhores propósitos, mas sem realizar nada de concreto, por pura falta de iniciativa? Nas esferas mais ou menos privadas, muito do que valia nos momentos de mudança, ao tempo de Gontchárov, vale hoje. E talvez até de forma mais contundente.

Em outra chave, Carpeaux ainda frisava que Oblómov tem tudo a ver com o leitor brasileiro pelos desdobramentos do sistema de servidão na Rússia imperial do século XIX em sua escrita. Melhor deixar o próprio mestre explicar. É que

"(...) essa espécie de escravidão ocupa lugar importante. Ou antes, as consequências psicológicas da escravidão sobre os escravocratas. Num artigo famoso, nosso Sérgio Milliet chamou a atenção para o fato de que marcas psicológicas dessa natureza persistem durante muitas gerações depois da extinção da causa. Referiu-se a certos resíduos psicológicos da escravidão no Brasil, depois da abolição de 1888. E outros - críticos de inabaláveis convicções conservadoras, aliás - observaram certas analogias entre a Rússia czarista e o Brasil escravocrata. Por isso, o romance de Gontcharov tem de interessar, fatalmente, aos leitores brasileiros".

Agora, imaginemos uma realidade paralela, onde todos os personagens da literatura mundial convivem, em eternos amores, conflitos e reflexões. Lá, numa apresentação teatral, ao perguntar à plateia "Ser ou não ser?", o Hamlet de Shakespeare ouviria do borocochô protagonista de Gontcharov um sonoro "NÃO!". Quer dizer, na verdade não ouviria nada, pois Oblómov se recusaria a sair de sua toca para assistir à peça. Sua opinião, entretanto, nessa espécie de éden da ficção literária, seria replicada. Se constataria, afinal, que o lento e fatigado nobre se assemelha, e muito, a outro macambúzio heroi literário, Bartleby, o escrivão, da obra homônima de Herman Melville. Esta, aliás, havia sido lançada em folhetim pelo expoente norteamericano em 1853, poucos anos antes do romance de Gontchárov.

Embora Oblómov e Bartleby tenham origens sociais, culturais e geográficas para lá de distintas, parecem estar na mesma fossa. Mas o russo, ainda assim, tem outros equivalentes. Está até mais próximo ainda a outra figura, igualmente emblemática em termos literários, mas menos conhecida, ao menos entre leitores brasileiros: certo blues também era sentido pelo refinado, entediado, jururu e talvez um pouco mais histérico cavalheiro Des Esseintes, de Às avessas, romance do francês Joris-Karl Huysmans de 1884, só um tico posterior às obras de Gontchárov e Melville. No fim das contas, unidos por invencível preguiça, Oblómov e seu criado Zakhar volta e meia ainda são comparados a uma espécie de Dom Quixote e Sancho Pança, inclusive pelo seu próprio autor. Nobres, burgueses, servos e proletários, todos respirando as atmosferas opressoras dos grandes centros urbanos da Europa e dos Estados Unidos, no século XIX, embora por razões diferentes. Não à toa, o próprio Dostoiévski tinha Oblómov em alta consideração.

Ao fim e ao cabo, nada como refletir a respeito da boa e cinzenta modernidade industrial! Tempo em que o homem supérfluo, como Oblómov e seus equivalentes, não tem vez. Época melancólica, rica, tremebunda, delirante, tediosa, violenta, humilhante, paralisante e estimulante para os artistas - e mesmo para as almas sensibilizadas pela arte! Charles Baudelaire era quem sabia das coisas: nesses dias, melhor flanar por aí, de preferência sem rumo e com a cabeça cheia de caraminholas sombrias. Quanto aos poetas e prosadores, podemos dizer muito, mas fiquemos com essa: só podem ser, mesmo, as antenas da raça. No passado e no presente, na ficção ou na realidade, acabrunhados deste mundo, uni-vos!

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Na mais sincera lombeira para achar uma conclusão para este texto, o plumitivo que o assina abdica de palavras finais. Não só é cansativo como logo terá que se escrever outra coisa, e mais outra e mais outra. Preservemos a fleuma e deixemos o leme, afinal, ao mestre Carpeaux:

Talvez seja Oblómov o ponto mais alto do grande realismo russo: tudo, nesse romance, é convincente como a própria realidade: a aldeia patriarcal com sua preocupação de comer bem e muito; a poeira que não vale a pena limpar porque no dia seguinte haverá outra poeira; o sofá que é o refúgio de todos os homens bons e preguiçosos. Tudo isso é real e, ao mesmo tempo, simbólico, como aquele robe de chambre com que Oblómov está coberto durante o dia todo e que envolve toda a Rússia. Oblómov é uma obra de arte. Mas o próprio das obras de arte é perguntar. Não é responder.

Explore os documentos:

Em 1977, a revista carioca Manchete põe Otto Maria Carpeaux para apresentar Oblómov para seu público leitor, na sugestiva série "As obras primas que poucos leram".

O Cruzeiro, em 1970, propagandeava com pouco destaque o lançamento de sua edição de Oblómov.