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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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Despotismo, Corcundas e Empenados: a perspectiva dos panfletos políticos (1820-1823)

Após a propagação da Revolução Liberal do Porto de 1820, novas linguagens políticas, estruturadas nos princípios da Ilustração Portuguesa, circularam entre as duas margens do Atlântico. Palavras e conceitos inéditos vieram à tona e foram divulgados por meio de uma produção editorial, que alcançou um grande impulso naquela conjuntura histórica. Ao longo do ano de 1821, os escritos, grandes indicadores desse ideário esclarecido, pautavam-se, sobretudo, por dois conceitos opostos que, àquela altura, definiam as linguagens políticas no mundo luso-brasileiro: de um lado, o despotismo e, de outro, o constitucionalismo/liberalismo. Tais conceitos reúnem um conjunto de palavras que naquele tempo anunciavam princípios bem como definiam direitos e deveres do cidadão, configurando signos que indivíduos do passado acreditavam estar transmitindo por meio de suas mensagens escritas.

O conceito de despotismo significava a negação da liberdade que os escritos de circunstâncias tentaram divulgar. Esse termo foi muito utilizado na linguagem da Revolução Francesa, conhecendo também uso indiscriminado em Portugal e no Brasil, onde foi alvo de diversas críticas. Após 10 de fevereiro de 1821, quando da adesão da Bahia à Regeneração Portuguesa, uma correspondência do “Atento observador” ao periódico baiano a Idade d'Ouro, em março daquele ano, afirmava não haver “papel impresso em que não venha o termo despotismo”.  O conceito exprimia a ideia de um poder ilimitado, baseado exclusivamente na vontade de um soberano, conforme aponta a carta remetida da Vila de Cachoeira, na Bahia, também publicada em março de 1821 pelo periódico Idade d’Ouro do Brazil (Imagem 1):

 
Honrados cachoerenses. Chegou o desejado momento, em que começa o nosso presente, e futura felicidade. Quebraram-se os ferros, que nos prendiam ao desastroso carro do Despotismo mais exaltado. Somos livres, e por consequência homens, o que até agora não parecíamos, quando calcados debaixo dos pés de uma classe prepotente, que fazia toda a sua fortuna à custa das nossas misérias, e desgraças, éramos obrigados a sufocar dentro do peito ainda os mais inocentes suspiros. (Páginas 1-2)



Imagem 1: Idade d’Ouro do Brazil. Bahia, nº 27, 03 março 1821.

 

Naquela época, despotismo surgia como sinônimo de governo absolutista, pois, para os personagens que vivenciavam o período, um governo absolutista era oposto a um governo constitucional, tendendo a se identificar como um governo arbitrário e sem lei.  Os termos, no entanto, não eram sinônimos. Ainda no século XVIII, Montesquieu afirmava que a monarquia era considerada absoluta apenas pelo fato de não estar submetida ao equilíbrio dos poderes, caracterizando-se por um governo limitado pela lei divina e pela lei natural.  No panfleto O Despotismo considerado nas suas causas e efeitos, de 1821, despotismo era um “governo onde o soberano é absoluto e independente das leis; poder absoluto, arbitrário, ilimitado, que não tem outras regras senão a vontade, o capricho ou interesse do déspota” (p. 6). No Dicionário de Antonio de Morais e Silva, edição de 1823, porém, o vocábulo era encontrado com o sentido de “abuso de poder contra a razão, contra a lei; excesso do direito que faz o que governa”.  Distinguia despotismo* da ideia de tirania*, na qual essa mesma vontade e excesso do soberano resultava da usurpação do governo, da injustiça e do apoio da força.

Os escritos luso-brasileiros utilizavam, em geral, o conceito de despotismo na perspectiva de um governo só, sem lei, nem regra, em que tudo obrava pela vontade e pelos caprichos do déspota. Estavam influenciados pelas ideias de Montesquieu, embora o filósofo francês considerasse que apenas nos impérios asiáticos reinava o despotismo em toda a sua plenitude. Nossos autores, porém, transplantavam essa concepção para o mundo ocidental. José da Silva Lisboa e os redatores da gazeta Idade d'Ouro, ainda que afirmassem em seus textos que o conceito usado era idêntico àquele concebido pelo filósofo francês, tornavam sinônimos despotismo e governo absoluto. Algumas vezes, inspirados pela moda turca, valiam-se da invocação do cenário oriental, principalmente do Império Otomano, para comparar com os acontecimentos do Reino Unido e chegar à conclusão de que “nem em Alger, se calcava aos pés mais despoticamente o direito do homem, o mais sagrado”, isto é, o da propriedade, como afirmava o diálogo O Alfaiate Constitucional (p. 14). (Imagem 3).



Imagem 3: FALCÃO, José Anastacio. O alfaiate constitucional: dialogo entre o alfaiate e os freguezes: parte I. Rio de Janeiro, RJ: Typ. Nacional, 1821. 16,5 p, 20 cm.

 

Nos panfletos políticos e nos periódicos da época, era considerado despótico o governo no qual o “soberano [tinha] autoridade ilimitada, e [podia] ao seu arbítrio dispor sem a mínima responsabilidade da vida, dos bens e honra dos seus escravos”, pois esse devia ser o nome dos infelizes que viviam “sujeitos a tão monstruoso governo”, assim descrevia o Manual político do cidadão constitucional. (Imagem 4).  O conceito era usado por meio de uma linguagem figurada, como a utilizada pelo Reverbero Constitucional Fluminense, em janeiro de 1822, que o tipificava “o terror do mundo”, recorrendo-se a imagens como a de uma “Medusa que petrifica até o pensamento humano”. Era a causa fundamental de todos os males que antecediam as revoluções, como a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Portuguesa de 1820. Os textos, ao descreverem e analisarem o conceito, preocupavam-se muito mais em criticá-lo, vitimá-lo, invocando as tristes consequências de sua existência, o que servia para justificar as medidas de reformas e mesmo a necessidade de uma revolução, constantemente reclamadas por esses escritos. “Se a linguagem da humanidade não podia comover alguns corações inacessíveis a todo o humano sentimento”, aterre-os ao menos a história com o pavoroso quadro dos perigos a que se expõem os príncipes o despotismo e a tirania”, proclamava o escrito O despotismo considerado nas suas causas e efeitos (p. 16).



Imagem 4: MANUAL politico do cidadão constitucional. - Lisboa : na Nova Impr. da Viuva Neves e Filhos, 1820. - 32 p.; 16 cm.

 

Portanto, o despotismo significava um ser anônimo responsável pelas desgraças da Nação: era o instrumento que condenara o povo, a ser “escravo desta filha das trevas, que distendia seu império de geração em geração”. Era uma calamidade que se opunha ao bem moral e físico das monarquias e dos impérios.  A ampla utilização desses termos levou os contemporâneos a afirmar que o “melhor recheio de um periódico no tempo presente é falar muitas vezes em despotismo e tirania”.

Apresentando uma profunda identidade com o conceito de despotismo, há o corcunda [carcunda] ou empenado, ou seja, o anticonstitucional.  Era uma forma que conheceu ampla divulgação no vocabulário político de 1820 a 1823, servindo para referir-se de maneira acintosa a todos os que estavam a serviço do ideário do Antigo Regime, contrários às ideias constitucionais das Cortes soberanas de Lisboa e favoráveis ao absolutismo. O vocábulo queria dizer o mesmo que homem anticonstitucional, ou “homem satélite do despotismo”, como indicava a Carta de André Mamede ao seu amigo Braz Barnabé na qual se explica o que são corcundas. Segundo o Dicionário corcundativo o termo significava:

 
palavra da moda; homem, que afeito e satisfeito com a carga do despotismo, se curva como o dromedário para recebê-la; e trazendo esculpido no dorso o indelével ferrete do servilismo, tem contraído o hábito de não mais erguer a cabeça, recheada das estonteadas ideias de uma sórdida cobiça (p. 5) (Imagem 7).



Imagem 7 : LIMA, José Joaquim Lopes de. Diccionario carcundatico ou Explicação das phrazes dos Carcundas... /. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1821. 12p.

* Este panfleto também é referenciado no primeiro arquivo de imagens deste dossiê digital Guerra das Penas (que ilustram textos da primeira parte), sendo, naquela relação, correspondente à imagem 6.2.

 

No mundo luso-brasileiro, a palavra corcunda entrou na linguagem política a partir de 1821. Em Portugal, o termo se fez conhecer por meio do jornal Gazeta Universal, redigida por José Agostinho de Macedo, defensor do ideal católico e absolutista. Esse periódico era considerado o órgão mais importante dos contrarrevolucionários, defensores do trono e do altar, por isso ficou conhecido como a gazeta dos católicos, pois, nos escritos de época, ser católico, na frase dos alumbrados*, é o mesmo que andar às escuras ou trazer uma deformidade intelectual cuja forma física de uma corcova é apenas sombra.  A explicação, no entanto, parece insuficiente para os escritos luso-brasileiros.

Outra versão é fornecida por um constitucional europeu que identifica a origem do nome, associando-o a todos os indivíduos que não quiseram se unir à bandeira da Regeneração Política, pois entre esses se avistavam dois indivíduos de uma estatura gigantesca, todavia, corcovados. A designação corcunda foi então utilizada para se referir a todos os que se curvavam servilmente perante o despotismo. (Imagem 8).



Imagem 8: O Marimbondo. Pernambuco: Typografia Nacional, 1822.5 fasc.

 

A própria palavra corcunda ou empenado* já é indicativa da linguagem figurada usada nesses escritos panfletários. Transmitia-se assim a perspectiva de algo que se deforma. Essa associação permite afirmar que o despotismo era visto como uma deformidade, conforme se lamentava um Corcunda-mor, no folheto O triunfo dos liberais e o arrependimento do servilismo:

 
Já não podemos suportar o peso das desgraças, que preparamos para os liberais, as quais vem a passos longos cair sobre nossos ombros; este peso faz com que sejamos uns verdadeiros corcundas, ainda que este defeito ou aleijão não exista no físico; porém existe na moral adotada para o bem particular de nossos interesses, propriedades, honras e nobreza (p. 7).

No Rio de Janeiro, também o jornal O Espelho (Imagem 9) em um artigo intitulado “Significação da palavra – carcunda – tomada no sentido figurado”, insistia nessa ideia de um defeito moral: “A palavra carcunda, assim como no sentido natural denota um defeito físico, que uns têm nas costas e outros, no peito, assim também quando é tomada no sentido figurado (que hoje é acepção mais vulgar) exprime um grande defeito moral.” Continua o artigo afirmando que os astuciosos aventureiros que conseguiram “subir ao cume das maiores fortunas”, por meio da vaidade, da força, da violência e do despotismo, “contraíram o hábito de trazerem sempre uma corcova ou corcunda atrás, que os aleija, e indica ao mesmo tempo o seu defeito. É esta a origem da alcunha, que comumente se dá aos partidaristas do poder arbitrário” (O Espelho, nº 140, 21 março 1823).



Imagem 9: O Espelho. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. Nº 140, 21 março 1823.

 

O termo corcunda teve ainda uma ampla divulgação no vocabulário político de 1820 a 1823 por meio dos panfletos e dos jornais de época. Assim, à medida que se “quebraram os ferros” na Europa, a linguagem dos homens renovou-se com a utilização de termos e conceitos assaz delicados como a “tal palavrinha” corcunda, que estava, então, “mais luzidia que um espelho: anda nas asas da fama: está servindo todas as horas: deve ser proferida cada dia mais de vinte vezes”.

Aliás, o corcundismo foi ainda considerado um “demônio”, sendo de todos os “espíritos das trevas o mais maligno e prejudicial aos filhos da razão e da lei”. O demônio mudo do Evangelho se rendia pelo jejum e pela oração, “o do corcundismo nem pelo jejum, nem pela oração sai do corcunda; é uma fúria que torna desgraçado o homem que lhe abriu entrada em sua alma”. Esta era a opinião de frei Caneca, em seu jornal o Typhis Pernambucano, em 1824, durante o período da Confederação do Equador, cujo momento histórico levava-o a afirmar categoricamente que “pela ideia que fazemos desse demônio, nos persuadimos que ainda não houve corcunda que se convertesse sinceramente” (Imagem 11).



Imagem 11: O Typhis Pernambucano. Pernambuco: Typ. de Miranda, 1823-1824. N. 27, 29 de julho de 1824.

 

Em 1821, contudo, no clima da Regeneração Política luso-brasileira, eram comuns os folhetos que descreviam a cura desses defeitos físicos e morais. Há um diálogo entre um médico e três corcundas, que finaliza com o arrependimento desses últimos. Eles juram nunca mais ser infiéis à sua Pátria e dão vivas ao doutor “pois quem com todo o esmero a corcunda” os curou (Imagem 12).



Imagem 12: DIALOGO entre hum medico, e tres corcundas em que se ve o grande effeito curativo... e a prudencia do dito medico, com que os fez tornar arrependidos. - Lisboa: Na Offic. de J.F.M. de Campos, 1821. - 4 p. ; 20 cm.

 

A utilização quase abusiva da palavra não durou, entretanto, longo tempo. Foi sobretudo nos três primeiros anos após o movimento de 1820 que o termo corcunda se impôs como designação crítica às ideias do despotismo. Alguns jornais brasileiros se mostraram, porém, um pouco mais moderados em seu uso. Encontram-se mesmo críticas à utilização quase indiscriminada da palavra, como se verifica em uma carta ao redator do Correio do Rio de Janeiro (nº 86, 27 julho 1822), na qual se reclamava “quem não se conforma com o modo de pensar de certa classe de gente, apanha com um pau ou por muita indulgência, é reputado de corcunda”.  Igualmente, o Diário Constitucional (nº 29, 23 março 1822) acusava que, para o redator do Semanário Cívico da Bahia, tudo e todos eram “anticonstitucionais, felisbertinos e corcundas!” No Brasil, em 1822, o termo foi empregado para os que defendiam as ideias anticonstitucionais e para os partidários de uma monarquia na qual o soberano dispunha do veto absoluto. Além disso, os periódicos baianos, adeptos do congresso português, apelidavam de corcunda todos os que contestavam as medidas das Cortes de Lisboa em relação ao Brasil.  Ainda nesse século, um novo significado da palavra corcunda era vislumbrado pelo jornal Malagueta (Imagem 13):

 
Previno-vos, senhor, contra duas qualidades de corcundismo: um é corcundismo velho, que quer pisar aos pés toda acasta [sic] de Constituição; o outro é filho das meditações dos clubes e escritórios de Lisboa e Porto, e tem por objeto recolonização, e monopólio velho! Vigiai bem estas duas canalhas de corcundas: fazei parede com o nosso bom príncipe, e a santa Constituição! (nº 13, 3 abril 1822).



Imagem 13: A Malagueta. Rio de Janeiro, RJ: Typ. de Moreira e Garcez, 1821-1832. Nº 13, 3 abril 1822.

 

Em 1823, o conceito amplia seu significado. Corcunda passou a designar também o português, por associá-lo ao Antigo Regime e ao desejo de ainda ver “no Brasil a bandeira de Portugal”. Na correspondência de José Bonifácio, quatro anos depois, o termo designava como corcundas os portugueses que apoiavam o absolutismo ilustrado de d. Pedro.  Em Portugal, a palavra desapareceu da cena política nesse mesmo ano, substituída por “apostólico”: “O crime maior dos apostólicos, que há muito pouco tempo eram chamados corcundas, [...] era dizerem que o poder dos reis não vinha dos povos, vinha de Deus”, afirmava o autor português José Agostinho de Macedo, contrário às ideias do liberalismo.

Por fim, o epíteto de corcunda foi o que melhor simbolizou os homens favoráveis ao despotismo, nesse período de 1820 a 1823, resumindo nele próprio uma aguda crítica contra o Antigo Regime. Esses conceitos apresentavam forte carga pejorativa e eram habilmente aproveitados pela rede de polêmicas que se estendeu ao longo do ano de 1821 e 1822. A linguagem politizava-se e entrava na vida pública, utilizando um novo vocabulário pautado nas Luzes. Alcançava público mais amplo e difundia conceitos inovadores que se opunham ao de despotismo, como os de constitucionalismo e liberalismo, já amplamente divulgados em várias partes da Europa ocidental, mas que, somente a partir do movimento de 1820, integraram-se à cultura política do mundo luso-brasileiro.

 

Lucia Maria Bastos P. Neves

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