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Literatura | Os Enigmas de Clarice Lispector

04 dez 2021

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Um dos nomes mais conhecidos e aclamados da Literatura Brasileira, Clarice, cujo nome verdadeiro era Chaya Pinkhasovna Lispector, nasceu em Chechelnyk, Ucrânia, em dezembro de 1920. Sua família era de origem judaica e se viu obrigada a deixar o país durante a Guerra Civil Russa. No Brasil, onde chegaram em 1922, passaram algum tempo em Maceió, mudaram-se para Recife e, após a morte da mãe, para o Rio de Janeiro, onde se estabeleceram de vez.

Clarice, que ainda criança escrevera seus primeiros trabalhos literários – uma peça e vários contos, enviados à página infantil do jornal “Diário de Pernambuco”, mas nunca publicados –, ingressou no curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que trabalhava com traduções e secretariado. Em 1940 publicou seu primeiro conto de que se tem registro, na revista “Pan”: um de seus muitos trabalhos com foco na psique feminina, intitulado “Triunfo”, que nunca foi republicado em seus livros posteriores.

Também em 1940, após a morte do pai, Clarice e sua irmã Elisa foram viver com a mais velha, Tania, já casada, que residia num pequeno apartamento com o marido. Clarice passava seu tempo estudando, escrevendo e buscando ingressar no mundo jornalístico. Na redação da revista “Vamos Ler!” ela conheceu Raimundo Magalhães Filho, secretário do Ministro da Propaganda, que publicou alguns de seus contos a partir daquele ano.

Leia o conto “Trecho” publicado 1941 na “Vamos Ler!”. Apesar do título, é um conto completo, que acompanha os pensamentos de uma mulher sentada num bar à espera do amante.

Incansável em sua busca por espaço na imprensa, Clarice acabou por ser contratada pelo próprio Ministro da Propaganda, Lourival Fontes, como tradutora da Agência Nacional, uma agência governamental de notícias. Em vez de traduzir, porém, tornou-se a única mulher a atuar na agência como editora e repórter, o que a levou a cobrir vários eventos no país e a conseguir publicação em periódicos. Além de ficção, escreveu textos filosóficos e acadêmicos, publicados na revista universitária “A Época”. A amizade com o escritor e jornalista Lúcio Cardoso a fez travar contato com intelectuais e artistas como Vinícius de Moraes, Cornélio Pena, Rachel de Queiroz e Augusto Frederico Schmidt.

Em 1943, após um longo processo, Clarice Lispector se naturalizou brasileira e se casou com Maury Gurgel Valente. Os dois se formaram em Direito meses depois e, no final do mesmo ano, ela publicou seu primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”. O título, sugerido por Lúcio Cardoso, faz referência a “Retrato do Artista Quando Jovem”, de James Joyce, que, tal como o livro de Lispector, é um romance de formação escrito de forma solta, fragmentária, subjetiva. Essa obra marcou a estética de quase todo o trabalho ficcional de Clarice e, apesar de algumas vozes contrárias, conseguiu uma boa reação por parte de críticos como Lêdo Ivo e Sergio Millet, além de receber o Prêmio Graça Aranha no ano seguinte.

Pouco após o término da II Guerra Mundial, a escritora foi residir na Europa, acompanhando o marido, que seguia a carreira diplomática. De lá continuou a se corresponder com escritores brasileiros e a enviar colaboração para jornais. Em 1946 publicou seu segundo romance, “O Lustre”, escrito de forma linear, que alguns estudiosos consideram influenciado pela obra de Jean-Paul Sartre.

Veja um cartão enviado de Nápoles a Artur Ramos, no qual Clarice conta ter concluído seu segundo livro (1946, Setor de Manuscritos)

Clarice Lispector teve dois filhos com Maury Gurgel Valente: Pedro, nascido em 1948 na Suíça, e Paulo, que nasceu nos Estados Unidos em 1953. É muito conhecida a fotografia em que a autora aparece sentada num sofá, com a máquina de escrever no colo, dividindo-se entre o trabalho e o cuidado com os meninos. Na adolescência, Pedro foi diagnosticado com esquizofrenia, que piorava com o nervosismo causado pelas frequentes mudanças, e o desejo de se dedicar tanto a ele quanto a sua carreira – também prejudicada pelas viagens constantes -- contribuíram para que em 1959, após ter publicado mais um romance e um livro de contos, Lispector se separasse do marido e voltasse com os filhos para o Brasil. Nesse mesmo ano, tornou-se colunista do jornal “Correio da Manhã”, onde, com o pseudônimo Helen Palmer, assinou por três anos a série “Correio Feminino”. Suas dicas sobre beleza, moda, relacionamentos e administração doméstica eram voltados para mulheres de classe média – mulheres ligadas ao lar, que deviam se atualizar sem, no entanto, “ofuscar os maridos”, como define a pesquisadora Renata Neiva, da Universidade Federal de Uberlândia.

Leia uma das colunas, publicada em 1960.

Nos anos que se seguiram, Clarice Lispector continuou a publicar romances e livros de contos. “A Paixão Segundo G. H” (1964) e “Felicidade Clandestina (1971) são dois de seus títulos mais conhecidos, que incluem também livros infantis, como “A Mulher que Matou os Peixes” (1968).

Entre 1967 e 1973 assinou uma coluna semanal de crônicas no “Jornal do Brasil”. Também traduziu contos e cerca de 35 livros de autores como Jorge Luis Borges e Agatha Christie. Ao mesmo tempo, sua obra foi vertida para vários idiomas a partir de 1954. As traduções se multiplicaram principalmente após a morte da escritora, em 1977, vítima de câncer de ovário. Tinha acabado de publicar “A Hora da Estrela”, talvez seu romance mais famoso, que conta a história da datilógrafa Macabéa e foi levado às telas em 1985, com Marcélia Cartaxo no papel principal.

Leia uma matéria de Heloneida Studart na revista “Manchete” sobre a morte de Clarice Lispector.

Algumas obras de Clarice Lispector foram publicadas de forma póstuma, tais como as crônicas do “Jornal do Brasil”, reunidas no livro “A Descoberta do Mundo”, de 1984. Também sua correspondência foi reunida em dois volumes: “Correspondências”, que reúne 129 cartas trocadas entre Clarice e outros escritores e intelectuais, e “Minhas Queridas”, com mais de uma centena de cartas que escreveu às irmãs. A maior parte do seu arquivo pessoal, que além de cartas contém notas, discos, livros e fotografias, está sob a guarda do Instituto Moreira Salles.

Na década de 2010, dentro da iniciativa de difundir obras de autores latino-americanos, cinco livros de Clarice Lispector foram publicados pela Penguin Books. Os tradutores foram coordenados por Benjamin Moser, que, ainda estudante, se apaixonara pela “enigmática escritora brasileira” e escrevera uma biografia crítica intitulada “Why this World” (2009), aqui publicada apenas como “Clarice” pela Cia. Das Letras. Segundo Moser em entrevista ao New York Times, a literatura de Clarice Lispector não era para todos, apenas para iniciados capazes de compreendê-la, mas a escritora era dona de uma personalidade fascinante. Em suas palavras, tratava-se de “uma mulher que não foi interrompida: uma mulher que não começou a escrever tarde, nem parou para casar ou ter filhos, nem sucumbiu às drogas ou ao suicídio. Uma mulher que, como tantos escritores do sexo masculino, começou na adolescência e continuou até o fim”.


(suplemento literário de O Estado de São Paulo, 1978).