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Cartas dos missionários

As leituras modernas das cartas dos primeiros missionários jesuítas no Brasil

O corpus das primeiras cartas, tratados e fragmentos históricos, redigidos no Brasil pelos missionários jesuítas, forma um conjunto essencial para a historiografia da Companhia de Jesus, assim como para o Brasil. Com efeito, constitui um elemento importante no relato das origens tanto para uma quanto para outra destas duas entidades. Isto explica seu ressurgimento e as interpretações polêmicas que suscitou, quando da elaboração dos mitos da Ordem e da nação. Se acrescentarmos a isto o aspecto fragmentário e informe deste continente de textos, vamos compreender que ele oferecia múltiplas possibilidades às manipulações. É aos primeiros historiadores da jovem nação brasileira que é dado o mérito da exumação do corpus jesuíta. As numerosas pesquisas efetuadas por Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1878), e em seguida por João Capistrano de Abreu (1853-1927), a partir de 1835 nos arquivos europeus, notadamente em Évora e Coimbra, vão permitir uma nova avaliação do conjunto dos escritos jesuítas.

Os historiadores brasileiros e as origens da nação

F. A. Varnhagen, em sua História geral do Brasil, redigida entre 1854 e 1857, utiliza as cartas e os documentos que as acompanham como fontes históricas para nutrir sua reconstituição do nascimento do Brasil colonial. Contudo, sua intrínseca hostilidade à Ordem inaciana induz uma leitura muito dirigida, que minimiza sistematicamente a importância dos padres em benefício dos agentes da coroa portuguesa. Os colegas de F. A. Varnhagen, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (o IHGB foi fundado em 1838), vão também produzir um grande número de comentários dispersos destas cartas, gabando sistematicamente as origens cristãs do Brasil. J. Capistrano de Abreu completará o trabalho de arquivo e editará elementos fragmentários da memória jesuíta, mas adotando a perspectiva oposta : a de um Brasil indígena que emerge dos textos dos padres Anchieta e Cardim, que o historiador é o primeiro a ler e publicar no Brasil.

Compreendemos que nas três leituras confrontadas aqui os textos jesuítas do século XVI são utilizados como documentos históricos que sustentam posições ideológicas antagonistas, dando uma versão das origens do país em função de posturas singulares. Se Varnhagen se obstina em ler a visão de um Brasil como extensão da Europa, os membros do IHGB fazem a apologia dos jesuítas como agentes de um cristianismo que abrandava a brutalidade da colonização ibérica. Capistrano, por sua vez, procura encontrar as marcas de um Brasil formado no local a partir dos elementos indígenas cuja persistência os jesuítas do século XVI registram. Os jesuítas são, portanto, ou simples agentes da coroa ou um grupo que se opõe à coroa em defesa dos índios, ou ainda testemunhas privilegiadas graças a sua proximidade com os índios. Basta organizar os textos distintos para fazê-los contar histórias bastante diferentes umas das outras.

Os jesuítas entre história e apologia

A composição da história da Ordem por ela mesma é um dos modos de expressão privilegiada da identidade espiritual e política jesuíta. Por isso a construção do relato histórico das missões começou desde a origem da Ordem. O Chronicon do secretário J. A. Polanco, redigido a partir de 1573, conta a história jesuíta das origens até a morte de Inácio em 1556, utilizando trechos de cartas de missão. Para o Brasil, a Chrônica da Companhia do estado do Brasil, do padre Simão de Vasconcelos em 1663 vai constituir uma primeira síntese, redigida contudo por um oponente de Roma que será censurado. Mas vai ser a monumental história do padre Serafim Leite que depois dará uma visão global da missão até o século XVIII. Sua História da Companhia de Jesus no Brasil, (1938-1950), em dez volumes, acompanhada da publicação da quase totalidade dos documentos, parece colocar fim a esta grande tarefa historiográfica.

No entanto, os três conjuntos que citamos contam, a partir dos mesmos documentos, histórias bem diferentes. Trata-se, exatamente como nos historiadores laicos, de dar uma versão das relações entre Roma, Lisboa e Bahia. Polanco faz da missão brasileira uma simples extensão da virtude do fundador, Vasconcelos, por sua vez, privilegia a singularidade de uma missão especificamente brasileira, e Serafim Leite dá a versão de uma missão que teria sido o braço católico da coroa portuguesa. Mais uma vez, a organização de um relato do período das origens, e ,portanto, a leitura das cartas que constituem sua base, obedeciam a uma preocupação ideológica, ilustrando os debates bastante violentos que agitaram a Companhia de Jesus.

Os antropólogos franceses e brasileiros ou a era da suspeita

Fora do círculo jesuíta ou do valor que podia constituir esta correspondência para os primeiros historiadores brasileiros, o trabalho epistolar jesuíta só podia ser lido no interior de um corpus mais amplo, o dos relatos de viagem, documentos sobre a colonização ou o dos testemunhos sobre os índios. No campo da literatura, da história das missões católicas ou da antropologia, estes textos, ainda que potencialmente muito ricos, exigiam uma leitura prudente que devia primeiramente liberar os conteúdos do discurso apologético ou edificante que os enquadrava. Para a maior parte dos leitores, o substrato ideológico foi insransponível ; os historiadores católicos como o francês Robert Ricard ou os partidários da colonização só fizeram alargar a perspectiva inicial dos textos jesuítas.

Os antropólogos franceses e brasileiros foram igualmente leitores atentos das cartas, mas nem sempre satisfeitos com as informações que lá encontravam. Assim, os Clastres, Pierre e Hélène, apontam frequentemente a falta de objetividade, os silêncios e os vazios da informação sobre as práticas indígenas, especialmente no domínio religioso. Ao lado dos textos de A. Thevet, J. de Léry ou Gabriel Soares de Sousa, os textos jesuítas parecem efetivamente pobres, porque transmitem informações indiretas ou orientadas e não se interessam muito em construir um quadro ordenado da sociedade indígena. Não obstante, um dos grandes especialistas brasileiros da sociedade tupinambá, Florestan Fernandes, após o francês Alfred Métraux, reconhecia a incontestável utilidade destes fundos jesuítas para as análises das sociedades indígenas da costa.

O paradoxo reside no fato que a descrição das práticas religiosas indígenas pelos jesuítas é muito lacunar, tanto eles se obstinaram a ver um povo sem religião, ao passo que os dados antropológicos e históricos que estes documentos carregam são extremamente originais e pertinentes.

Conclusão: As cartas jesuítas hoje

Assim, os documentos jesuítas foram muito frequentemente solicitados pelas leituras contemporâneas e permanecem ainda hoje como textos de primeira ordem, com a condição de que sejam reinseridos na lógica que foi a da sua redação. Constantemente instrumentados por discursos exteriores, constituem uma documentação incontornável para a reconstituição dos primeiros tempos da colonização mas igualmente para a apropriação de todas as causas ideológicas em jogo que atravessam a reescrita da história do Brasil. Utilizados de maneira menos maniqueísta pelos especialistas contemporâneos do Brasil, os textos saídos de uma experiência missionária sob vários aspectos inaugural continuam a alimentar a reflexão sobre o encontro entre o antigo e o novo mundo.


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