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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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Pedagogia cívica

Ao lado do caráter polêmico e combativo, a principal característica dos panfletos políticos da época da Independência é seu cunho didático, instrutivo e doutrinário, orientado para a realização de uma pedagogia cívica. O contexto em que foram produzidos e os propósitos que tinham em vista, aliado às vicissitudes do tipo de público que pretendiam alcançar, permitem compreender esse traço marcante dos folhetos.

Períodos de convulsões políticas favoreciam a proliferação de panfletos. Mais ágeis, versáteis e baratos do que os jornais, eram o veículo ideal para dar conta dos sucessivos acontecimentos, das controvérsias geradas e da avidez por informações que costumavam marcar esses momentos. Foi o que ocorreu em Portugal e no Brasil logo após a eclosão do movimento constitucionalista de agosto de 1820, em meio à onda revolucionária que também assolou Espanha, Grécia, Nápoles e Confederação Germânica. Inicialmente, as disputas políticas entre os partidários dos princípios liberais, de um lado, e os defensores de preceitos oriundos do Antigo Regime, de outro, ensejaram um amplo e acalorado debate, ao qual logo vieram a se somar diversas contendas entre os dois lados do Atlântico.

A guerra literária[1] assim transcorrida suscitou uma publicização da política e uma politização dos espaços públicos. Foi marcada não apenas pelo confronto de ideias, como também pela necessidade de explicar os novos (e antigos) termos e significados do vocabulário político. Conceitos como constituição, soberania, pacto social, representação, liberdade, igualdade, povo, cidadão, direitos, pátria e nação, contrapostos a outros como despotismo, tirania, poder absoluto, legitimidade, opressão, servilismo, corrupção, hierarquias e privilégios, foram debatidos e vulgarizados para um público cada vez mais interessado nas questões políticas e ainda pouco familiarizado com as inovações semânticas introduzidas. Daí o sentido pedagógico adotado por grande parte dos panfletos.

Para tanto, também contribuiu uma característica comum aos textos de natureza política de então: o objetivo de instruir, de persuadir, de influenciar e de, assim, mobilizar o público ao qual se dirigiam, neste incluído os responsáveis pela tomada de decisões políticas. Era parte estratégica do jogo de poder, amparado nas técnicas de argumentação retórica, amplamente empregadas pelos redatores de jornais e de panfletos, e no ideal iluminista de difusão das luzes do conhecimento entre os setores menos letrados da sociedade. O alargamento do debate político ensejou a entrada em cena de novos agentes, atuando seja como publicistas, seja como representantes de interesses políticos, seja como leitores ou ouvintes dos textos propagados. Assim suscitou a formação de uma embrionária, porém ativa e cada vez mais politizada, opinião pública, elevada à nova fonte de legitimidade política.

Em uma sociedade cuja grande maioria da população era analfabeta ou tinha baixo grau de instrução, os panfletos políticos continham diversos elementos de oralidade. Além do uso de uma linguagem mais simples, direta e coloquial, frequentemente revestida de forte carga emotiva, os folhetos apresentavam-se sob formas de textos que também cumpriam o papel de facilitar a circulação e a compreensão das ideias. Diálogos, dicionários e catecismos políticos eram os tipos mais característicos dessa pedagogia cívica, destinada a um público social e culturalmente cada vez mais amplo e diversificado.

Os panfletos em forma de diálogo podiam funcionar como espécie de jogral, no qual dois ou mais personagens emblemáticos fictícios conversavam, como um bate-papo informal ou um jogo educativo de sucessivas perguntas e respostas, sobre temas, acontecimentos e conceitos polêmicos do momento. Via de regra, os debatedores possuíam visões antagônicas, ou um deles, supostamente mais sábio, dava conselhos a outro, mais simplório ou ignorante. Invariavelmente, os lados antagônicos eram representados por defensores das ideias e práticas liberais modernas e por simpatizantes de valores e instituições do Antigo Regime, em geral, terminando os embates com a vitória moral dos primeiros.

Exemplo desse tipo de texto são quatro dos sete panfletos que compõem a série do Mestre Periodiqueiro, pseudônimo utilizado por frei José Machado, que apresentam uma crítica satírica à proliferação de impressos políticos no mundo luso-brasileiro. Contêm diálogos entre o sebastianista Rogério, o doutor Silvestre e o ermitão Arsênio sobre o melhor “modo de ganhar dinheiro no tempo presente”, isto é, a publicação de um periódico. As conversas giram em torno dos conselhos oportunistas dados pelo Doutor ao Sebastianista sobre como compor e redigir tal jornal.[2] Na mesma linha, encontram-se os três panfletos da série do Braz Corcunda, escritos por Elesiario Antonio de Sousa, nos quais o compadre Tito ensina Braz – que desenvolvera corcundas no peito e nas costas de tanto ler folhas servis disfarçadas de constitucionais – a fazer fortuna: bastaria transformar os jornais em guardanapos periodicais a serem vendidos a quem se dirigisse aos banheiros do Passeio Público de Lisboa.[3] Outro exemplo são os dois diálogos entre o Exorcista, o Cura e o Sacristão, ambos de autoria desconhecida, que narram a jornada do primeiro personagem, sempre interpelado pelos outros dois, no intuito de exorcizar a praga de periódicos e excomungar os periodiqueiros que assolavam Portugal.[4]

Diversos outros panfletos desse tipo podem ser mencionados – sempre tendo como eixos narrativos a oposição entre constitucionalismo e despotismo –, como é o caso da série de quatro folhetos do Alfaiate Constitucional (Imagem 15), escrita pelo advogado e comerciante português José Anastacio Falcão, relatando as conversas entretidas pelo personagem com seus vários fregueses (Corcunda, Negociante, Letrado, Fidalgo, Padre, Comendador, Lacaio, entre outros); ou ainda os diálogos – todos de autores anônimos – entre a Constituição e o Despotismo, entre dous Corcundas, entre o Corcunda abatido e o Constitucional Exaltado, entre dous homens da roça, entre um Ex-Ministro de Estado e um Aldeão (que abrange três folhetos), e entre o Dictador Brazílico (bem conhecido por Mano Zé), Macedo, Airosa e Sancho Pança.[5]



Imagem 15: FALCÃO, José Anastacio, 1786-. O Alfaiate constitucional; dialogo entre o alfaiate e os freguezes... / por José Anastacio Falcão.. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1821.: [s.n.]. 4 fascículos em 1v.; 20cm.

 

Por sua vez, os panfletos em forma de dicionários constituem a expressão mais evidente do caráter didático dessas publicações. Continham um conjunto de conceitos e termos polêmicos e polissêmicos do vocabulário político, cujo significado preciso e genuíno os autores pretendiam esclarecer, de acordo, é claro, com suas posições políticas. Revelam, assim, as transformações semânticas em curso e a originalidade conferida a diversas acepções. No período em questão, os melhores exemplos de panfletos desse gênero são o Diccionario carcundatico e o seu Supplemento (Imagem 22), ambos escritos pelo militar português José Joaquim Lopes de Lima. Organizados em forma de pequenos verbetes (113, no total), distribuídos em ordem alfabética, buscam esclarecer a “genuína significação”, sob a ótica constitucional, de diversos termos correntes que estariam sendo deturpados pelos corcundas, ou anticonstitucionais, para iludir os incautos. Corcunda, Carbonários, Constituição, Cortes, Democracia, Hierarquias, Independência, Legitimidade, Liberdade de Imprensa, Maçom, Plebe, Público e Rebeldes estão entre os 70 sugestivos vocábulos explicados no primeiro folheto; ao passo que Corrupção, Direitos, Fidalgos, Frades, Gazeta, Literatura, Política, Rei, Soberano e Terror encontram-se elencadas entre as 43 definições apresentadas no segundo.[6]



Imagem 22 : LIMA, José Joaquim Lopes de. Diccionario carcundatico ou Explicação das phrazes dos Carcundas... /. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1821. 12p.

* Este panfleto também é referenciado no primeiro arquivo de imagens deste dossiê digital Guerra das Penas (que ilustram textos da primeira parte), sendo, naquela relação, correspondente à imagem 6.2. Neste Arquivo de Imagens (referente à segunda parte de textos do Dossiê), ele também está referenciado na Imagem 7.

 

Vários outros panfletos, ainda que não dispostos sob a forma de dicionários, dedicavam-se a oferecer explicações simplificadas ou orientações pragmáticas sobre as novas práticas políticas, especialmente no momento em que se realizavam os pleitos para escolha dos representantes das províncias brasileiras nas Cortes de Lisboa. É o que se observa na Constituição explicada e nas Instrucções para intelligencia dos Póvos nas proximas eleições, dois folhetos anônimos, que faziam apologia das vantagens do sistema constitucional e da importância das eleições. Enquanto o primeiro empenhava-se em explicar o que é uma Constituição (“firmíssimo antemural de todos os direitos”, que zela para que “os diversos poderes da ordem social não se excedam, nem se confundam”), o segundo indicava os atributos cívicos que eleitores e deputados deveriam ter (“probidade, ciência, caráter, e conduta”).[7]

Já os catecismos políticos eram uma das modalidades de paródias religiosas, consagradas durante a Revolução Francesa e presentes nos processos de Independência da América hispânica, que revelam a importância continuada da religião na vida política luso-brasileira. Serviam-se largamente de metáforas religiosas como argumento retórico e tratavam os preceitos constitucionais como espécies de dogmas religiosos, revestidos de certa sacralidade cívica. Situam-se neste caso o anônimo Cathecismo Constitucional, escrito em forma de perguntas e respostas objetivas acerca de questões como Constituição, Cortes, representação e cidadania; e o Cathecismo Constitucional offerecido ás Cortes da Nação Portugueza, de autoria do português José Maria de Beja, que, didaticamente, também fornecia esclarecimentos sobre os direitos e deveres dos cidadãos, sobre as leis fundamentais e positivas que deveriam reger a nação e sobre as obrigações imputadas aos encarregados da instrução pública.[8]

Ainda no âmbito das relações entre política e religião manifestas no discurso impresso, há um grande número de panfletos que contém sermões, orações e discursos religiosos recitados em celebrações sacras (como as de ação de graças ou te-déum, por ocasião de cerimônias cívicas que marcavam eventos importantes) e em atos políticos (como as eleições para deputados às Cortes de Lisboa). Ressaltam-se nesses casos o Sermão que na solemnidade da Acclamação do Muito Alto, e Muito Poderoso, o senhor d. Pedro de Alcantara, e Imperador Constitucional do Brasil, celebrou frei Caneca em Recife; e a Oração. Que na reunião do Collegio Eleitoral da Villa de Taibate recitou o padre Joaquim Pereira de Barros.[9] São preleções religiosas repletas de conteúdo político que invariavelmente exaltavam acontecimentos, autoridades e, sobretudo, os princípios constitucionais, ou prescreviam orientações sobre a importância dos pleitos e o papel cívico que eleitores e eleitos tinham a desempenhar.

Por fim, outro gênero de panfletos de notório efeito pedagógico eram as poesias e os hinos constitucionais. Eram aqueles que mais se prestavam à difusão oral das ideias. Fáceis de memorizar, destinavam-se a serem lidos, recitados ou cantados nas praças e ruas, em teatros e tavernas ou em banquetes e saraus domésticos, prática muito em voga na época. Estavam também presentes em todas as festividades cívicas. Em geral, tinham estilo eminentemente laudatório ou celebratório (ao contrário dos encontrados em alguns folhetos manuscritos, que apresentavam teor bem mais crítico, contundente e ameaçador).

De um lado, revelavam a permanência de traços de uma cultura política cortesã de Antigo Regime, exaltavam o rei João VI, o príncipe e depois imperador Pedro I e seus familiares. De outro, lançavam mão de uma retórica moderna para enaltecer a regeneração portuguesa, a adesão ao movimento liberal, o juramento da Constituição, as Cortes e, após consumada, a Independência do Brasil. Alguns, ao mesmo tempo em que apregoavam os valores constitucionais, atacavam os corcundas ou sequazes do despotismo. Em todos os casos, nota-se um forte fervor cívico e apelo patriótico, por vezes em tom marcial, capazes de catalisar sentimentos e de produzir um efeito mobilizador.

Entre as dezenas de panfletos desse tipo merecem destaque o Hymno Constitucional Brasiliense (Imagem 27), escrito por Evaristo da Veiga e depois musicado por dom Pedro, tornando-se mais tarde o Hino da Independência (após sutil mudança na frase inicial, originalmente “Já podeis Filhos da Pátria”); os Lamentos de huma bahiana na triste crise, em que vio sua patria oppressa, um dos quatro raros poemas escritos por mulheres (neste caso, uma menina anônima de 13 anos); e o Parallelo entre os corcundas e liberaes (Imagem 29), de autoria desconhecida, que contrapõe, lado a lado, as características dos adeptos das duas posições políticas.[10]



Imagem 27 : VEIGA, Evaristo da. Hymno Constitucional Brasilience. [S.l.: s.n.], 1822. 2f.

* Este manuscrito também é referenciado no primeiro arquivo de imagens deste dossiê digital Guerra das Penas (que ilustram os textos da primeira parte), sendo, naquela relação, correspondente à imagem 6.3.



Imagem 29: PARALLELO entre os corcundas e liberaes. Rio de Janeiro: Typographia Régia: 1821. 2p.

 

Entre os diversos gêneros de panfletos luso-brasileiros da época da Independência, diálogos, dicionários, catecismos políticos, poesias e hinos eram aqueles que, por sua estrutura narrativa e pelos recursos retóricos permeados de elementos da oralidade, melhor cumpriam o papel de realização de uma educação cívica. Potencializando o efeito persuasivo do discurso, essa pedagogia política do cidadão destinava-se a doutrinar, convencer, dirigir e arregimentar um público letrado e iletrado cada vez mais interessado nos assuntos políticos candentes, os quais, sobretudo por meio da imprensa, contagiavam a vida dos habitantes de Portugal e do Brasil no início dos anos de 1820. Tais panfletos não apenas repercutiam a agitação e expressavam a cultura política multifacetada da época, mas também se configuravam, por meio de sua função pedagógica, como textos de intervenção política direta, exercendo efeito mobilizador, agindo como instrumentos de pressão e interferindo nas ações e nas decisões. Eram agentes dos acontecimentos, parte integrante e atuante do jogo político, desempenhando papel preponderante no curso do processo que, afinal, levou à Independência do Brasil.

[1] Expressão utilizada por Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, no panfleto Justa retribuição dada ao Compadre de Lisboa. Cf. CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lucia; BASILE, Marcello (org.). Guerra literária: panfletos da Independência (1820-1823). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, v. 1, p. 742.

[2] IDEM. Ibidem, v. 1, p. 325-359 e v. 3, p. 442-467 e 479-499.

[3] IDEM. Ibidem, v. 3, p. 318-333, 334-348 e 508-534.

[4] IDEM. Ibidem, v. 2, p. 155-169 e v. 3, p. 259-266.

[5] IDEM. Ibidem, v. 3, p. 267-317, 367-386, 393-401, 416-441 e 525-538.

[6] IDEM. Ibidem, v. 3, p. 402-415.

[7] IDEM. Ibidem, v. 3, p. 363-366 e 539-542.

[8] IDEM. Ibidem, v. 3, p. 352-366.

[9] IDEM. Ibidem, v. 3, p. 236-251, 196-201, respectivamente.

[10] IDEM. Ibidem, v. 4, p. 239, 261-266 e 110-111, respectivamente.

 

 Marcello Basile

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