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Música | Raulzito: metamorfose beleza do maluco ambulante

05 jul 2021

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e marcado com as tags Maluco Beleza, Música Popular Brasileira, Raul Seixas, Rock Brasileiro, Secult, Sociedade Alternativa

O mundo atual nos reserva poucas certezas. A primeira delas é essa: é possível ficar maluco total, na loucura real do cotidiano. A segunda é que os clássicos do rock’n’roll brasileiro têm caído muito bem em tempos de pandemia, isolamento social, big tech, teorias conspiratórias, insegurança financeira, degradação ambiental irreversível e etc. Ou talvez muito mal. Vejamos. O gramofone do plumitivo que vos escreve, atualmente, não para de tocar “Preciso urgentemente encontrar um amigo”, de Os Mutantes. Da mesma banda, boas pedidas têm sido ainda “Loucura pouca é bobagem”, “Esquizofrenia”, “Síndrome do pânico” e, por que não?, “Tudo explodindo”. Já Rita Lee, em carreira solo, contribui com as cuidadosas “Vamos tratar da saúde” e “Pé de meia”. Pois não. Absurdamente proféticos, também, os hits “Não transo mais” e “Você já foi vacinado?”, de Made in Brazil. Blindagem faz inveja aos confinados de apartamento com “Cheiro do mato”, enquanto Casa das Máquinas vem com as singelas “Stress”, “Dr. Medo” e a resignada “Essa é a vida”. Mesmo feeling dos Secos & Molhados, com “Angústia”, “Insatisfação”, “Delírio”, “Meu coração não pode parar”, “Tem gente com fome”, “Estrábico-Democrático”, “Tudo errado” e outras tantas. Por sua vez, “Queimada”, de O Terço, não nos deixa esquecer de nossos rincões amazônicos. Mas a música tema do atual momento, no fim das contas, não é nenhuma dessas. Quem capitaneia a playlist de nosso apocalipse contemporâneo é, certamente, “O dia em que a Terra parou”, que tasca o seguinte papo reto: “Foi assim / No dia em que todas as pessoas / Do planeta inteiro / Resolveram que ninguém ia sair de casa / Como que fosse combinado em todo o planeta / Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém”. Obra da bola de cristal do maluco beleza por excelência: Raulzito. Hoje, neste 28 de junho, o pai do rock brasileiro completaria 76 anos. Lembremos, afinal, sua maluquez, misturada com boa dose de lucidez.

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Nascido na capital baiana a 28 de junho de 1945, às 8 horas da matina, Raul Santos Seixas veio ao mundo, por estranho que pareça, por vias naturais: nada de discos voadores e coisas do gênero. Petiz, se encontrava no seio de uma comum e corrente família de classe média: o pai, Raul Varella Seixas, engenheiro, a mãe, Maria Eugênia Santos Seixas, doméstica. A partir de 4 de dezembro de 1948 passou a contar com a presença de Plínio Santos Seixas em casa, um irmão que foi um bróder para valer, por toda a vida, nas curtições e nas barras pesadas. Nessa tenra época, música ainda não era o barato de Raul: ensimesmado, matutava mais a respeito de questões como a morte, o destino da humanidade, de onde viemos, para onde vamos, grilos assim. Tanto que, moleque, deu em fumar como um francês existencialista. Em 1956 chegou até a fundar certo Clube dos Cigarros com amigos do bairro. Mas lá por esses dias não era Jean-Paul Sartre quem fazia a cabeça de Raulzito: era Elvis Presley. O primogênito de seu Raul e dona Maria Eugênia já anunciava a que vinha. Andava então por aí com as golas das camisas levantadas, de topete, mascando chicletes de uma forma muito peculiar e, performático que só, imitando o ídolo americano mesmo nos trejeitos, aprendidos no cinema. Que figura.

O rock’n’roll tinha entrado na vida do jovem Raul Seixas de jeito. Mas, logo em seguida, toda a carga cultural atrelada ao gênero musical ocupou tanto a cabeça de Raul que o ainda protótipo de maluco beleza levou bomba na escola: teve que repetir a segunda série do ginásio no Colégio São Bento, em 1957. E não foi só uma vez. Reprovou o mesmo ano ainda outras duas. É que Raul se ligava mais em passar o tempo ouvindo o uah-bap-lu-bap da grande novidade que era o rock, coisa que havia deixado de joelhos boa parcela da juventude mundial. Gastava horas na loja Cantinho da Música. O clube de fumantes infantis capitaneado pelo nosso heroi foi deixado de lado, virando um fã-clube de Elvis em 13 de julho de 1959, muito por influência do parça Waldir Serrão, o grande responsável por fazer Raul sair de casa e ter uma vida social mais ampla. O problema era que a molecada socializava de acordo com toda uma maneira marginal de ser, de acordo com o que se entendia do rock de então: saíam por aí em gangue, quebrando vidraças, roubando quinquilharias, esbofeteando quem olhasse de soslaio, procurando confusão, em suma. Eram os bad boys de Salvador. James Dean voltaria para casa de nariz escorrendo e chupando o dedo, caso desse o azar de topar com eles!

Raul depois dizia que não era muito ligado nas arruaças. Mas que elas, naqueles momento, não podiam ser dissociadas do rock’n’roll. Pelo sim pelo não, seus pais resolveram o matricular em um colégio católico mais linha dura, o Colégio Interno Marista, nome cuja simples menção tem o poder de automaticamente baixar golas, enfiar camisas para dentro das calças e lamber cabelos rebeldes. Raul foi levando, na base do suplício. Como bom encucado que era, já na virada para os anos 1960, seu interesse pela leitura cresceu, e muito. Dos gibis, Raulzito passou a devorar os variados volumes da robusta biblioteca de Raulzão pai. Sua imaginação explodiu, para dentro e para fora: fã de bangue bangue, Raul bolava nos cadernos escolares histórias em quadrinhos e roteiros de filmes muito loucos, repletos de ação, cientistas malucos e viagens a lugares imaginários, como o “Nada”, o “Tudo” e muito além. Sempre ao som de Little Richard e companhia, devidamente imitados com estardalhaço, gritarias e atiradas no chão. Coisas de fã. Seus pais não o entendiam, mas Plínio sim. Maravilhado, não só comprava esboços by Raul – não esqueçamos que nosso ídolo era quatro anos mais velho – como ficava horas ouvindo o irmão encenar essas histórias, encarnando cada personagem com dotes dramáticos dignos de Oscar. Ambos amavam literatura. Coisa que não evitou que Raul repetisse o terceiro ano do ginásio. “Nunca aprendi nada na escola. Minto. Aprendi a odiá-la”, dizia o pai do rock brazuca, anos mais tarde.

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Os anos 1960 foram cruciais na metamorfose de Raulzito. O primogênito dos Seixas tinha o sonho de ser um escritor do naipe de Jorge Amado, mas quem não tem colírio usa óculos escuros: seu interesse por música foi crescendo e mostrando possibilidades, tomando contornos sérios. Na Salvador dos anos 1950 para 1960, basicamente só se tocava Luiz Gonzaga – poucos sabiam o que era rock’n’roll. Mas, ainda assim, uma cena local do gênero gringo já se desenhava. E Raul estava dentro. Os irmãos Délcio e Thildo Gama formaram uma banda, que com o passar do tempo teve várias formações e vários nomes – “Relâmpagos do Rock”, por exemplo. No ano da graça de 1963 os Gama haviam evoluído o suficiente para emplacar The Panters, fazendo certo sucesso nos círculos jovens da capital baiana. Conforme a empreitada foi tomando forma, o conjunto foi rebatizado como Os Panteras, contando com os talentos dos irmãos, mais Mariano Lanat, Eládio Gilbraz, Carleba e Raul Seixas. Foi um estouro local, principalmente entre os brotos, estilosos e moderninhos que eram, apesar de esquálidos: a banda toda reunida talvez pesasse uns 40 kg, no total.

Quando Os Panteras já tinham cerca de quatro anos de estrada, em 1967, Raul caiu de amores por uma gata de nome Edith Wisner. Só que ela era filha de um pastor protestante americano e o coroa, que surpresa, não aprovava o relacionamento. Sabendo que Raul era um estridente frangote p**** louca que havia abandonado os estudos para se dedicar à sobrenatural ciência do showbusiness juvenil, disse algo como: “Tá ok, eu aceito que vocês se casem, caso o tal do Raul chegue aqui com um diploma de advogado”. Foi uma ironia, voltada ao histórico escolar de Raulzito. Mas foi um tiro pela culatra, ademais no pé. Primeiro, o jovem Seixas enrolou a família de Edith dizendo que havia dado o perdido n’Os Panteras. Depois, num episódio que merece menção honrosa na história da intelectualidade baiana, quiçá nordestina, Raulzito, em apenas seis meses, completou o segundo grau, fez um cursinho pré vestibular relâmpago e passou para Direito, Psicologia e Filosofia. Os milagres que o amor faz? Talvez. Fato é que nosso rock’n’roller era, de fato, um estridente frangote p**** louca, mas um estridente frangote p**** louca obstinado. E, contra as aparências, familiarizado com a leitura. Raul sempre foi um p*** cabeça.

O sogrão, do alto de uma velha opinião formada sobre tudo, teve que engolir seus receios e aceitar a boda entre Edith e o futuro maluco beleza, que apareceu em sua casa com a papelada que comprovava que, de fato, havia conseguido o tido como inconseguível. Mas, verdade seja dita. Raulzito era também um malandro beleza. Depois do casório abandonou o curso, se juntou novamente a’Os Panteras e vazou com a jovem esposa para o Rio de Janeiro, aceitando um convite de Jair Alves de Souza, paulistano amigo seu de longa data. Ocorre que Jair era, na verdade, Jerry Adriani, cantor e apresentador do programa “Excelsior a Go Go”, da antiga TV Excelsior de São Paulo. Entre 1967 e 1968 Jerry estava de mudança para a TV Tupi, onde comandaria o musical de auditório A Grande Parada, onde apresentaria, justamente, grandes novidades para o grande público brasileiro, ao vivo. Foi a deixa, e Os Panteras aproveitaram. O estrelato era logo ali.

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Foi em 1968 que Raul Seixas lançou, com a banda dos irmãos Gama, seu primeiro álbum, “Raulzito e os Panteras”, pela EMI-Odeon. Mas o disco não decolou. Havia uma pá de contradições entre a necessidade cega de sucesso comercial, por parte da gravadora, e os relativamente ingênuos anseios estéticos dos músicos. Mas o grupo cativou, sim, certa notoriedade, pelas apresentações televisivas. Com Raul na guitarra, Os Panteras acabaram servindo como banda de apoio a Jerry Adriani em diversas ocasiões. Na verdade, era uma ajuda: a experiência ajudou nosso heroi a tornar suas letras de canções menos herméticas, mais comunicativas. E foi bom, também, pela grana. Ainda assim, conforme relatado mais tarde na canção “Ouro de tolo”, Raulzito chegou a passar fome, em seus primeiros momentos no Rio de Janeiro. Acabou voltando para Salvador, na maior deprê. Passava dias trancado no quarto lendo filosofia numa luz fraca, esculhambando com a própria vista. Fazia as mais loucas bandalhas pelas ruas em sua motocicleta, que havia comprado com a mirrada grana das apresentações na TV Tupi.

Ocorre, contudo, que nem todos os males perduram. Jerry Adriani havia convencido o presidente da CBS Discos que Raul daria um bom produtor fonográfico, e o convidou para tentar de novo a vida no Rio, em outra frente. Raulzito não pensou duas vezes e zarpou de novo rumo ao sul com Edith, de mala e cuia. Multi-instrumentista, tinha conhecimento de sobra para atuar na área. E, uma vez lá, nosso padroeiro do rock tropical estabeleceu importantes conexões. Entre 1968 e 1969, grupos como Os Jovens, Leno e Lilian e The Sunshines, além de Mauro Motta, apostaram em seus talentos, como letrista. Jerry acabou mesmo fazendo de Raul o produtor de seus discos. Odair José, Renato e seus Blue Caps, Tony & Frankye, Osvaldo Nunes, Edy Star, Diana e mesmo a poderosa Jovem Guarda passaram a gravar as composições de Raul Seixas. Não diga que a vitória está perdida, se é de batalhas que se vive a vida. De repente, todo mundo tocava Raul. Até que Raul quis entrar no palco também, novamente, depois de sedimentar um currículo de produtor de dar inveja. E aí, nesse ponto da história, entra Sérgio Moraes Sampaio, outro maluco beleza, amigo e parceiro de cabeça afinada com a do prodígio baiano.

Inclusive pela necessidade de aprimoramento artístico, dado o período de aprendizagem em sua passagem pel’Os Panteras, na virada dos anos 1960 para 1970 nosso filho abençoado do rock já era uma metamorfose ambulante e tanto: sua cabeça se abria para novas fronteiras. Especialmente do ponto de vista da juventude, o mundo passava por uma franca revolução nas maneiras de pensar, agir e se posicionar politicamente. Raul jamais seria insensível a isso. Em 1971, na transa constante com diversos cabeças e experiências para lá de doidas na Cidade Maravilhosa, Raul criou um troço muito louco. Era a Sociedade da Grã Ordem Kavernista, em parceria com Sérgio Sampaio. Ambos queriam fazer uma música nova, fora da curva, ou melhor: esperavam fixar uma placa de contramão na MPB. E foi aí que um Raul Seixas mais Raul Seixas nasceu.

Em 21 de julho de 1971, produzido por Raul e Mauro Motta, o álbum “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10” chegou ao público. Era um projeto que reunia Raul, Sampaio, Miriam Batucada e Edy Star, com Paulo César Barros no baixo e Tony Pinheiro na bateria. Experimental que só para os padrões brasileiros, era uma espécie de ópera-rock com contornos de Frank Zappa & The Mothers os Invention, mas com pegada suficiente para fazer a cabeça do público. O álbum foi o protótipo da música típica do raulseixismo, misturando rock psicodélico com MPB, baião, xaxado, seresta e bolero. Essa geleia geral até que foi bem avaliada pelo pouco da imprensa especializada que o alcançou, pelo curto período em que esteve no radar: é que foi retirado do catálogo da CBS apenas dois meses depois do lançamento, pelo clima pesado de censura imposta pela ditadura militar, que mantinha desde 1968 o opressor Ato Institucional número 5 (AI-5). Só deu tempo dos também malucos beleza Luiz Carlos Maciel e Torquato Neto o avaliarem positivamente, em suas colunas nos jornais O Pasquim e Última Hora, respectivamente. Ainda assim, o projeto kavernista não foi um fracasso, como o ocorrido com Os Panteras. Raul sabia que estava no caminho certo.

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Em 1972, um Raulzito ainda sem barba e sustentando certo topete foi convencido por Sérgio Sampaio a participar do VII Festival Internacional da Canção, como uma versão tupiniquim de Elvis Presley, seu ídolo de infância. Cantava “Let me sing, let me sing”, composição própria, que chegou à final do certame contra outra música de sua autoria, “Eu sou eu e Nicuri é o Diabo”, defendida por Lena Rios & Os Lobos. Façanha. O frisson gerado pelo jovem magricela baiano o rendeu um contrato com a Philips: ambas as músicas saíram em compacto pela gravadora, em setembro daquele ano, dando conta da demanda. O público queria mais Raul, Raul, Raul.

Esse tal de Raul Seixas não era apenas mais um cantor, era um ícone popular. Que, no ano seguinte, já era outro, melhor ainda. Em maio de 1972 ele havia conhecido um sujeito que mudaria sua história: Paulo Coelho, amigo que se firmaria como o mais famoso de seus parceiros intelectuais, voltados à composição musical. O “Livro da Lei”, do bruxo inglês Aleister Crowley, foi apresentado por Coelho a Raulzito. Ambos criaram a chamada Sociedade Alternativa, basicamente repetindo os preceitos do mestre esquisitão, que também fez a cabeça de outros figuraças do rock, como Jimmy Page. Assim, nessa nova vibe, em 1973 finalmente foi lançado o álbum que consagrou Raul Seixas nos anais da MPB e da contracultura nacional: “Krig-ha, Bandolo!” É aquele discaço em que o ídolo, seco de tão magro e sem camisa, barbado e com as mãos estendidas para cima, com o símbolo da Sociedade Alternativa cravado em sua palma direta, assume ares bíblicos: de Elvis a Jesus em menos de um ano.

Ali, em “Krig-ha, Bandolo!”, estavam hits que pegaram a moçada de calças curtas, verdadeiras pérolas hoje consideradas das maiores na história do rock nestes trópicos, a maioria em contornos autobiográficos: “Ouro de tolo”, “Mosca na sopa”, “Al Capone” e, é claro, “Metamorfose ambulante”, a última escrita sem os pitacos de Paulo Coelho. “Ouro de Tolo”, que virou single, nasceu de um rolê intergaláctico, quando, curtindo um eclipse solar muito doido na Barra da Tijuca, Raulzito foi abduzido por extraterrestres, exatamente às 16h de 7 de janeiro de 1973. A experiência místico-existencial deixou o primeiro e único cosmonauta do rock nacional a par de tudo o que estava de errado na humanidade. De qualquer maneira, das supracitadas, é a última canção, sozinha, que merece teses e dissertações inteiras. Foi um divisor de águas, popularizada mesmo fora dos limites do gênero em que é enquadrada. Acabou sedimentada como expressão popular, na boca de qualquer brasileiro: independentemente de raça, gênero, cor, idade ou orientações políticas e sexuais, quem, afinal, não é uma metamorfose ambulante? Ter velhas opiniões formadas sobre tudo, sem nunca mudá-las, não é uma insensatez? Quem não tem essa visão, bate a cara contra o muro. Nesse processo de autoconhecimento, deixar os cabelos crescer pode até ser bacana, mas a verdade é que, atualmente, se dermos uma incerta em afamados escritórios paulistanos na Avenida Paulista ou na Faria Lima, é possível encontrar uma boa quantia de engravatados que sabem de cor ao menos uma estrofe ou outra dessa música. Entre a rapaziada nas vaquejadas cearenses, vale o mesmo. E também nas feiras de rua e nos programas de pós graduação, nas biroscas e nos cartórios, nos canteiros de obras e nos retiros de yoga por todo o Brasil. Filosofia pura expandindo a consciência do povão, baby.

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Com a repercussão nacional, Raul Seixas deu passos além, em 1974. A Sociedade Alternativa, com Paulo Coelho, baseada na chamada Lei de Thelema, elaborada por Cowley, virou coisa física, organizada: passou a ter uma sede alugada, com membros, relatórios mensais, papel timbrado e o escambau. O grupo pretendia construir algo como uma Cidade das Estrelas num terreno no interior de Minas Gerais, numas de erguer, de fato, um verdadeiro berço para a civilização thelêmica. Sociedade Alternativa virou música, também, como não poderia deixar de ser. E que música. Era a faixa de abertura no lado B do maior disco da carreira de Raul, “Gita”, de 1974. Surfando na onda de popularização do músico um ano antes, o álbum vendeu impressionantes 143 mil cópias, um fenômeno no mercado fonográfico brasileiro. Se “Krig-ha, Bandolo!” já tinha arrasado vendendo 67 mil, é justo apontar que “Gita” rendeu a Raulzito seu primeiro disco de ouro. Em compacto, a música-título do álbum vendeu ainda cerca de 250 mil cópias. “Faz o que tu queres, pois é tudo da Lei”, verso dito e redito na canção “Sociedade Alternativa”, nada tinha a ver com a Justiça formal, estatal, mas com a Lei de Thelema. Ora, entendedores entenderiam. Raul tinha muito peito em pregar uma doideira dessas em plena ditadura, e ainda por cima com tantos holofotes. Se em alguma hora ia dar m****, pois foi bem aí que deu.

Algumas canções compostas por Raul Seixas e Paulo Coelho já vinham sendo retalhadas pela censura oficial desde 1973. Num show em 1974, ambos viram seu manifesto em quadrinhos “A fundação de Krig-ha”, ser apreendida pelo Departamento de Ordem Política e Social, o temido DOPS, como material subversivo. Em certo acesso de paranoia anticomunista, as autoridades suspeitavam que a dupla de malucos beleza planejava atos de violência, em movimento armado contra o governo militar. Raul e Paulo foram tocar piano no xilindró, onde, dizem, sofreram tortura. Mas a lombra dos anarco-doidões era outra. Liberados, partiram para os Estados Unidos, até que a poeira baixasse. A relação entre ambos esfriou. Suspeitas de que Raulzito teria delatado Paulo Coelho ficaram no ar, alimentadas até recentemente pelo segundo.

Muito já se falou sobre a passagem de Raulzito pelos EUA, mas é difícil saber até que ponto se lida com a verdade ou com a fantasia. Dizem que teve até um encontro com John Lennon. Mas, fato é que, por lá, tentou emplacar sucesso. Não colou. Mas tudo bem: nesse ponto da história Raul já estava de volta ao Brasil: o sucesso comercial de “Gita” criou pressões da indústria fonográfica, que batia o pé pela presença de nosso heroi do rock. Quem estava em outra era Edith, que resolveu voltar para as bandas do Tio Sam, junto com a filha do casal, Simone. Assim, em 1975, já com a americana Gloria Vaquer, Raul Seixas participou do festival Hollywood Rock, onde promovia o lançamento de seu novo LP, “Novo Aeon”, que vendeu só 60 mil cópias, apesar de ter vindo com o clássico “Tente outra vez”. Raul tentou outra vez em 1976, com o álbum “Há dez mil anos atrás”, e conseguiu, de novo, arrebentar a boca do balão: a vendagem ultrapassou a marca de 100 mil discos. “Eu nasci há dez mil anos atrás”, quase que faixa título do sucesso de 1976, é uma das mais celebradas pelos fãs, até hoje. Contou até com clipe exibido no Fantástico, programa dominical de enorme audiência na Rede Globo de Televisão. Naquele ano ainda nascia Scarlet, a segunda filha de Raulzito, batizada com o nome dado por Aleister Crowley às mulheres que o cercavam. Mas nem tudo era chuchu beleza, nesses dias. O lado B de Raul Seixas começava a dar sinais de alerta bem aí, nessa época: eram os seus problemas com drogas e com a bebedeira, que mais tarde acabariam precocemente com sua vida.

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Os anos 1970 e o auge de Raulzito se aproximavam do fim. Assim como sua amizade com Paulo Coelho, que azedou, no maior baixo astral, vibração de urucubaca. Após o disco “Raul Rock Seixas”, de 1977, o contrato do astro com a Philips, capitaneada por Roberto Menescal, também acabou. Um novo com a WEA, braço fonográfico da Warner, foi firmado, com produção do amigo Marco Mazzola: ali vieram a lume os álbuns “O dia em que a Terra parou”, em 1977; “Mata virgem”, em 1978, e “Por quem os sinos dobram”, em 1979. Não foram sucessos estrondosos, mas no primeiro bolachão sob os cuidados da Warner saiu, justamente, aquela que seria, para sempre, a canção que definiria Raul: com certeza, “Maluco beleza”. A faixa que dá título ao disco, aliás, atualmente ressuscitada como profética, em tempos de Covid-19, já seria, por si só, memorável.

Em “Maluco beleza”, Raul bem dizia: “E esse caminho / Que eu mesmo escolhi / É tão fácil seguir / Por não ter onde ir”. Quem ouvisse, talvez nem suspeitasse das crises pessoais na vida do rock star, naqueles dias. Primeiro, foi diagnosticado com pancreatite aguda, a doença que o mataria anos depois; teve mesmo que remover 1/3 de seu pâncreas, comprometido sobretudo pelo abuso de álcool. Fora a questão do alcoolismo, em sim, havia ainda os problemas causados pelo uso de outras drogas, as ilegais. Tudo isso regava a bad vibe que ficou com a ruptura da frutífera parceria com Paulo Coelho, mantida aos trancos e barrancos até 1978, coisa que a WEA queria reavivar, e Raul achava tudo isso um saco. Por fim, cereja do bolo, Scarlet apareceu com uma escoliose grave. Atinando para o fato de que Raulzito não tinha a menor estrutura para lidar com esse problema, Gloria vazou para os States com a filha do casal, para ficar perto de sua família e buscar o devido tratamento, com hastes de metal, para a coluna da pequena.

Ao passo em que as gravações de “O dia em que a Terra parou” foram conturbadas, por tudo o que cercava o astro baiano, foi ali em que se firmou a proveitosa parceria de Raul Seixas com Cláudio Roberto, coautor de “Maluco Beleza”, um professor de educação física instalado no interior do Rio de Janeiro, que nos finais de semana vendia mocassins na Feira Hippie de Ipanema. Não foi o suficiente: na imprensa, a vida pessoal do músico passava a receber mais destaque do que sua produção artística. A recepção da crítica foi fria e as vendas encalhavam. Ainda por cima, na capa do álbum Raul aparecia de cabelos curtos e de terno, numa espécie de ruptura estética que só podia ser encarada como muito louca, tiro no pé total. Onde estava o maluco da sociedade alternativa, afinal?

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Raul chegou aos anos 1980 entre altos e baixos, com predominância dos últimos. No primeiro ano da década lançou o disco “Abre-te Sésamo!”, pela CBS, décimo de sua carreira, produzido pelo bom e velho Mauro Motta, atingiu a fria vendagem de 42 mil exemplares. Mas ali estão as músicas “Aluga-se”, de tremenda crítica à histórica relação de entreguismo entre o Brasil e outros países economicamente mais desenvolvidos, principalmente os EUA, e o “Rock das ‘aranha’”, de conotação sexual. O próprio Raulzito falava que a última nada mais era do que um plágio de “Killer Diller”, de Jimmy Breedlove. Mas não deu processo, nem nada: eram outros tempos. Outra coisa que não deu em nada, afinal, foi o contrato do rodado rock’n’roller com a CBS. O próprio Raulzito o rescindiu em 1981, quando os empresários da gravadora o pediram para produzir um álbum em homenagem ao casamento entre o príncipe Charles e Lady Diana, do Reino Unido. Coisa mais piegas e sem sentido: Raul não era maluco o suficiente para encarar uma dessas. Se se casavam, ora, o problema era deles e ninguém tinha nada com isso.

O ruim de ter dado o bolo na CBS foi que nosso debilitado gênio, nessa época ajuntado com Kika Seixas, acabou caindo num temporário ostracismo. E com a saúde toda zoada, volta e meia sendo internado. Volta e meia aparecia no palco irreconhecível – chegou mesmo a ser tido como embuste de si mesmo. Isso quando conseguia aparecer nos shows: Raulzito começava a ter uma fama à la Tim Maia. Não conseguia vencer os vícios e entrava em espirais de depressão, que o impediam de compor e empreender turnês, o que o deprimia mais, para depois achar conforto no álcool e etc., over and over again. Ainda assim, em fevereiro de 1982, Raul conseguiu o inconseguível: levar 180 mil cabeças para sua apresentação no Festival de Verão de Santos, na praia do Gonzaga. Em outra frente, o eclipsado astro tentou vender, nessa época, sem sucesso, para as gravadoras, um projeto de ópera-rock intitulado “Nuit”, a deusa da noite explorada pela filosofia thelêmica, bolado junto com a parceira Kika.

Em 1983, quem diria, Raul Seixas voltou, e de forma surpreendente. Salvo pela gurizada. E por Augusto César Vannucci, então diretor da Rede Globo. Em 26 de abril daquele ano lançava, pela Eldorado, seu álbum “Raul Seixas”, que acabou tendo venda de mais de 100 mil cópias e engavetando o segundo disco de ouro na carreira do músico. Na capa do LP Raul parece envelhecido, caretão. Mas ali dentro estava o “Carimbador maluco”. Sim, aquele que dizia que “Plunct Plact Zum não vai a lugar nenhum”, sem a devida autorização. É que, independentemente do lançamento do LP, Vannucci havia chamado Raul para interpretar um personagem no especial infantil “Plunct, Plact, Zuuum”, com a Turma do Balão Mágico. Vivian, filha de Raulzito com Kika, de apenas dois anos, o inspirou a tirar da cartola a música tema de sua participação no que foi um estrondo televisivo. E que sucesso: a música está no lado esquerdo do peito de gerações, cativando gente mais nova do que os primeiros fãs de Raul, e mesmo gente que nem curte rock, no fim das contas. O disco com a Eldorado seria lançado de qualquer maneira, mas os executivos da gravadora tiveram tino: ao ficar sabendo da parte de Raul no especial infantil, que foi ao ar a 3 de junho de 1983, deram um jeito de enfiar a música no álbum. O bolachão, aliás, tinha também “Coração Noturno”, música tema de novela global daquele momento. A ajuda de Augusto César Vannucci, através da emissora, naquele momento, foi considerável: no fim do ano teve participação de Raul Seixas no especial de Natal da Globo, no Maracanã, ao lado da Turma do Balão Mágico. Saíram todos carimbados de lá.

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“Metrô linha 743” foi lançado por Raul Seixas, pela Som Livre, em 1984, mas o sucesso do ano anterior, com disco de ouro e tudo, parecia algo temporário. Até que o novo álbum foi bem recebido pela crítica, mas as vendagens foram um fracasso. A gravadora estourou seu orçamento na produção, deixando o álbum sem a devida divulgação. “Plunct, Plact, Zuuum 2” veio com nova canção de Raulzito, mas também não repetiu o sucesso. Com a saúde paulatinamente piorando, nosso ídolo se separou de Kika no ano seguinte, parando completamente de fazer shows e enburacando total, quase caindo no esquecimento. Se internou na Clínica Tobias, em São Paulo, para desintoxicação. Mas voltou às lides em 1987, naquele que seria, de fato, para muitos, o seu canto de cisne: apenas dois anos antes de falecer, Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, décimo terceiro disco de Raul Seixas, veio a lume, por um selo independente, o São Paulo, utilizando estúdios de gravação da Copacabana, localizados em São Bernardo do Campo. Produzido pelo compositor e pelo guitarrista Rick Ferreira, foi o terceiro álbum mais vendido da carreira de Raulzito, tendo rendido ao mestre do rock seu terceiro disco de ouro e um novo contrato firmado entre a Philips Records e a Copacabana. O hit “Cowboy fora da lei”, além de ter virado um clássico raulseixista do rock nacional, virou tema de novela da Globo e ganhou, como nos velhos tempos, videoclipe para o Fantástico.

Dando seguimento à trajetória de instabilidade entre seus lançamentos no mercado fonográfico, o álbum “Pedra do Gênesis”, de 1988, pela Philips, teve desempenho fraco junto ao público. Raul, arrasado pela pancreatite, pela diabetes e pelo alcoolismo, não podia mais sair em turnê para promovê-lo. A isso se seguiu a separação entre Raul e Lena Coutinho, até então sua companheira. E aí aconteceu uma guinada improvável, que divide opiniões. Pouco lembrando o Raul Seixas do passado, Raulzito voltou aos palcos, por volta de setembro de 1988. Só que não voltou sozinho. Voltou em parceria com o amigo Marcelo Nova, também de Salvador, e sua banda, a Camisa de Vênus. Era para ser apenas uma palhinha, uma homenagem ao ídolo Raul, como a primeira que fizeram juntos, por acaso, em 1984, ocasião em que estreitaram relações. Mas, em 1988, a aproximação rendeu frutos e o maluco beleza acabou meio que seguindo junto, em turnê. A volta de Raul do mundo dos mortos passou a ser anunciada aos quatro ventos, e, ao menos em tese, o sucesso de uma geração do rock brasileiro alavancaria o de outra. Tanto que, em maio de 1989, Nova e Raulzito se reuniram em estúdio para gravar “Panela do diabo”, disco que seria o último do maluco beleza, pela Warner Music.

A verdade é que Raul, em 1989, estava com a saúde em níveis críticos. Tinha ficado três anos sem pisar num palco e, de repente, seguiu em 50 apresentações com a Camisa de Vênus, mostrando-se debilitado, lesadão, em suas aparições – que em geral duravam apenas metade dos shows. Alguns argumentam que Marcelo Nova o resgatou de um fim para lá de baixo astral, na penumbra, proporcionando ao ídolo momentos derradeiros porém dignos, no palco, na ativa, fazendo o que amava. Nesse raciocínio, se estivesse em casa, largado e esquecido, Raul Seixas empacotaria em breve – Marcelo Nova o teria dado uma sobrevida. Nova, aliás, modéstias à parte, tinha lá seu prestígio nos anos 1980, caminhando com os próprios passos, sem ajuda de ninguém. Seria, apenas, um bem intencionado fã de Raulzito, que queria ver o ídolo de pé. Outros, entretanto, dizem que não era bem assim: que o líder da Camisa de Vênus, insensível, forçou a barra ao impor a Raul um ritmo de apresentações desumano, acelerando a ida do pai do rock dessa para uma melhor, num ambiente em que o combalido gênio teria dificuldades em se manter longe da birita. Fora o esforço pelas gravações de “Panela do Diabo”, em maio daquele ano. E pior: depois da partida de Raul, Nova estaria utilizando lucrando com a comoção pela morte do maluco beleza, dada a popularidade alcançada por vias emotivas pelo disco lançado por ambos. De fato, “Panela do diabo” rendeu novo disco de ouro, póstumo, a Raul, compartilhado com Marcelo Nova. Foram 150 mil cópias vendias e muitos louros colhidos, inclusive pelo single “Carpinteiro do universo”. Na guerra de versões, é possível que cada parte tenha lá sua razão. Fato é que, a 20 de agosto de 1989, um dia depois do lançamento de “Panela do Diabo”, Raul Santos Seixas chegou de noite em seu apartamento, em São Paulo, deitou na cama e nunca mais levantou. A não ser nas paradas de sucesso.

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Raul Seixas tinha razão. Ir ao zoológico dar pipoca para macaco, praia, carro, jornal, tobogã, é tudo realmente um saco. Não à toa, entrou para a história da cultura popular brasileira. Grupos de sósias se reúnem anualmente nas ruas, para lembrar o ídolo, astro maior na constelação do rock tupiniquim. Mas Raul sempre foi muito além da música. Aqueles que disso não se tocam, que ao menos toquem Raul. Doido que não curte esse maluco só pode estar louco.

Explore os documentos:

A Sociedade da Grã Ordem Kavernista, “a nova música fora da onda”, ganhava curiosa cobertura em O Cruzeiro, em 1971, com destaque a Raul Seixas e Sérgio Sampaio:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/182186

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/182187


No Festival da Canção de 1972, em meio à moçada cabeluda, Raul voltava às bases dando uma de Elvis Presley, na cobertura de Manchete


Um ano depois, um metamorfoseado Raulzito, “antítese de Roberto Carlos”, ganhava perfil em Manchete:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/135600

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/135601


No auge em 1973, o maluco beleza ganhava espaço nos célebres entrevistões de O Pasquim:

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/7479

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/7480

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/7481


Ainda no mesmo ano, uma crítica de “Ouro de tolo”, que teve 60 mil compactos vendidos, no jornal Opinião


Em 1974, “Gita”, álbum lançado pela Philips, vendia 300 mil cópias sem Raul “fazer força”, dizia Manchete:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/147097

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/147098


“Gita”, um “Manifesto da Sociedade Alternativa”, e “primeiro lugar nas paradas de sucesso”, era assim anunciado na imprensa, em 1974. No ano seguinte, novo lançamento de Raul, n’O Pasquim:

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/9447

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/10464


Ana Maria Bahiana fazia a crítica a “Gita”, no jornal Opinião, em 1974


Em baixa e ausente da imprensa musical há tempos, Raul Seuxas lançava seu 13º álbum, “Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!”, e ganha uma tímida crítica em Manchete, em 1987.


Em 1989, “O adeus do anjo travesso da MPB”, segundo a Manchete. Após mais de 20 anos de carreira e quatro discos de ouro, Raulzito partia


Raulseixismo: malucos beleza fãs de Raul eram tema de reportagem em Manchete, em 1991