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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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Cidadania e processo de independência

A prática de elevar todos os indivíduos à categoria de cidadãos, incluindo homens até então marginalizados ou completamente excluídos do processo político, constituía-se em outro ponto fundamental da nova linguagem política do liberalismo, expressa nos panfletos políticos e periódicos publicados entre 1820-1823. Resultante da cultura política das Luzes, o processo de invenção do conceito moderno de cidadão foi bastante complexo, embora tenha apresentado grande valor simbólico.

A questão essencial era definir o que se entendia como cidadão naqueles tempos de grande agitação política. Se o conceito se fazia presente nas discussões políticas ou nos impressos da época, não era muito comum na fala cotidiana do povo no Império luso-brasileiro, como constatou Telmo Verdelho dos Santos. Diferenciava-se, assim, do que ocorreu na França em 1789, quando a conceituação de cidadão ressignificou-se para além do sentido daquele que era morador ou vizinho de uma cidade. Na língua portuguesa ou espanhola da década de 1820, o termo “cidadão” introduzia, portanto, uma nova experiência histórica e um novo significado político-social, como afirmava o periódico Reverbero Constitucional Fluminense: “usando de nossos direitos naturais, começamos a ser homens, [...] pelo exercício de nossos direitos civis principiamos a ser cidadãos” (Imagem 1).



Imagem 1: REVERBERO Constitucional Fluminense. Rio de Janeiro, RJ: Typ. Nacional, 1821-1822. 22x14 cm. N. 3, 15 out. 1821. (págs. 38-49).

 

Foi ao longo dos debates das Cortes de Lisboa, que o conceito de cidadão começou a ganhar novos sentidos. O deputado Cipriano Barata, representando a Bahia no Soberano Congresso, discursava na sessão de 16 de fevereiro de 1822:

 
Sendo fora das leis constitucionais o estabelecimento de classes, clero, nobreza e povo, e não havendo mais do que o geral honroso nome de cidadãos que abrange a todos os Portugueses: requeiro se determine que ninguém use de outro nome, senão o de cidadão; ficando extinto o abuso de se usar daquele estilo de classes, clero, nobreza e povo.

Alguns meses depois, retornaram-se os debates. Esses foram provocados pela descoberta de uma conspiração – uma “horrorosa trama” contra a Nação constitucional e liberal –, quando surgiu outra discussão sobre um voto de felicitação feito pela Câmara que mencionava clero, nobreza e povo da vila de Esposende, em Portugal. Muitos deputados julgaram a fala inconstitucional por causa da linguagem utilizada na felicitação – clero nobreza e povo. Não devia haver mais distinção de ordens sociais, pois tudo era povo, todos eram cidadãos, uma vez que todos eram iguais diante da lei. O deputado por São Paulo, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, em junho de 1822, recordava que já havia uma indicação e uma fala de Cipriano Barata e reafirmava que a linguagem era inconstitucional, porque “não há mais que Rei e Povo”. A linguagem do liberalismo considerava a igualdade perante a lei como condição inerente ao cidadão, dando uma nova conotação política ao exercício da cidadania.

De início, havia uma preocupação em identificar aqueles que podiam ser considerados como cidadãos portugueses, sendo europeus ou não europeus. Para a época, segundo as propostas do pensamento liberal, possuir os plenos direitos de cidadão não era uma capacidade inerente a todos os indivíduos. Afinal, nos raros momentos em que o problema apareceu, os deputados e juristas portugueses nunca decidiram de forma clara e definitiva se todas as populações nativas do Império português – incluindo escravos e indígenas – podiam ser integradas à condição de cidadão. A única resolução obtida relaciona-se ao art. 21 (tit. II, § I) do projeto de Constituição Portuguesa, que afirmava que “Portugueses eram todos os homens livres nascidos e domiciliados no território português, e os filhos deles”.

A questão no Império do Brasil tornou-se bem mais complexa, uma vez que grande parte de sua população era formada por homens não livres, embora o conceito de cidadão englobasse todos os membros da nação. Em primeiro lugar, havia a questão dos escravos. Na realidade, o povo que participou das manifestações em prol da nova ordem constitucional, embora constituído por diversas categorias – como funcionários, pequenos comerciantes, artesãos, caixeiros, soldados rasos –, não admitia os cativos, que juntos formavam quase um terço da população.

Em junho de 1823, quando já estava reunida a Assembleia Constituinte do Brasil, que debateu amplamente o tema, o redator da Malagueta distinguia três castas de cidadãos e de hierarquias, incluindo na última o “Terceiro Estado, isto é, os cativos”. A primeira era formada pelos membros da família imperial e da aristocracia dos homens brancos e a segunda pelos homens libertos de cor. Em sua opinião, somente as duas primeiras eram admissíveis ao civismo (Imagem 2). Logo, como expressava a Carta Pastoral redigida pelo bispo José C. da S. Coutinho, apesar de a qualidade de cidadão ser “inseparável de todo o homem, que vem a este mundo”, não abrangia as camadas mais ínfimas da sociedade luso-brasileira. (Imagem 3)



Imagem 2: MALAGUETA EXTRAORDINARIA. Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Silva Porto, 1822-. N. 2, 05 jun. 1823.



Imagem 3: COUTINHO, José Caetano da Silva. [Carta Pastoral, em que Vossa Excellencia reverendissima recommenda ao Clero Secular e Regular, que exhortem os povos á união e concordia entre si, respeito e obediência ao governo estabelecido, e outras providencias ao mesmo respeito]. Rio de Janeiro: Typographia do Diario, 1822]. 20 p., 19,5 cm.

 

Raras foram as vozes que defenderam o acesso dos escravos à condição de cidadãos. Assim, em 1821, José Bonifácio de Andrade e Silva ao redigir, em sua essência, as Lembranças e apontamentos do governo provisório de São Paulo para os seus deputados embarcados para o Congresso de Lisboa, chamava a atenção para a necessidade “de legislar e dar as providências mais sábias e enérgicas” sobre duas questões fundamentais à prosperidade e conservação do reino do Brasil: a catequização geral e progressiva dos índios bravos e a melhoria “da sorte dos escravos, favorecendo a sua emancipação gradual e conversão de homens imorais e brutos em cidadãos ativos e virtuosos”.  (Imagem 4)



Imagem 4: SÃO PAULO (Estado). Governo Provisório, 1821. Lembranças e apontamentos do governo provizorio da provincia de S. Paulo para os seus deputados mandadas publicar por ordem de sua alteza real, o principe regente do Brasil; a instancias dos mesmos senhores deputados. Rio de Janeiro: Na Typographia Nacional, 1821. [1] f., 5-11 p. [1] f., 30,5 cm.

 

Em comparação com os povos do Rio da Prata, ao longo dos primeiros anos do oitocentos, afirmava-se entre os homens de época – mesmo os mais radicais – que era legítima a exclusão dos escravos da cidadania, apesar da injustiça da escravidão. Esta consideração não estava embasada na questão da herança ou transmissão pelo sangue, mas sim por se constituírem em sujeitos dependentes.

Ainda sobre essa questão dos cativos, os debates ocorridos na Assembleia de 1823 e a solução estabelecida pela Carta Constitucional de 1824 são relevantes. Se a escravidão não era um ponto discordante nesse problema, tornava-se um ponto essencial para a separação entre o mundo dos escravos e dos livres. Para as elites, acima de tudo, devia preservar-se a integridade do futuro império brasileiro. Na conjuntura incerta da Independência, ainda que fosse preciso conter o aumento do número de escravos, a fim de manter a ordem e evitar tumultos sociais, isso significava a manutenção do sistema escravista no Império. Embora se definisse um novo pacto entre as camadas sociais por meio de um regime representativo, os escravos estavam então excluídos desse acordo.

Uma questão, no entanto, precisava ser resolvida: dar o direito de cidadania aos ingênuos* ou libertos nascidos no Brasil. Se esses acabaram por se tornarem cidadãos, eram excluídos, porém, da definição de eleitores (ou seja, não podiam escolher os deputados), mas, como todos os membros da sociedade, tinham direito a voto nas eleições primárias (art. 91, Carta Constitucional de 1824), desde que cumprissem com a obrigação exigida: possuírem renda mínima de cem-mil reis, quantia considerada, aliás, baixa para os padrões de época. Abriam-se novos horizontes para os libertos, ainda que não se transformassem em cidadãos ativamente plenos. Mas, como afirmou a historiadora Andreia Slemian, a decisão foi atual, do ponto de vista liberal e constitucional.

A importância que a palavra cidadão adquiriu e os direitos que a envolveram levaram ainda à discussão acerca do direito de as mulheres terem ou não acesso pleno à cidadania. Mesmo dentro da lógica da política liberal, a cidadania não era compatível com o gênero feminino.  Não deixa de ser interessante verificar, porém, que o novo clima gerado pelos acontecimentos de 1820-1821 fez com que surgisse na imprensa, de maneira um tanto surpreendente, discussões sobre os direitos políticos das mulheres, considerados no próprio plenário das Cortes de Lisboa. Nele, Domingos Borges de Barros, deputado brasileiro pela província da Bahia, apresentou a proposta de que a mãe de seis filhos legítimos tivesse voto nas eleições, relacionando a cidadania da mulher à maternidade. Para ele, o “sexo frágil” não apresentava defeito algum que o privasse daquele direito, embora os homens preferissem conservá-lo na ignorância. Contudo, nem todos pensavam como ele. O deputado português Borges Carneiro defendeu, em abril de 1822, que a proposta não fosse admitida à discussão, pois tratava-se do exercício de um direito político, e dele seriam as mulheres incapazes, já que elas não tinham voz na sociedade pública. Posição esta que, quando colocada em votação, foi acatada pela maioria, conforme registra o Diário das Cortes.

No Brasil, a participação da mulher enquanto membro integrante da sociedade política, ou seja, com a possibilidade de ascender à cidadania, ficou expressa em alguns panfletos. Um exemplo significativo foi uma Representação de mulheres encaminhada ao Imperador Pedro I pedindo por seus maridos portugueses ameaçados de expulsão das terras brasileiras. Argumentavam que, se as mulheres europeias casadas com brasileiros não eram perseguidas, por analogia, os europeus casados com as senhoras brasileiras, tendo jurado a independência, não deviam perder a Pátria. Lamentavam não possuir alguns foros civis, que se transformavam em uma “moda universal” para se tornarem cidadãs efetivas. (Imagem 5)



Imagem 5: REQUERIMENTO, Rasão, e Justiça: [Representação dirigida a D. Pedro I, de mulheres do Brasil, esposas de portugueses, contra a distinção entre homens nascidos no País e em Portugal] "Assignada por uma terça parte das Senhoras Brasileiras'. Rio de Janeiro: Na Imprensa Nacional, 1823. [1]f., 31 cm.

 

Os redatores dos panfletos políticos e dos periódicos ainda reforçavam o conceito de “cidadão constitucional”. Era para esse modelo de cidadão que eles redigiam seus textos, transmitindo os principais fundamentos das linguagens do constitucionalismo e do liberalismo e explicando seus direitos e deveres. O jornal O Espelho, em outubro de 1821 defendia que os principais deveres do cidadão eram: “amar a Pátria, defendê-la com as armas quando for chamado pela Lei; obedecer à Constituição e às Leis; respeitar as autoridades constituídas e contribuir para as despesas do Estado”. De um lado, tais deveres deviam constar de modo permanente na Constituição, mas, de outro, também precisavam ser garantidos pelos respectivos direitos dos cidadãos. Logo, se havia deveres, também era preciso garantir os direitos.

O conceito alargado de cidadão impunha, portanto, ao indivíduo novos deveres cívicos, ao mesmo tempo que garantia a este a maioridade política, alcançada pelo seu direito de escolher livremente seus representantes que formariam as Assembleias, a quem passou a caber o Poder Legislativo.

Nesse sentido, no Estado que se organizou no Brasil, a partir do processo de Independência, se representava a vontade geral dos cidadãos, por meio das eleições, e se mantinha a perspectiva de homens livres, mas não iguais, já que a escravidão continuava a ser o baluarte da ordem e da segurança social. Por conseguinte, a fim de garantir a organização e o pleno funcionamento dessa sociedade brasileira em formação, era preciso dar ao povo uma Carta Constitucional, ainda que outorgada, como ocorreu em 1824, para configurar plenamente as linguagens políticas do constitucionalismo e do liberalismo.

 

Lucia M. Bastos P. Neves

Ana Carolina Galante Delmas

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