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Extrato de um Dicionário Jesuítico de 1756 em Língua Geral

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GRUPOS INDÍGENAS E LUGARES AMAZÔNICOS NO DICIONÁRIO DE 1756: UM BREVE MAPEAMENTO HISTÓRICO*

Gabriel de Cássio Pinheiro Prudente (PPHIST/UFPA)


 O dicionário anônimo escrito em Língua Geral, encontrado pelo linguista luxemburguês Jean-Claude Muller, contém diversas singularidades, a começar por sua estrutura: uma primeira parte escrita em Português-Língua Geral e outra em Língua Geral-Português, algo pouco usual entre os dicionários conhecidos da época Colonial no Brasil.

A análise de alguns dados encontrados no documento permitiram estabelecer que o autor foi um missionário de língua alemã que esteve na Amazônia em meados do século XVIII (ver Arenz). Embora não seja possível, até o momento, apontar com precisão um nome, indícios no manuscrito possibilitam apreender certos aspectos da identidade e trajetória de seu(s) autor(es).

Muito provavelmente o dicionário de 1756 é fruto da cópia de outro dicionário que teria servido de base ao autor, certamente pouco proficiente na língua portuguesa. Porém, o missionário não se limitou a copiar, ele também acrescentou aos verbetes diversas observações pessoais, em sua maioria de cunho linguístico. Registrou palavras e expressões ouvidas nos lugares por onde passou, na convivência com indígenas e outros missionários mais antigos.

Durante o processo de transcrição do documento, foram identificados alguns verbetes nos quais o missionário-autor faz alusão a grupos indígenas e lugares amazônicos. A partir das referências étnicas e geográficas do manuscrito, pode-se rastrear, ao menos parcialmente, o possível percurso do autor do dicionário. Aqui é feito um breve levantamento documental, visando contextualizar as referências inseridas pelo missionário e, assim, refletir sobre sua trajetória na Amazônia.

Grupos indígenas identificados no dicionário

No dicionário de 1756 são mencionados três grupos indígenas: Curibaré, Goyapi e os Xapi. As referências a eles parecem ter sido decorrentes de observações pessoais, incluídas posteriormente pelo autor no dicionário, o que pode ser percebido pelas diferenças de cor da tinta e do tamanho das letras em relação ao restante dos verbetes do original. Para entender a que grupos indígenas o autor se refere, procuramos fontes, sobretudo missionárias, que pudessem fornecer informações sobre essas populações.

O primeiro grupo identificado foram os Coribaré. Ao todo foram encontrados quatro verbetes em que estes indígenas são mencionados no dicionário de 1756, como se pode observar neste exemplo:

Castanha. nhã. Coribaré diz: nhũ. (fl. 9v, 1ª coluna)

Algumas fontes missionárias dos séculos XVII e XVIII citam este grupo indígena, mas com certa variação de grafia. Em sua crônica, escrita no final do século XVII, o padre jesuíta João Felipe Bettendoff, missionário que atuou por quase quatro décadas na Amazônia, menciona que na região do rio Xingu (no atual Estado do Pará) havia “umas vinte aldêas de Curabares da lingua geral”.

O padre Samuel Fritz, da Província jesuítica de Quito, conhecido por suas muitas viagens pela Amazônia, incluiu em dois mapas da região, que fez em 1691 e 1707, respectivamente, diversas menções a grupos indígenas, entre estes os índios “Curivarés” no Xingu.

Já o padre José de Moraes, em sua crônica, escrita em meados do século XVIII sobre a Companhia de Jesus no Maranhão e Grão-Pará, afirma que o missionário Roque Hunderpfundt, durante uma expedição, encontrou os índios “Curibaris”, que viviam no rio Iriri que desemboca na margem direita do rio Xingu.

O missionário de língua alemã Anselmo Eckart, que atuou na Amazônia em meados do século XVIII, recordou que em sua passagem pela missão jesuítica de Piraguiri, localizada à margem do rio Xingu, conheceu “um povo de nome Coriberé, que em termos de alvura sobrepujava muitos europeus”.

Todas as referências apontam que os Coribaré estavam na região do Xingu. Isso é sinal de que o autor do dicionário com muita probabilidade passou por tal região da Amazônia. De acordo com o historiador Serafim Leite, os índios Coribaré viviam na missão de Piraviri (Piraguiri) no Xingu e foram descidos para esta missão pelos padres Sebastião Fusco e Manuel Afonso.

O segundo grupo indígena identificado foram os Goyapi. Apenas duas menções foram feitas a este grupo no dicionário, como no verbete a seguir:

Temer. acykyiè.  Goyapi diz: akyjè v xekyjè. (fl. 40r, 1ª coluna)

O padre Bettendorff também indicou a presença desses índios no Xingu: “Por este tão bello e fecundo rio habitam varias nações de lingua geral, como são os Jurunas em umas, Guayapis e alguns Pacajas [...]”. O cronista militar Mauricio de Heriarte, em um relato de 1662, republicado no século XIX, afirmou que o rio Paranaiba (Xingu) “Está mui povoado de Indios Guaiapes, Caraus, Juruunás, Cuanis, e outras tantas nações”. O padre Samuel Fritz também menciona os “Guayapís” em seus mapas de 1691 e 1707.

Provavelmente, os Goyapi citados no dicionário de 1756 são os mesmos Waiãpi que hoje habitam a região do Estado do Amapá. A antropóloga Dominique Gallois, que se dedicou a estudar esse grupo, afirma que os Waiãpi migraram, a partir de meados do século XVII, da região do Xingu para o rio Oiapoque. Sendo assim, é possível que o missionário-autor do dicionário tenha encontrado ainda alguns índios dessa etnia durante sua estada no Xingu.

O último grupo mencionado é o dos Xapi. É o grupo mais citado no dicionário, totalizando vinte referências, todas na parte Língua Geral-Português, como se observa no exemplo abaixo:

Apar. acordar. N. Xapì: arepac (fl. 45r, 2ª coluna)

Até o momento, contudo, não foi possível encontrar referências a nenhum grupo indígena com esse etnônimo nas fontes de época consultadas. Análises históricas e linguísticas futuras podem vir a esclarecer de que etnia se trata.

 Lugares amazônicos no dicionário

A probabilidade de que dois dos três grupos indígenas mencionados no dicionário estavam estabelecidos na região do Xingu, leva a crer que o autor também passou em algum momento por esta região. Diversas referências diretas no dicionário ao Xingu e a missões jesuíticas no vale do Xingu corroboram esta afirmação. Para o verbete “Comprar” o autor fornece também a palavra “aporypàn”, usada no Xingu:

Comprar. aiàr v apyrupàn. Top. aiporepyàn. inusit.

aporypàn ouvi no Xingu(fl. 10v, 2ª coluna)

No verbete em Língua Geral “Jrakiy’, além de fazer menção ao Xingu, o autor cita a missão de Aricará:

Jrakiy. exprimitur: irakiig. locus ita dictus ad flumen Xingu**

para diante de Aricarà. (fl. 59v, 2ª coluna)

Segundo o padre João Daniel, havia três missões jesuíticas na região do rio Xingu: “as missões de Aricará a primeira [,] a segunda Piraveri, e Ita crucá a terceira”.

Sabemos pelo relato de Anselmo Eckart que os indios Coribaré estavam na aldeia de Piraguiri, uma das três missões jesuíticas ao longo do rio Xingu. Foram encontradas cinco referências implícitas a esta missão no dicionário, como se pode ver no exemplo a seguir:

Ygoára. morador, ou natural, ajuntando a cousa ou lugar donde he. mortigurigoara, piraguigoara. Mairì igoára etc. (fl. 56r, 1ª coluna, grifo meu)

Decompondo a palavra “piraguigoara” [piragui-goara], podemos perceber a referência à missão xinguana. Piragui, com grande probabilidade, é uma referencia ao topônimo “Piraguiri”, enquanto o sufixo -goara designa “morador de algum lugar”.. Sendo assim, uma tradução possível parapiraguigoara” seria morador de Piraguiri”.

As menções a grupos indígenas e missões no vale do rio Xingu fazem crer que muito provavelmente o autor (ou autores) do dicionário esteve nesta região e a conhecia. Dessa maneira, os indícios encontrados no dicionário permitem acompanhar pelo menos parte da trajetória e experiência de missionários europeus pela Amazônia em meados do século XVIII.

Referências bibliográficas

ANÔNIMO. [Dicionário Português-Língua Geral e Língua Geral–Português]. Ms 1136/2048 4°. Stadtbibliothek / Stadtarchiv Trier, [1756].

BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Belém: Fundação Cultural Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. v. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

GALLOIS, Dominique Tilkin. Migração, guerra e comércio: os Waiapi na Guiana. São Paulo: FFLCH/ USP, 1986.

FRITZ, Samuel. El gran rio Marañon, o Amazonas, con la mission de la Compañia de Jesus geograficamente delineado / por el P.Samuel Fritz, missionero continuo en este rio. P.J. de N. Societatis Jesu, quondan in hoc Maranone missionarius, sculpebat. 10 leguas castellanas (1707). Bibliothèque Nationale de France, GED-7855. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8446616z>. Acessado em: 12/01/2014.

_________. Mapa geographica del rio Marañón o Amazonas, hecha por el P.Samuel Fritz, de la Compania de Jesus, missionero en este mesmo rio de Amazonas - 1691. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/amazonicas/Amazonia/cartogra053 _cart.htm>. Acessado em: 12/01/2014.

HERIARTE, Mauricio de. Descripção do estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio das Amazonas. Vienna d'Austria : Imprensa do filho de Carlos Gerold, 1874.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 10 tomos. Rio de Janeiro / Lisboa: Instituto Nacional do Livro / Civilização Brasileira / Portugália, 1938-1950.

MORAES, José de. História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1987.

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* A pesquisa que deu origem a este trabalho contou com o apoio do CNPq em 2013 e 2014.

** Latim: "lugar assim chamado perto do rio Xingu".


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