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Capistrano de Abreu

por Rebeca Gontijo
“Nosso grande e estranho historiador”. Foi assim que, em 1929, Tristão de Athayde se referiu a Capistrano de Abreu, após lembrar alguns aspectos de sua vida e obra. Trata-se de um autor que foi alvo de muitos comentários que, além de enaltecer suas capacidades intelectuais – entre as quais, a de falar várias línguas, do alemão ao caxinauá – e valorizar sua obra passada, presente e futura, chamaram atenção para sua personalidade excêntrica. Ficou conhecido por sua língua mordaz e hábitos estranhos, considerados pouco “civilizados” em sua época, tais como, comer pimentas, dormir nu na rede, banhar-se ao ar livre, receber visitas de chinelos ou “em mangas de camisa”. Várias anedotas circularam ao longo de sua vida e após sua morte, difundindo a imagem de um sábio distraído e com aparência desleixada, como pode ser visto nos versos de Américo Facó, publicados em 1911:



"Olhos semi-cerrados de quem poupa
A luz dos próprios olhos... Indolente!
Cabelos, barba de esfiapada estopa,
Para trás, para os lados, para a frente.
Uns ares filosóficos de gente
A quem a vida vai de vento em popa:
Liga mais ao passado que ao presente
E liga à vida como liga à roupa.
Calçado sem tacão, chapéu sem abas,
Pobre, com aparência de usurário,
E, ao mesmo tempo, de morubixaba:
Tal esse é o Capistrano, o bem amado,
Velho erudito, vivo dicionário
Da História Pátria, mal encadernado...
"


Capistrano nasceu no Ceará, em 23 de outubro de 1853, e viveu no Rio de Janeiro de 1875 até 1927, quando morreu. Como muitos outros letrados de seu tempo, deixou a província natal e foi para o Rio de Janeiro. Historiador autodidata, formado pela experiência de pesquisa em arquivos, dialogou de igual pra igual com estudiosos brasileiros e estrangeiros.

Nas décadas de 1870 e 1880, foi redator de jornais como a Gazeta de Notícias. Participou de polêmicas e escreveu sobre lançamentos literários. Em 1879, começou a trabalhar na Biblioteca Pública da Corte, guardiã de um valioso acervo documental, que reunia pesquisadores de grande erudição, como Alfredo do Vale Cabral, conhecedor de antiguidades, paleógrafo, bibliógrafo etc. Em 1881 participou de um grande empreendimento organizado por Ramiz Galvão, diretor da instituição: ajudou a elaborar o catálogo da Exposição de História e Geografia do Brasil, inaugurada no dia 2 de dezembro. Tal catálogo foi considerado pelo historiador José Honório Rodrigues como “o maior instrumento bibliográfico brasileiro”.

Em 1883 prestou concurso para o Colégio Pedro II, visando à disciplina de maior prestígio: Coografia e História do Brasil. Defendeu a tese O descobrimento do Brasil diante do imperador e foi aprovado. Lecionou até 1899, quando sua matéria foi extinta.

Em 1887 ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pretendendo escrever uma história diferente daquela que ali era produzida. Chegou a idealizar o Clube Taques, em homenagem ao pesquisador Pedro Taques (1724-1777): uma sociedade de estudiosos da história, empenhados na publicação de documentos. Com o tempo, tornou-se um respeitado anotador, tradutor e prefaciador. Consolidou seu nome como estudioso da história colonial, das línguas indígenas e da geografia brasileira, sendo considerado por muitos, já naquele tempo, como o maior historiador do Brasil.

No período que seguiu a Abolição (1888) e a Proclamação da República (1889) era urgente conhecer as mazelas que assolavam o país e apontar soluções. Tal tarefa era vista como imperativa diante de um quadro que, para alguns, era caracterizado pela inexistência ou inviabilidade da própria nação. Os intelectuais das primeiras décadas do século XX enfrentaram tais desafios buscando compreender o passado, explicar o presente e elaborar projetos para o futuro.

No fim do século XIX, observa-se um crescente interesse a respeito do povoamento do interior, com destaque para o surgimento dos caminhos e das cidades, que, ao lado da análise sobre a constituição do “povo brasileiro”, deveria contribuir para a construção de uma nova narrativa sobre a nação. Essa deveria transmitir o “sentimento da terra e da gente” de modo distinto das histórias pontuadas por nomes e datas, apresentados nos relatórios, anais e memórias, bastante utilizados ao longo do Oitocentos. Deveria ir além do modelo proposto por Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) nos cinco volumes da sua História Geral do Brasil (1854/1857), marcada pelo elogio à colonização portuguesa. Essa obra era referência para a pesquisa e o ensino da história por apresentar o maior volume de documentos até então reunidos e por ser a primeira história geral da nação escrita por um brasileiro.

Capistrano surgiu nesse cenário como uma espécie de promessa, devido a sua notória erudição, ao significativo número de admiradores que reunia em torno de si e a um divulgado plano de escrever uma nova história do Brasil. Tal plano foi idealizado ainda na juventude, adquirindo novos itens ao longo da vida, até transformar-se em uma história escrita “a grandes traços e largas malhas”. Começou a ser desenvolvido de modo mais efetivo quando ele tomou para si a tarefa de revisar a História de Varnhagen, visando sua reedição. Tal empreitada tomou-lhe alguns anos, ao longo dos quais pôs-se a redigir aquele que seria considerado seu livro principal: Capítulos de história colonial, publicado em 1907. Nessa obra, combinou recortes cronológicos e temáticos, deslocando o foco da história do Brasil até então escrita: de uma história da colonização portuguesa, norteada pelas ações do Estado, por fatos administrativos e marcos políticos, para uma história da sociedade colonial, repleta de contrastes; de uma história construída a partir da colonização litorânea do território, para uma história interessada na ocupação do sertão.
Procurando “dizer algumas coisas novas”, introduziu assuntos até então pouco ou nunca estudados, tais como as festas, a família, as bandeiras, as minas, as estradas e a criação do gado. Embora reconhecesse os méritos de Varnhagen como investigador, almejava “quebrar os quadros de ferros” por ele construídos, criticando sua falta de interesse pela vida social e pelo “povo durante três séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado”, como escreveu em carta ao amigo português Lúcio de Azevedo, de 16 de julho de 1920. A obra de Capistrano foi marcada pela interseção entre história e geografia, prevalecendo a convicção de que as sociedades são condicionadas pela relação entre cultura e meio. A importância atribuída ao documento – a exemplo da escola histórica alemã de Leopold Von Ranke (1795-1886) – também é digna de nota, destacando-se o empenho em proceder ao que chamou de “geologia da lama”: uma leitura minuciosa, semelhante à análise geológica, que decompõe as diversas partes de um todo, visando conhecer sua natureza, suas funções e relações. No caso, o todo a ser analisado correspondia à história: uma substância amorfa, fluida e orgânica, tal como a lama.

Para Tristão de Athayde, Capistrano foi o pioneiro de uma “história radicular”, dedicada ao estudo das raízes do Brasil. Interessou-se pela história colonial, onde estaria o “nó da nossa história”: o povoamento no interior, cuja compreensão considerava necessária para o entendimento das “origens” da nação. Diante disso, sua obra dispersa em livros, artigos, notas, prefácios e cartas, pode ser lida como parte de um programa de investigação sobre a formação da nacionalidade, que envolvia o estudo da geografia, das línguas e costumes “indígenas” e “estrangeiros” (portugueses e negros). Suas pesquisas podem ser ordenadas a partir de um roteiro com três partes principais: descobrimento, desbravamento e ocupação do território.

O estudo dos caminhos antigos (terrestres e fluviais) e do povoamento do Brasil era considerado fundamental para a compreensão da formação nacional. Em função disso, propôs a construção de duas histórias: uma “história externa”, interessada em mostrar a colônia portuguesa na América como resultado da expansão européia no início da Época Moderna; e uma “história íntima”, dedicada a compreender como a população se formou, ocupando o interior, criando indústrias, adquirindo hábitos, adaptando-se ao meio, constituindo a nação. O estudo das línguas e costumes “indígenas” complementou o programa. Ao longo da vida, esse historiador-etnólogo chegou a viver com vários índios, que lhe davam informações sobre o idioma nativo. Um dos resultados desse trabalho foi o livro Rã-txa hu-ni-ku-i (1914), que lhe valeu o prêmio D. Pedro II, concedido pelo IHGB em 1917, mas recusado pelo autor.

Sua obra pode ser inserida ao lado de outras produzidas em meio a um movimento de redescoberta do Brasil iniciado ainda no século XIX e que se prolongou até, pelo menos, os anos 1950, despertando o interesse pelo interior do país, com suas vastas regiões e populações desconhecidas. Esse movimento, fundado na lógica da alteridade entre sertão e litoral, foi explorado pela literatura romântica; pelos relatos de viajantes nacionais e estrangeiros; pela literatura de inspiração realista e naturalista; pelos escritos regionalistas; pelos relatórios produzidos por médicos sanitaristas, que percorreram o Brasil nas primeiras décadas do século XX; pelos estudos geográficos e etnográficos e pela escrita da história.

De certo modo, ele permanece como “nosso grande e estranho historiador”. Grande não tanto por sua obra – ultrapassada em vários aspectos –, mas devido ao lugar que ocupa na historiografia brasileira como uma espécie de monumento ao estudo da história. Seus escritos contribuem, sobretudo, para a compreensão da própria época em que foram elaborados, remetendo aos temas considerados importantes e às possibilidades interpretativas então abertas. Também permanece “estranho”, por pertencer a um outro tempo e por ser menos lido hoje pelos estudantes e estudiosos da história. Ao fim e ao cabo talvez seja possível concordar com Athayde, para quem Capistrano “é desses (...) cuja obra escrita não completa a figura, não explica tudo o que foram, nem a metade do que foram”.

*Rebeca Gontijo é Professora adjunta(UFRRJ) e Doutora em História(UFF)

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