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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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Liberalismo e Constituição

A difusão da concepção política liberal, vitoriosa na Inglaterra desde o final do século XVII e reafirmada nos Estados Unidos e na França no século XVIII, constituiu-se em elemento chave de resistência às forças tradicionais do Antigo Regime. No entanto, no espaço ibero-americano, essas transformações seguiram um curso próprio. Marcadas por algumas especificidades, elas estavam permeadas por traços de uma ilustração mediterrânica, que se apropriou dessas ideias liberais, segundo seus costumes, valores e tradições. Conceito polêmico, o liberalismo foi construído e reconstruído pelos indivíduos de época por meio de suas práticas discursivas e de suas ações.

No contexto do triênio liberal (1820-1823), o conceito de liberdade tornou-se a essência da vida do homem. Liberdade se ressignificava e ganhava um público mais amplo composto por distintas camadas sociais. Não representava a liberdade total, mas aquela resultante das Luzes do século XVIII, quando admitir a liberdade absoluta seria uma quimera. “A Liberdade consistia na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei não proíbe”, como afirmava Montesquieu. Liberdade tornava-se, portanto, o símbolo de uma nova ordem política. Desse modo, o ano de 1821 transformava-se no advento do liberalismo e do constitucionalismo, que se expressava nos principais escritos de circunstâncias, principalmente compostos pelos panfletos políticos e pelos periódicos da ocasião.

Embora menos utilizado nos escritos de época, liberalismo relacionava-se, inicialmente, à qualidade de ser liberal. Para a Causa do Brasil, de autoria de José da Silva Lisboa, a província do Rio de Janeiro devia sua salvação e tranquilidade “à circunspecção e liberalismo” com que tem sido realizada a regência de d. Pedro (1821-1822). Liberalismo, aqui, era usado, inicialmente, de forma qualitativa e como sinônimo de dadivoso. Em seguida, à medida que o conceito se politizava, era apresentado em oposição a servil, um dos conceitos, por excelência, antagonista ao de liberal.

Um panfleto publicado em 1821 – O triunfo dos liberais e o arrependimento do servilismo – apresentava liberal em oposição a servil. No Correio do Rio de Janeiro, em junho de 1822, o artigo “Do liberal e do servil” procurava fornecer o significado de cada conceito. Liberal representava aquele que desejava tanto “o bem da sua pátria” quanto “a liberdade”, transformando-se no “amigo da ordem e das leis”.  Era o cidadão ideal porque “ama o monarca, respeita-o, quando é respeitável, amaldiçoa-o quando é indigno e tirano, e prefere a morte a um jugo insuportável”. Acreditava que possuía “o direito de influir na administração do governo”. Em oposição, encontravam-se os servis. Estes consideravam que as ideias liberais destruíam a legitimidade dos reis e impossibilitavam os privilegiados a continuarem a se alimentar “com o suor e sangue do simples cidadão”. Servil era um “vil escravo vendido ao poder, sempre pronto a sacrificar no altar do despotismo e da arbitrariedade”.  Esse paralelo entre os liberais e os servis traduzia, para o autor do artigo, a formação de dois polos opostos de opiniões, sobre os quais os indivíduos deviam tomar partido, porque, do contrário, era “ser louco ou poltrão” (Imagem 32).



Imagem 32: CORREIO DO RIO DE JANEIRO. N. 60, Rio de Janeiro: Typ. de Silva Porto, 25 jun. 1822. Localização na BN: Periódicos Raros - PR-SOR 00094 [1-2].

 

Em meados de 1822, no entanto, o conceito de liberalismo foi incorporando-se como um instrumento que legitimava as novas instituições da política moderna. Hipólito José da Costa, por meio do Correio Brasiliense, publicado em Londres, utilizava em seus textos esse novo significado de liberalismo. Apreendendo o clima intelectual da política inglesa, ao comentar os atos das Cortes de Lisboa contra a Junta de São Paulo em julho de 1822, afirmava que nem a Junta, nem o príncipe Regente D. Pedro, nem qualquer pessoa ou corporação no Brasil demonstrava qualquer objeção ao sistema constitucional; porém, estavam decididos “a não sofrer despotismos, com a capa de liberalismo” (Imagem 33). Nessa altura, usava-se o conceito em nítida oposição ao despotismo das Cortes portuguesas, em um sentido político e econômico.



Imagem 33: CORREIO BRAZILIENSE OU ARMAZÉM LITERÁRIO. N. 29. Julho 1822. Londres: W. Lewis, Paternoster, 1808-1822.

 

Nos dois Manifestos proclamados por D. Pedro, em 1º e 6 de agosto de 1822, e redigidos, respectivamente, por Joaquim Gonçalves Ledo e José Bonifácio encontra-se uma conotação política do conceito.  O primeiro, ao criticar o restabelecimento do “odioso sistema colonial” no Brasil, declarava ser incompatível e “quase incrível, conciliar este plano absurdo e tirânico com as Luzes e o liberalismo que altamente apregoava o Congresso português”!  Aqui, a principal preocupação era opor o conceito à noção de Antigo Regime, englobando nesta categoria a situação de colônia.  Era uma declaração de liberdade, numa atitude de hostilidade às Cortes de Lisboa. Já no segundo manifesto, de 6 de agosto, procurava mostrar sobretudo que, ao se consolidar a liberdade brasileira, pretendia-se também salvar Portugal de uma nova classe de tiranos, que se encontrava nas Cortes. A conotação de liberalismo era mais moderada, sendo compreendido enquanto um instrumento de equilíbrio de poderes, em especial, um meio de deter o avanço da autoridade das Cortes de Lisboa. Verifica-se, assim, que, em meados de 1822, surgiram contradições no interior da ampla frente constitucional que unia o Império Português e começaram a se esboçar as primeiras rivalidades entre brasileiros e portugueses, convertendo-se o liberalismo em proposta também de separatismo.

A divulgação e a consagração do conceito liberalismo ganharam forma nos panfletos políticos e nos periódicos da ocasião, sobretudo, por meio de instrumentos que transportavam para o cotidiano esse ideário político, como, por exemplo, a proposta de uma Constituição.

Símbolo da Regeneração vintista iniciada em 1820, a palavra Constituição transformou-se no termo que exprimia o anseio político de todos os membros das elites política e intelectual, tanto do Brasil, quanto de Portugal.  “Cortes e Constituição” foi o “grito dos portugueses” que ecoou por todo mundo luso e retumbou em terras brasileiras, afirmava o panfleto Instruções para inteligência dos Povos nas próximas eleições de Eleitores e Deputados de Cortes. A Constituição tornava-se a lei fundamental de um povo, significando a garantia de direitos e deveres estabelecidos por um novo pacto social, elaborado entre o rei e o indivíduo, símbolo da política moderna. Devia ser elaborada por uma Assembleia composta dos representantes da Nação, no caso, as Cortes Gerais e Extraordinárias de 1821, em Portugal, e, mais tarde, no Brasil, pela Assembleia Legislativa e Constituinte de 1823.

Nestes textos políticos e panfletários, o principal objetivo era explicar aos leitores, especialmente às camadas mais baixas, o conceito de constituição e em que consistia um governo organizado sob bases constitucionais.  Dentre os folhetos mais voltados para o grande público, embora citassem alguns teóricos sobre o assunto, destacou-se a Constituição explicada, que retomava Benjamin Constant como um dos esteios da base teórica de seu pensamento. Na visão deste autor, a Constituição era um ato de união que estabelecia as relações recíprocas do monarca e do povo, indicando os meios de se defenderem, de se apoiarem e de se felicitarem mutuamente (Imagem 37).



Imagem 37 : CONSTITUIÇÃO explicada. Reimpresso no Rio de Janeiro: Na Impressão Regia, 1821.: [s.n.]. [1] f. ; 30 cm.

* O panfleto também é referenciado como a imagem 22 desta mesma relação de imagens do dossiê digital Guerra das Penas (correspondente aos textos que integram a segunda parte).

 

Era ainda comum os autores recorrerem aos diálogos e aos manuais com o objetivo de melhor explicitar aos cidadãos o conceito de Constituição. O Diálogo instructivo em que se explica os fundamentos de uma Constituição (Imagem 38) afirmava que a Constituição era uma lei fundamental, que regulava a forma pela qual uma Nação devia ser governada e estabelecia “máximas gerais, a que todos deviam satisfazer”.  O Manual Político do Cidadão Constitucional, por meio do método de perguntas e respostas, indagava “que coisa é Constituição”. Semelhante aos outros, respondia: “as Leis fundamentais pelas quais um povo estabeleceu o modo por que quer ser governado e determina os limites do poder que confere às autoridades a que se sujeita” (Imagem 39).



Imagem 38: DIALOGO instructivo em que se explicão os fundamentos de huma constituição e a duvisão das autoridades que a formão, e executão. Rio de Janeiro, RJ: Typographia Real, 1821. 8 p., 19 cm.



Imagem 39 : MANUAL politico do cidadão constitucional. - Lisboa : na Nova Impr. da Viuva Neves e Filhos, 1820. - 32 p.; 16 cm.

* O panfleto também é referenciado como a imagem 4 desta mesma relação de imagens do dossiê digital Guerra das Penas (correspondente aos textos que integram a segunda parte).

 

Naquela conjuntura, encontravam-se propostas distintas de Constituição. De um lado, os mais moderados, como os representantes da elite coimbrã*, eram favoráveis à ideia de uma Carta Constitucional. Por exemplo, José da Silva Lisboa criticava a “galomania” de se estabelecer a democracia nos Estados monárquicos e de legitimar a Constituição por meio do “consenso do povo”. Aceitava uma Carta, que significava a ata das leis fundamentais do Estado. Mesmo José Bonifácio, um liberal, opositor a qualquer ato despótico, declarou, em janeiro de 1822, que temia as desordens das Assembleias Constituintes, tendo, por isso, procurado criar um Conselho de Procuradores para servir de intermediário entre o povo e o soberano.

Porém, para outros liberais, detentores de uma linguagem um pouco mais radical, como os membros das elites brasilienses*, somente a Constituição podia estabelecer as autoridades formadora das leis, devendo ser capazes de cumpri-las e executá-las.  Dentro dessa ótica, defendiam a doutrina da divisão dos três poderes, fundamentada em Montesquieu, propondo que os poderes legislativo e executivo fossem divididos nos verdadeiros limites de suas naturais e políticas atribuições. Acreditavam que do poder legislativo nascia a força, a segurança, a prosperidade do Estado; do poder executivo nascia o respeito e o decoro da lei, a tranquilidade, a segurança pública e individual. O periódico Reverbero Constitucional Fluminense pregava em agosto de 1822: “Os Brasileiros querem ser felizes por um Código, que cortando perniciosos abusos combine a sabedoria de um século com a experiência do passado e com as circunstâncias da nossa localidade”.

Outros liberais mais radicais, como Cipriano Barata, em seu jornal Sentinella da Liberdade, alertava aos brasileiros sobre os acontecimentos que envolviam as discussões na Assembleia Constituinte de 1823: “O do Brasil, alerta! Fora com o sistema de terror; fora Carta de Constituição; não se deve aceitar senão Constituição liberal, segundo aquelas bases juradas, que devem ter efeito: este foi o ajuste que as Províncias fizeram com o Rio de Janeiro”. Para eles, não se podia aceitar uma Constituição se não fosse resultado das discussões e decisões de uma Assembleia. Afinal, como afirmava Frei Caneca, a Constituição era “a ata do pacto social que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e associam para viver em reunião ou sociedade”.

Após os diversos debates entre os políticos mais radicais e os mais moderados na Assembleia Constituinte de 1823, triunfou a Constituição outorgada*, permeada por um caráter liberal moderado e pela centralização administrativa. Apesar de dada pelo soberano, ela foi aprovada pelas Câmaras Municipais do novo Império. A Constituição de 1824 perdurou até o final do Império e reuniu em si os diversos atributos que indicavam a linguagem do liberalismo moderado: uma monarquia constitucional, que continuava, contudo, aliada à Igreja, colocada, em verdade, inteiramente a seu serviço, pois ainda se fazia necessária a doutrina cristã para maior controle dos cidadãos; uma sociedade em que reinavam os homens ilustrados, cujo papel consistia em orientar a opinião do povo; uma liberdade que não ultrapassasse os direitos alheios; uma igualdade restrita ao plano da lei.

Na linguagem da época do triênio liberal, a Constituição estabeleceu-se como:

 
o baluarte da inocência, o prêmio do merecimento, a hipoteca da segurança pública, o fiador da propriedade individual, o sacrário da bem entendida liberdade, o refúgio dos miseráveis, o brasão do sábio, o pergaminho da verdadeira nobreza da Nação.  Constituição é a defesa do Estado, o apoio do Trono, a escala da grandeza, a melhor herança do povo, o nível da perfeita igualdade cívica.  Constituição é o código universal da sociedade, a regra infalível da justiça, o Evangelho político da Nação, o compêndio de todas as obrigações, o manual cotidiano do cidadão.

 

Lucia M. Bastos P. Neves

Guilherme Pereira das Neves

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