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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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PANFLETOS POLÍTICOS E OS ANOS DE 1820 NO MUNDO LUSO-BRASILEIRO

Em 1821, um panfleto manuscrito, pregado nos postes e paredes das ruas da cidade do Rio de Janeiro, convidava os cidadãos – “amantes da Nação” – a aderirem à Revolução Liberal do Porto*, iniciada em 1820. Era o tempo de quebrar “os Grilhões do Despotismo”, que há muito tempo aprisionava o Império português. Destacava, contudo, que a culpa desse governo autoritário não era do Augusto Monarca, mas sim de seus ministros que o traziam enganado sobre as necessidades do povo.

A Revolução Liberal do Porto foi iniciada em 24 de agosto de 1820, propondo uma regeneração política, que previa uma reforma dos abusos e o estabelecimento de uma nova ordem, que substituísse as práticas do Antigo Regime* pelas do liberalismo. Na visão de época, não se tratava de um processo que pudesse trazer os perigosos tumultos filhos da anarquia, como era característico de uma revolução, mas sim de uma reforma política, como convinha a uma conjuntura dominada pela política conservadora da Santa Aliança*. Os líderes do movimento pretendiam instaurar as linguagens do liberalismo por meio de uma monarquia constitucional, sob a dinastia de Bragança.  Anunciavam-se novos tempos e novas expectativas nos dois Reinos que compunham o Império português. Mas, sobretudo, havia uma preocupação por parte dos revoltosos em conquistar para o ideário liberal as demais regiões do Império, sobretudo o Brasil, com a promessa de desterrar o despotismo, considerado responsável por toda a opressão política.

As notícias dessa Revolução propagaram-se rapidamente no Brasil. As primeiras cartas de portugueses, os ofícios dos governadores do Reino com informações sobre o movimento e as providências da regência de Lisboa chegaram ao Rio de Janeiro em outubro. Apesar de d. João e seu círculo de ministros postergarem suas ações até o início de 1821, não foi mais possível ignorar tais acontecimentos, quando a Corte teve ciência que Pará e Bahia aderiram ao movimento português. Tornavam-se necessárias medidas urgentes da administração para não se perder o controle sobre o rumo do processo histórico. Situação que se tornou ainda mais delicada quando, em 26 de fevereiro, a Divisão Militar Portuguesa proclamou o movimento constitucionalista na capital da então sede do Império português. (Imagem 2; Imagem 3)



Imagem 2: DESDE que a aurora política raiou no berço da monarquia portuguesa. Rio de Janeiro: Tip. Régia, 1821 [Manuel da Silva Porto]



Imagem 3: ACCEPTATION provisoire de la constitution de Lisbonne à Rio de Janeiro, en 1821 par Jean Baptiste Debret. Data 1839. Disponível em Biblioteca Digital do Brasil.

 

Nos dois lados do Atlântico, o ano de 1821 converteu-se naquele da pregação liberal e do constitucionalismo, definindo uma nova cultura política, cuja dinâmica, porém, acompanhou o ritmo do processo histórico mais amplo. Essa nova cultura política liberal inaugurava práticas, pouco conhecidas até então. Por exemplo, o fim da censura prévia sobre os escritos, que possibilitou um rico debate de ideias, estimulado pela circulação cada vez mais intensa de folhetos, panfletos e jornais. Estes materiais, que chegavam de Lisboa ou que se imprimiam no Rio de Janeiro ou na Bahia, geraram um clima febril também no Maranhão, no Pará, em Pernambuco e em outros locais de menor expressão. (Imagens 4)



Imagem 4.1: FALCÃO, José Anastacio, 1786-. Os Anti-constitucionaes. Prova-se que são maos christãos, maos vassalos: e os maiores inimegos da nossa patria. Rio de Janeiro: Typographia Regia, 1821. 16 p.



Imagem 4.2: AS AMENDOAS dadas aos corcundas, por hum liberal inimigo dos golfinhos. Rio de Janeiro: na Impressão Nacional, 1821. 8 p.



Imagem 4.3: LIMA, José Joaquim Lopes de. Os Corcundas do Porto: farça em verso com o himno anti-corcundal . Rio de Janeiro: na Typographia Nacional, 1821. 12p.



Imagem 4.4: MOTE improvisado. Independencia, ou morrer. Rio de Janeiro: Officina de Silva Porto, 1822. [1]f.



Imagem 4.5: MOTA, João Bernardo dos Reis. Discurso sobre o estado actual do Brasil, dirigido à Soberania da Nação Portuguesa. [Bahia: Viuva Serva e Carvalho, 1822]. [8].



Imagem 4.6: A Malagueta (Bahia, 1821-1824) - Um dos mais famosos na época, A Malagueta, cujo redator era o português radicado no Brasil Luis Augusto May, se inspirava nas ideias dos filósofos iluministas. No primeiro número de A Malagueta, o seu editorial destaca que o jornal não era “constitucional por contrato, nem corcunda por inclinação, nem republicano”.



Imagem 4.7: Semanário Cívico (Bahia, 1821-1823) – Seu editor Joaquim José da Silva Maia, comerciante português radicado em Salvador, era defensor intransigente do constitucionalismo e da união com Portugal.



Imagem 4.8: Revérbero Constitucional Fluminense (Rio de Janeiro, set. 1821- out. 1822) – Era porta-voz para uma das principais correntes políticas do período, que defendia um liberalismo mais radical. Januário da Cunha Barbosa e Joaquim Gonçalves Ledo eram seus redatores e, em meio às movimentações políticas no Brasil promovidas pelos efeitos das medidas das Cortes de Lisboa, Ledo passa a defender abertamente no jornal a opção separatista.



Imagem 4.9: O Espelho (Rio de Janeiro, 1 out. 1821 – 27 jun. 1823) – jornal criado por Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, o mesmo que havia redigido a Gazeta do Rio de Janeiro, de 1812 a 1821, e O Patriota, em 1813. O Espelho tinha como principal objetivo discutir a Constituição que se estava elaborando em Portugal, trazendo ao público informações a respeito das sessões das Cortes, as notícias saídas nas gazetas portuguesas e baianas e, ainda, no Correio Brasiliense. Isabel Lustosa recorda que mesmo Dom Pedro valia-se do anonimato para escrever em O Espelho artigos agressivos contra os jornalistas mais críticos ao seu governo:
Ao mesmo tempo, o direito ao anonimato, que será uma das características da liberdade de imprensa do tempo, funcionava como estimulante para a ousadia dos redatores. Sob pseudônimo, D. Pedro escreveria os agressivos artigos que publicou contra Soares Lisboa e Luís Augusto May, no Espelho. (LUSTOSA, 2000: 32)



Imagem 4.10: O Paraense (Belém, maio 1822 - fev. 1823) - O jornal O Paraense, cuja circulação foi iniciada em 1822, foi o ponto de partida da imprensa no Pará e na Amazônia oitocentistas. Felipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, fundador do jornal, marcou através dele duas posições políticas claras: a primeira, com relação à montagem de um novo e esclarecido governo no Pará. A segunda foi construída no sentido de defender o Reino Unido, na forma como foi arquitetado em 1815, o que significava proclamar a união do Brasil a Portugal.

 

O inédito clima de excitação, característico dos tempos de convulsão política, se expressou por meio desses escritos de circunstâncias, que possibilitaram uma discussão até então desconhecida aos novos espaços de sociabilidade representados pelos cafés, academias, livrarias e sociedades secretas, como a maçonaria. Estendendo-se além das elites que dominavam a palavra escrita, essas discussões atingiam, pelo falar “de boca”, os indivíduos que se situavam nas fímbrias dos grupos privilegiados, transformando-os em um público virtual significativo. Por meio delas, os principais valores da cultura política do mundo luso-brasileiro eram definidos: uma monarquia constitucional que continuava aliada à Igreja, colocada doravante inteiramente a seu serviço, pois, à falta de uma ideologia da nação, ainda se fazia necessária a doutrina cristã para reunir os indivíduos em um corpo social; uma sociedade em que reinavam os homens ilustrados, cujo papel era o de orientar a opinião pública; uma liberdade que não ultrapassasse os direitos alheios; uma igualdade que se restringisse ao plano da lei.

No rastro desse debate político, opiniões e interesses se forjaram, suscitando posturas diversas entre os segmentos das elites nos dois lados do Atlântico.  O retorno de D. João VI para Portugal, em abril de 1821, deixando no Reino Unido, como regente, o príncipe D. Pedro, consolidou, por um lado, o processo de constitucionalização do Brasil; de outro, abriu o caminho para sua emancipação, proposta, no entanto, que se concretizou apenas em 1822, depois de um longo processo e de muitos desencontros entre os dois lados do oceano.

PANFLETOS: DEFINIÇÕES

“Esta guerra, meu amigo, é mais de pena, que de língua ou de espada”. Assim escreveu o Sacristão de Tambi ao Estudante Constitucional, em impresso inserido no periódico Reverbero Constitucional Fluminense, em 1822 (Imagem 5), revelando o agitado debate político vivido neste lado do Atlântico no processo de separação do Brasil de Portugal.



Imagem 5: Carta do Sacristão de Tambi ao estudante Constitucional do Rio. Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, nº 9, 8 janeiro 1822.

 

Aquele momento de crise e convulsão política, propício ao surgimento de diversas modalidades de expressão escrita, agilizou a comunicação, facilmente transformando as palavras em armas de combate. Era uma autêntica “guerra literária”*, ou “guerra de penas”*, ou “guerra de afrontas”*, como se dizia na época. Entre tais modalidades, estavam periódicos, folhetos, panfletos manuscritos ou impressos, anedotas, páginas de pequenas histórias, folhas volantes.

Segundo a historiografia, essa literatura de argumentação surgiu no Império português, no período da União Ibérica (1580-1640) e, depois, na guerra de Restauração, em 1640. Outros escritos maliciosos marcaram também a época pombalina (1750-1777), sendo quase todos clandestinos. Foi, entretanto, principalmente no final do setecentos e início do oitocentos, que esses textos de circunstâncias se tornaram instrumentos importantes da política de época – por exemplo, os “pasquins sediciosos” que apareceram afixados nas paredes da cidade de Salvador, dando início à Conjuração dos Alfaiates, em 1798; os panfletos que surgiram ao longo das guerras napoleônicas; no movimento constitucionalista de 1821; no processo de independência; na crise final do Primeiro Reinado e, mesmo, em algumas conjunturas de tensão, no Segundo Reinado. Não se pode afirmar que em outros momentos não tenha ocorrido a publicação destes escritos, no entanto, seu número e diversidade eram muito menores. (Imagens 6)



Imagem 6.1: A BESTA de sete cabeças e dez cornos, ou Napoleão, Imperador dos francezes [Livro]: esposição litteral do capitulo XIII do apocalypse. 1809.



Imagem 6.2: LIMA, José Joaquim Lopes de. Diccionario carcundatico ou Explicação das phrazes dos Carcundas... /. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1821. 12p.



Imagem 6.3: VEIGA, Evaristo da. Hymno Constitucional Brasilience [Manuscrito], 1822.

 

Ao longo desse período, há referências a panfletos, folhas volantes, folhetos, papéis, papelinhos, pasquins, sendo este último termo o mais usado. O Dicionário de Morais de 1813 não menciona nem panfleto, nem folheto, mas o Vocabulário de Bluteau de 1728 registra pasquim: sátira ou pasquinada; dito picante, posto em papel e publicamente exposto. O mesmo termo – pasquim – faz-se presente no Dicionário de Morais de 1789 e de 1813: sátira por escrito pregada nas ruas ou portas. Somente em 1871, Domingos Vieira Porto, na edição de seu Grande Diccionário Portuguez, registra panfleto: “termo considerado como galicismo, e que na língua portuguesa deve significar: folheto, livrinho, papeleta”.

Para o presente trabalho, considerou-se panfleto um gênero literário específico, cujo suporte era de uma brochura ou de pequenos livretos, algumas vezes não encadernados, que, dependendo de seu formato – in-fólio, in-quarto ou in-oitavo –, possuíam tamanhos diversos. Regra geral, eram redigidos por um único autor, que narrava em seu texto uma situação vivenciada. Tal autor utilizava técnicas retóricas e estilísticas, adotando um tom de grande violência verbal, fosse contra um adversário, fosse para divulgar suas ideias, fosse a favor de uma causa que ele estimava como verdadeira e justa. Podiam publicar páginas e réplicas rápidas, mas também podiam abrigar escritos mais longos e reflexivos.

De caráter didático e polêmico, os panfletos mantinham-se anônimos por causa da censura, mas, escritos sob a forma de comentários aos fatos recentes, ou de discussões sobre as grandes questões do momento, traduziam em linguagem acessível os temas fundamentais do constitucionalismo. Fruto de uma relativa liberdade de imprensa, essa literatura de circunstância cumpria o papel de levar notícias e informações a uma plateia mais ampla, sobretudo, por meio da oralidade, que deixava de vê-las como meras novidades do domínio privado para encará-las como parte de um espaço comum, esboçando-se a formação de espaços públicos.  Entre esses espaços, salientavam-se as ruas e praças das cidades, cujas paredes e postes forneciam o suporte para os panfletos manuscritos ou impressos. Concorriam, portanto, para uma maior familiaridade com o escrito e asseguravam uma roupagem nova – a interpretação política – a antigos hábitos. Afinal, vislumbrava-se a possibilidade de intervenção do indivíduo comum na condução dos destinos públicos.

 

PANFLETOS: FORMAS, LINGUAGENS E AUTORES

A característica básica desses folhetos era seu caráter polêmico, mas também didático, sob a forma de comentários de fatos recentes, ou de discussões sobre as grandes questões da época. Muitas vezes, encadeavam-se uns aos outros, ou a alguma publicação de outro gênero, como os jornais, enquanto resposta ou desafio às posições assumidas, chegando a formar uma “rede de polêmicas”. Essas obras cumpriam o papel de levar notícias e informações a uma plateia mais ampla, composta não apenas pelas camadas letradas, mas também pelos segmentos pouco instruídos ou mesmo iletrados da sociedade. Para atender a tal finalidade, precisavam adotar formas apropriadas de escrita.

Deviam ser redigidos de forma simples e direta, sem os enunciados rebuscados das obras eruditas. Apresentavam as ideias de forma bastante organizada, explicando o autor seu posicionamento sobre o assunto e procurando fornecer opiniões e ensinamentos que pudessem influenciar o público leitor.  Só assim poderiam transmitir a todos o novo vocabulário político que começava a circular, muitas vezes estranho à população. Para tal, era necessário recorrer às diversas táticas e técnicas de argumentação e persuasão fornecidas pela retórica, que eram, aliás, do conhecimento de quase todos os panfletistas e de muitos de seus leitores. Recorria-se também às exclamações, às interrogações e às apóstrofes para ornamentar esse discurso, repleto de uma linguagem figurada.  Expressões como “quase todas as nações gemem em ferros”, ou que dizia ser o déspota um “monstro que tudo lhe [era] permitido” deveriam atrair a atenção do leitor, enquanto outros recursos serviam para destacar algum pensamento importante: “Com quanta insolência não ultraja a Deus, aquele que o representa como autor e defensor dos tiranos que desolam a terra!  [...] Ó vós, que reinais sobre os homens, cuidai em os fazer venturosos!”

Muitas pessoas tomavam conhecimento das novidades políticas ouvindo leituras em voz alta desses panfletos, participando de conversas e discussões nas lojas ou mesmo na praça pública. Segundo o Mestre Periodiqueiro, personagem de diversos folhetos, o botequim era lugar de grande falácia, em que se discutiam autores como Locke, Grotius, Montesquieu e outros, mas também “casas de reuniões patrióticas”, em que a opinião pública encontrava seus intérpretes, formulando-se questões por “vozes estrondosas”, que retumbavam nas vidraças das lojas.

Pelo preço, esses escritos de circunstância eram acessíveis a um público mais vasto. Segundo os catálogos do livreiro Paulo Martim, os folhetos vendiam-se por um valor entre 80 e 320 réis. Na mesma época, uma empada de recheio de ave custava 100 réis; a aguardente de cana, 80 réis a garrafa. Dizia-se que o povo, por não ter recursos para ir ao teatro, divertia-se com os “bufões [periodiqueiros] por pouco dinheiro”.

Outra característica fundamental era o anonimato dessas obras.  Já que a censura aos livros ainda estava presente, principalmente em 1821, talvez se tratasse da maneira mais simples de assegurar a livre manifestação das ideias. A partir do ano seguinte, muitos desses folhetos começaram a ser identificados pelas iniciais de seus autores, o que se pode atribuir à lei que proibia a publicação de obras anônimas pela imprensa oficial.  De igual modo, nessa mesma época, aumentou consideravelmente o número de folhetos publicados pelas tipografias particulares.

Nesse sentido, torna-se muito difícil identificar os autores dos panfletos. Mas, alguns dados já foram identificados por historiadores, como José Murilo, Lucia Bastos e Marcello Basile. Esses autores identificaram 95 autores dos 368 panfletos reunidos em Guerra Literária, mas só conseguiram dados biográficos de 73. Alguns pontos foram relevantes: o local de nascimento, a educação superior e a ocupação desses autores. Assim, em relação à sua naturalidade foi possível verificar que 55% dos autores nasceram na América Portuguesa, 18, em Portugal e um, na Espanha.

Quanto à formação universitária, a única que as fontes em geral fornecem, foram identificados 23 portadores de diplomas. Como diplomas de educação superior eram muito valorizados e, portanto, muito anunciados, pode-se supor que o número reflita corretamente a presença de bacharéis no grupo. É percentual pequeno, se comparado à escolaridade das elites políticas daquele momento, predominantemente universitária. É, assim, razoável concluir que o grosso dos panfletistas se situava, por sua escolaridade, entre os setores médios da sociedade, termo esse já usado na época. Do grupo de universitários, 18 estudaram na universidade de Coimbra (12 brasileiros e 6 portugueses). Desses, doze frequentaram o curso jurídico, dois optaram pela Filosofia, dois pelas matemáticas e outros dois pela medicina. Entre esses últimos, estava o grande polemista Cipriano Barata de Almeida que, no entanto, não chegou a se formar, obtendo apenas o título de cirurgião. Fora do grupo de Coimbra, alguns estudaram no Brasil, nas Academias Militares ou na Escola Cirúrgica do Rio de Janeiro. Um formou-se na Academia Real da Marinha, em Portugal.

Quanto à ocupação desses autores, pode-se situar aqueles ligados ao setor público, como os funcionários civis, militares e eclesiásticos. Foram incluídos no grupo os professores, uma vez que era quase inexistente o ensino particular. Entre os profissionais liberais também foram considerados médicos e advogados. O “setor empresarial” é representado por negociantes e proprietários. Há grande predomínio do setor público. A rigor, os advogados podem ser também aí incluídos porque muitos eram, ou se tornaram, magistrados, carreira em que vários atingiram a posição de desembargador. São apenas oito os proprietários de terra. Mesmo assim, quase todos tinham outra ocupação, às vezes no Estado.

A informação realmente impactante é a maciça presença de funcionários públicos, isto é, de pessoas dependentes do Estado e do governo, entre os escritores de panfletos. Totalizam 53 entre 86 autores. São poucos os representantes da sociedade, ou do mercado, quais sejam, os profissionais liberais, proprietários e comerciantes. Mesmo estes, muitas vezes tinham um pé no Estado. O quadro representa bem o caráter patrimonial da sociedade luso-brasileira da época, em que era forte a presença do Estado, não só como regulador, mas também como empregador e distribuidor de benefícios e prebendas.

Aparecem algumas mulheres, em número bastante reduzido, entre os autores dos panfletos: uma baiana anônima (Lamentos de huma bahiana na triste crise, em que vio sua patria oppressa pelo despotismo constitucional da tropa Auxiliadora de Portugal ...) e Maria Clemência da Silveira Sampaio, considerada a primeira poetisa do Rio Grande do Sul. Além disso, há uma senhora de Lisboa que escreveu uma canção – Endexas Patrióticas e Constitucionais (1821). Há ainda uma representação de mulheres brasileiras ao imperador Pedro I, em que pedem por seus maridos portugueses, ameaçados de expulsão. Mais significativamente, reivindicam “certos foros civis” e o estatuto de cidadãs efetivas. (Imagens 10)



Imagem 10.2: ENDEXAS patrioticas e constitucionaes. [Nova edição] [Rio de Janeiro]: Impressão Régia, 1821].

 

Esses instrumentos fundamentais de divulgação da cultura política assumiram várias formas.  Alguns procuravam explicar certos pontos do vocabulário político, sendo então chamados de “folhetos constitucionais” pelo livreiro Paulo Martin.  Era o caso da Constituição explicada – aliás, o primeiro folheto a ser anunciado na Gazeta do Rio de Janeiro, em março de 1821 –, do Constitucional justificado, ou do Catecismo político constitucional. Havia outros que assumiam a forma de diálogos, como o Diálogo entre o corcunda abatido e o constitucional exaltado e o Alfaiate constitucional, conversa entre um alfaiate e seus fregueses, seguindo o modelo clássico do Spectator de Addison e Steele.  No Diálogo entre a Constituição e o despotismo, a primeira, vinda do meio dia da Europa, vai se encontrar com o “famigerado despotismo”, travando um duelo de palavras, que termina com insultos entre os dois interlocutores, que se separam “nada satisfeitos um do outro”, caminhando o despotismo “a grandes jornadas para Laybach, onde deve assistir ao Congresso dos Ministros, e esta [a Constituição] para o Brasil, onde era há longo tempo apetecida”.

Em 1821, predominaram as cartas escritas aos amigos e compadres: são famosas aquelas escritas pelo compadre de Belém ao redator do jornal português o Astro da Lusitânia, e, ao menos curiosa, a Carta que em defesa dos brasileiros insultados escreve ao sacristão de Carari o estudante constitucional, amigo do filho do compadre do Rio de Janeiro.

Das cartas passou-se às farsas em verso, como aquela intitulada Os corcundas*, escrita por José Joaquim L. Lopes e que termina com um hino “anticorcundal”: (Imagem 11)



Imagem 11: LIMA, José Joaquim Lopes de. Os Corcundas do Porto : farça em verso com o himno anti-corcundal. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1821. 12p.

Tremei, ferrenhos Corcundas


Que o Despotismo expirou:


Nos horizontes de Lísia


Já liberdade raiou... (Imagem do panfleto)


A preocupação de atingir um público mais amplo, divulgando os ensinamentos sobre a Constituição e as críticas ao despotismo, levou ao antigo costume de se parodiar formas religiosas. Um exemplo pode ser encontrado no folheto A regeneração constitucional ou guerra e disputa entre os Carcundas e Constitucionais. O autor, que se diz um “europeu constitucional”, narra os acontecimentos ocorridos em Portugal em 24 de agosto de 1820, comparando-os a outras revoluções na Europa. Em seguida, descreve a disputa entre os dois partidos opostos, corcundas e constitucionais, que termina com o reconhecimento dos próprios erros por parte dos primeiros e com a imposição de um castigo a estes por parte dos segundos. Os corcundas deviam apresentar-se perante o Congresso Nacional, recitando em voz alta e clara várias orações constitucionais, como a Protestação de Fé Constitucional, os Mandamentos da Lei Constitucional, o Padre Nosso Constitucional e a Ave-Maria Constitucional.  Todas são paródias às tradicionais orações comumente recitadas pelo povo em suas preces diárias, como o Padre Nosso Constitucional:
Constituição portuguesa, que estás em nossos corações, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu regime constitucional, seja feita sempre a tua vontade, um melhoramento de agricultura, navegação e comércio nos dá hoje e cada dia; perdoa-nos os defeitos e crimes passados, assim como nós perdoamos aos nossos devedores, que não nos podem pagar, não nos deixes cair em tentação dos velhos abusos, mas livra-nos destes males, assim como do despotismo ministerial, ou anarquia popular.  Amém.

Também, no mundo brasileiro, parodiar formas religiosas  foi uma prática utilizada. Na paródia escrita no momento das guerras de independência, verifica-se o Sinal da Cruz, que os brasileiros deveriam fazer todos os dias, enquanto não fosse expulso da Bahia o general português Madeira:

Baianos! se aos pés-de-chumbo


Deveis uma boa coisa,


A vitória será nossa


PELO SINAL


Fazei-lhes, pois, todo o mal


Fazei-lhes cruenta guerra,


Para que deixem a terra


DA SANTA CRUZ


O Madeira, esse lapuz,


Não escape pela malha;


E de toda essa canalha


LIVRE-NOS DEUS


Sejam por vós, eles e os seus,


Todos feitos em poeira,


Assim o permita, e queira


NOSSO SENHOR


Ele vos infunda valor


Para que fiquem em cacos


Por um cento de macacos


DOS NOSSOS


Baianos, moei-lhe os ossos


Em viva guerra sem pausa


Porque são da nossa causa


INIMIGOS


Vede que os falsos artigos,


Que o Congresso feito tem


Por gosto de lá não vem


EM NOME DO PAI


O que sobre vós recai


E que vos esfola a pele


Nada é por voto dele


E DO FILHO


Assim neles de cadilho


Procurar vingar o insulto


Com o flagelo do vulto


E DO ESPÍRITO


Que quando com valor fito


Estrangulareis os vis


Ficará vosso País


SANTO


Assim queira, Deus, portanto


Que o Diabo é um flagelo


Deve o Madeira de Melo


AMÉM, JESUS.


Pode-se ainda afirmar que o foco temático dos panfletos variou de acordo com o momento político. De início foi o constitucionalismo, essa cultura política que se caracterizou por uma crítica transoceânica quase unânime aos corcundas, ou seja, aos partidários do Antigo Regime. Não se questionava ainda a integridade do Império luso-brasileiro. O ano de 1822 testemunhou o surgimento de contradições no interior dessa ampla frente constitucional e as primeiras rivalidades que começavam a se esboçar entre brasileiros e portugueses. O constitucionalismo converteu-se em proposta de separatismo. Após a Independência, já em 1823, os panfletos oferecem vasto panorama sobre as discussões que se realizavam para a constituição do novo país, girando com frequência em torno dos debates na Assembleia Constituinte, bem como das guerras de independência.

 

PANFLETOS E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

Acompanhar a história da Independência por meio dos panfletos políticos é uma nova maneira de se entender o processo de separação do Brasil de Portugal. Não se pode afirmar que naqueles anos de 1820, já havia se formado claramente a ideia de uma entidade chamada Brasil. Esse termo servia para designar, de maneira ampla, as possessões portuguesas na América do Sul. Igualmente, eram múltiplas as propostas de separação do Brasil de Portugal.

Daí, a importância dos panfletos para essa análise. Os panfletos fizeram parte integrante do jogo político entre 1820 e 1823, seus autores eram atores do jogo. Procuravam doutrinar o público, formulavam, interpretavam, combatiam e defendiam ideias, propunham soluções, representavam interesses. Seus escritos expressavam as diversas maneiras de sentir e pensar dessas personagens. Elas reagiam de modos distintos àquilo que acontecia do outro lado do Atlântico naquele momento de luta política. Pensavam, sonhavam, idealizavam um novo tempo, pois sabiam que novas perspectivas estavam acontecendo na política. Procuravam redigir esses escritos transmitindo a ideia de que um mundo antigo ruía: o mundo do Antigo Regime, com suas hierarquias, seus estamentos, seus modelos rígidos de sociedade e comportamento. Vislumbravam-se a possibilidade de uma perfectibilidade do homem e de uma crença no progresso. Novas linguagens e práticas políticas, pautadas nas perspectivas da cultura política do liberalismo surgiam.

Faziam-se necessárias mudanças nas concepções de conceitos inéditos ou ressignificados como – constituição, direitos, soberania, representação, liberdade, opinião pública, igualdade, cidadania, política, eleições, independência, entre outros – que deviam se viabilizar em novas práticas e instituições políticas.

Portanto, no rastro desse debate político, opiniões e interesses se forjaram, suscitando posturas e projetos diversos entre os segmentos das elites dos dois lados do Atlântico.  Dessa forma, é no bojo do movimento constitucional de 1820, iniciado em Portugal, que se pode inserir o processo de separação entre Brasil e sua antiga metrópole, cujos motivos, porém, não se encontravam nas ideias abstratas de um liberalismo ou de uma consciência nacional, forjada por misteriosas forças anônimas. Em verdade, tratava-se de uma disputa entre portugueses e brasileiros, pela hegemonia no interior do vasto império português. Tais aspectos encontram-se claramente descritos nesses papelinhos que circulavam nas duas margens do Atlântico.

Foi, ao longo de 1822, que mal-entendidos entre as elites portuguesas e brasileiras levaram ao surgimento de novas contradições. Frente a propostas e certas iniciativas tomadas pelas Cortes de retomar algumas das antigas restrições – tanto políticas, quanto econômicas –, que tinham limitado o Brasil, demonstrando o intuito de fazer prevalecer a parte europeia do Império, um clima de crescente animosidade estabeleceu-se entre portugueses e brasileiros. O constitucionalismo converteu-se então em separatismo.

 



Revolução Liberal de 1820: Biblioteca de Coimbra.



O livro A Revolução Liberal de 1820 de José Luís Cardoso, está online e há imagens interessantes.

 

* Toda expressão com asterisco vai estar explicada no vocabulário político.

Lucia Bastos P. Neves


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