BNDigital

Memória | Publicado pela primeira vez na revista O Cruzeiro, o quadrinho do personagem O Amigo da Onça.

23 out 2021

Artigo arquivado em Memória
e marcado com as tags Amigo da Onça, Caricatura, Caricaturistas, Charges, Desenhos Humorísticos, Humor Gráfico, Imprensa, O Cruzeiro Revista, Péricles, Secult

Para você que sorria ao ver o indiozinho da TV Tupi, que assistia ao clube do Guri e acompanhava os quadrinhos da Luluzinha e do Bolinha, sim baby boomer, você mesmo, saberá identificar com competência aquela pessoa mui amiga, que se vende prestativa, mas na verdade não passa de uma farsante. “É o verdadeiro amigo da onça!” atestaria imediatamente. A expressão popularizada por Périclesa serviço da revista “O Cruzeiro” sintetizava a genialidade da seção humorística ao imprimir vivamente a moral social cambiante, um misto de cinismo e instinto de sobrevivência, característico dos muitos tipos retratados pelo caricaturista.

Considerado um dos caricaturistas mais completos do país, o recifense Péricles de Andrade Maranhão já despontava para as artes desde cedo. Aos novemostrava seu talentodesenhando Dick Tracy e Flash Gordon, seus heróis favoritos. Colaborava para a revista do Marista de Recife, o colégio de frades onde estudava. O traço minucioso lhe rendeu prêmios de ilustração na cidade e alguma notoriedade já que concorria com desenhistas experientes. Jovem, foi tentar a sorte na cidade maravilhosa. Munido de coragem eum punhado de quadrinhos satíricosfoi contratado aos dezessete pelos Diários Associados sob o aval de Assis Chateaubriand. Dois anos depois passou a colaborador pela Cruzeiro.

“Oliveira, o trapalhão” foi seu primeiro trabalho profissional, mas foi com o tipo franzino, de olhar astucioso,porém simpático, o Amigo da onça, que Péricles alcançou reconhecimento nacional. Dizem que o personagem foi criado a semelhança do criador. Contudo, fontes confirmam quea escolha do figurino foi inspirada na figura de um garçom. Incrédulo, questionava Péricles sobre viver às custas de piadas, o que lhe rendera a justa homenagem. Conta que Leão Gondim, editor da revista O Cruzeiro, teria encomendado a personagem aos moldes dos cartuns argentino “El enemigo del Hombre” e americano “Enemies of Man” publicados pelas revistas Patoruzú e Esquire respectivamente. Porém, a versão mais conhecida sobre a inspiração para a personagem decorre de um hipotético diálogo entre dois caçadores. Um interpela o outro sobre as possibilidades, ou melhor, as não possibilidades de escapar ao ataque de uma onça, quando o interpelado já irritado com os obstáculos oferecido pelo outro revida: “— Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?” 

Publicado semanalmente na seção Humorismo, a série disputava atenção com outros hits da caricatura. A famosa “Garotas” do Alceu de autoria de Alceu Pena e Vão Gogo pseudônimo do memorável Millôr Fernandes, que também escrevia para “Eva sem costela”, sob o pseudônimo de Adão Júnior,“Pif Paf”sob autoria de Péricles e Vão Gogo,“Nunca sai de Casa” de Bob Hope e“Sinal dos Tempos”,mais uma contribuição de de Péricles.

O sucesso foi estrondoso. Em apenas dez dias as edições Cruzeiro haviam atingido a tiragem de 10.000 exemplares, seguida de segunda edição na marca de 20.000 exemplares. Todos vendidos. Não tardou para a rádio Tupi lançar em sua programação de notícias a série o Amigo da Onça. A seção de jogos e entretenimento da revistaatestava seuprestígio divulgando vez ou outra testes e charadas sobre a personagem. A seção de cartas também comprovava a adesão do público a série humorística. Chovia elogios, mas também desavenças, quase sempre desautorizadas pelo conselho da revista sob a advertência de falta de percepção, ou mentalidade aguçada do digníssimo leitor. Em 1946, Péricles publicava em álbum a versão do Amigo da Onça,uma seleção de 100 caricaturas, tornando-se um “best-seller” do mercado editorial.

O espírito crítico e satírico captado no cartum advinha das perambulações de Péricles pelas ruas, cafés e botequins por onde espontaneamente pululavam personagens dignos de nota. Verdadeira matéria-prima, o mundanismo fluminense era assistido e testado pelo autor, consagrando o amigo da onça e sua malandragem como autêntica “entidade carioca”.A verve de Péricles subvertia a pretensa moralidade, desestabilizando costumes caros a observância da ordem e dos bons costumes, característicos dos anos dourados.

O Amigo da onça foi publicadoaté a edição de 3 de fevereiro de 1962. Após a morte do autor, em 1962, o personagem passou para os cuidados do ilustrador Getulio Delphim, porém por um período curto, apenas dois anos, seguido do chargista Carlos Estevão, mantendo o personagem até 1972.

A morte de Périclesgerou grande comoção, um evento daqueles que estampariam aspáginassensacionalistas, senão fossemos registros de sua depressão. Péricles cometera suicídio na virada do anode1961. Vestido com seu terno branco deixou dois bilhetes: um para mãe e outro com data, hora e circunstâncias do ocorrido. Foi encontrado em seu apartamento em Copacabana asfixiado por gás de cozinha. Na porta de casa um bilhete: “por favor, não risquem fósforos”, aviso interpretado como o último aceno de seu humor ácido e infalível.

A contribuição de Péricles para revista somou mais de duas mil charges. Sem dúvida, Péricles foi o grande nome do humor gráfico. Rápido e eficiente.Como legado, novos materiais foram produzidos nas últimas décadas. O personagem foi reeditado para a editora Abril e O Estadão, com roteiro de José Alberto Lovetro, o Jal e ilustrações de Otávio Cariello. No audiovisual,as homenagens seguiram com o curta-metragem “A Última do Amigo da Onça”e peça teatral homônima ao personagem,escrita pelo cartunista Chico Caruso e encarnado pelo ator Chiquinho Brandãocomo o velho e eterno amigo da onça.

(Iconografia)

O CRUZEIRO, 4 de março de 1944.