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Um retórico na Biblioteca: o cometa Raul Pompéia

por Iuri A. Lapa e Silva
A proclamação da República de 1889 trouxe consigo mudanças mais ou menos previsíveis diante de uma ruptura política de tal porte. A instabilidade inicial do novo regime era mesmo de se esperar. Até a pacata “repartição” pública que era a Biblioteca Nacional seria afetada. De 1889 até 1895, nada menos que cinco pessoas diferentes ocuparam a posição mais alta da instituição. Algo incomum para seus padrões. Dentre os cinco, Raul Pompéia (1863-1895) é aquele que mais se destaca. Não tanto pelo que fez durante o curto período de um ano em que ficou no cargo. Decerto que, à época, ele já era um consagrado escritor. Mais do isso, no entanto, foram os dramáticos meses finais de sua existência, que se iniciaram com o fim de seu ciclo como Diretor.

"Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta."


A frase de abertura do emblemático romance de Raul Pompéia parece ter sido a tônica de sua atitude perante a vida: “Coragem para a luta”. Com sua verve retórica e sentimental, o jovem escritor de apenas 24 anos foi projetado para o cânone literário brasileiro em 1888 com O Ateneu. Antes disso, porém, Pompéia já fazia parte de um mundo de letras e debates políticos em que a paixão e o arrebatamento andavam ao lado das bandeiras abolicionistas e republicanas.

Nos anos iniciais da República, sua militância e sua vontade de servir à causa política lhe valeram a indicação do então presidente Floriano Peixoto (1839-1895) ao cargo de Diretor da Biblioteca Nacional. A morte prematura do “Marechal de Ferro” fez acender dentre seus seguidores certo culto pela figura do polêmico líder daqueles anos iniciais da República. Raul Pompéia foi o que mais verbalizou esse sentimento. Talvez diante das pessoas erradas...

No dia 5 de Julho de 1895, o ministro de Justiça e Negócios Interiores fez correr uma Circular às repartições públicas sob sua alçada. A Biblioteca Nacional era, à época, uma delas. Tratava-se de um assunto incomum que afetaria a rotina do serviço: “Recomendo providencieis afim de que esteja fechado o edifício da Repartição a vosso cargo no dia 6 d’este mez em que se realizarão o funeraes do Marechal Floriano Peixoto.” Durante os ritos fúnebres, ao fechar-se o “sarcophago” do falecido presidente, Raul Pompéia toma a palavra e profere um discurso inflamado. Sua fala foi interpretada como um ataque às autoridades republicanas que haviam substituído Peixoto na presidência. E estas logo substituiriam Pompéia em seu cargo de Diretor.
Raul Pompéia negou tais alegações. Em pequeno artigo intitulado “Clamor Maligno” publicado na “Secção Livre” d’O Paiz no dia 3 de Outubro de 1895, ele tenta reconstruir seu discurso daquele fatídico dia. Pompéia ironiza seus detratores afirmando que a “inverdade audaciosa é actualmente o recurso habitual dos bons amigos da Republica”, e alega que era “absolutamente falso que [...] houvesse proferido a mínima palavra de offensa pessoal a qualquer autoridade da Republica”.

Um recorte do pequeno artigo em questão se encontra arquivado na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Não há muitas evidências da atividade e da rotina de Pompéia na direção da casa. Sabe-se que foi durante sua gestão que o Ministério de Relações Exteriores estabeleceu uma parceria com a Biblioteca para o levantamento e a cópia de material referente às questões territoriais brasileiras e suas fronteiras com países vizinhos. Como patriota ferrenho, tal processo certamente lhe trouxe satisfação. Seu sentimentalismo patriótico-republicano transbordava até mesmo diante de certas datas hoje pouco marcantes. No dia 13 de Março de 1895, por exemplo, Pompéia faz correr aos chefes de Seção da Biblioteca uma congratulação pelo aniversário de um ano do restabelecimento da “ordem social e da Lei”. Nesse dia, pôs-se fim à chamada Segunda Revolta da Armada: “Pela gloriosa data de hoje que recorda o desaggravo da ordem social e da Lei ultrapassadas durante a revolta de 6 de Setembro, congratula-se esta Directoria com o digno corpo administrativo da Bibliotheca Nacional”.

relacionamento entre os trabalhadores da Biblioteca e Pompéia parece ter sido harmonioso. Junto com a referida matéria recortada d’O Paiz – “Clamor Maligno” –, encontra-se uma carta dirigida ao “Snr. Director e mais S.S. Membros do Corpo Administrativo da Bibliotheca Nacional” datada de 4 de Outubro de 1895, apenas um dia após a sua publicação. Ele conhecia o procedimento arquivístico da Biblioteca: todos os documentos administrativos eram guardados. Pompéia recorta sua matéria e a envia com sua carta a fim de registrar o fato. Assim ele a oferece:
Em testemunho de quanto prezo o vosso altivo conceito, venho com este apresentar e offerecer a registro nos archivos dessa repartição a inclusa folha d’O Paiz, em que inseri, quase totalmente reconstruídas, as palavras que pronunciei ao encerrar- se em sarcophago o corpo do mais dos Brasileiros, o legendário Marechal Floriano Peixoto.

Desobrigando-me desse gratissimo dever de deferência, oportunamente vos afirmo os protestos pela manifestação de sympathia, comovente e [ilegível] de que me haveis feito alvo, em minhas despedidas dessa nobre casa de civilização, e que tanto mais me impressionou, quanto de sobra correspondeu á aspiração única que me guiou em cargos de direcção administrativa – ser aceito como attento guarda do interesse publico e o mais escrupuloso e sereno respeitador (na incerta actualidade que atravessamos) das livres convicções e da independência moral de cada um.

Ser-me-ha sempre a recordação dos meus bons amigos e companheiros da Bibliotheca Nacional, um raro motivo de orgulho.

Saúde e fraternidade,
Raul d’Avila Pompéia


Os poucos meses de sua vida que se passaram no período em que escreveu a carta acima foram de intensa agonia, segundo contam os estudiosos do autor. Um injurioso artigo publicado por seu velho amigo Luis Murat parece tê-lo desestabilizado. Intitulado “Um louco no cemitério” – ataque direto ao seu discurso no funeral de Floriano –, as pessoas mais próximas a Pompéia teriam tentado evitar a todo o custo que ele lhe tomasse conhecimento. Em vão... Seus pedidos de réplica não teriam sido aceitos pelo jornal que o publicou, e outras questões de natureza semelhante o perturbavam. Tudo e todos pareciam estar contra. Na noite de Natal desse mesmo ano de 1895, deprimido, ele pôs fim à própria vida.

Em sua coluna semanal, Machado de Assis encerra sua crônica sobre o falecido autor da seguinte forma: “Raul Pompéia suicidou-se em casa, com um tiro no coração. Mas não morreu instantaneamente. Ele ainda teve tempo de perceber que a sua irmã, ao vê-lo, tivera uma crise nervosa; por isso, murmurou à mãe que cuidasse dela”.

*Iuri A. Lapa e Silva é Técnico em Pesquisa da Biblioteca Nacional

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