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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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VOCABULÁRIO POLÍTICO GERAL

Antigo Regime: conceito que é utilizado para a dinâmica das sociedades ocidentais entre os séculos XVI e XVIII. Pode ser definido, economicamente, pela predominância da agricultura, pela insuficiência da metalurgia em uma indústria secundária, pela quase nulidade do sistema bancário e por uma deficiência das comunicações; demograficamente, ele continuou marcado pela conjugação de altos índices de nupcialidade, de natalidade e de mortalidade, além da persistência das grandes crises, epidemias e fomes. Politicamente, apesar dos esforços, ele continuou a ser o regime da diversidade jurídica, linguística, administrativa, da superposição de instituições e do privilégio. Mentalmente, é caracterizado por uma mescla entre o maravilhoso e o fervor cristão, um frequente analfabetismo, uma vida provincial e local extremamente fechada, uma concepção fraca e às vezes nula de Estado, de nação e pátria, exceto quando da presença física de um perigo, e da adoração do monarca. É o tempo ainda dos dialetos, das bruxas, dos pastores e senhores, dos impostos feudais e dos dízimos, de um modo de vida tradicional, cujas ruturas profundas apareceram de forma desordenada no fim do século XVIII e ao longo do oitocentos. Condenado à morte pela Revolução Francesa de 1789, quando os revolucionários, numa espécie de desejo a exorcizar o passado, começaram a utilizar o conceito, numa oposição para demarcar o antigo e o novo, muitas de suas características ainda perduraram ao longo da primeira metade do século XIX.

Corcundas: [carcunda] ou empenado, ou seja, o anticonstitucional. O vocábulo queria dizer “numa nomenclatura moderna, o mesmo que homem anticonstitucional, ou homem satélite do despotismo” (Carta de André Mamede ao seu amigo Braz Barnabé na qual se explica o que são corcundas. Rio de Janeiro: Tip. Régia, 1821). Segundo o Dicionário corcundativo o termo significava: “palavra da moda; homem, que afeito e satisfeito com a carga do despotismo, se curva como o dromedário para recebê-la; e trazendo esculpido no dorso o indelével ferrete do servilismo, tem contraído o hábito de não mais erguer a cabeça, recheada das estonteadas ideias de uma sórdida cobiça” (J. Lopes de Lima. Dicionario corcundativo ou explicação das phrases dos corcundas. Rio de Janeiro, Imp. Nacional, 1821 p. 5.) No mundo luso-brasileiro, a palavra corcunda entrou na linguagem política a partir de 1821.

Guerra de Penas: expressão da época da independência do Brasil, usada pelos autores de panfletos políticos e de periódicos para fazer referência à guerra de palavras, propiciada pelos escritos de circunstâncias da época. Apareceu em uma Carta do Sacristão de Tambi ao estudante Constitucional do Rio de Janeiro, publicada no Revérbero Constitucional Fluminense, nº 9, em 8 janeiro 1822. Ao se referir à grande polêmica entre os compadres de Lisboa e do Rio de Janeiro, que se digladiavam a cada dia em relação à autonomia do Reino do Brasil no Império português, afirmava que “Esta guerra, meu amigo, é mais de pena, que de língua ou de espada”. Ficava clara a demonstração que não se tratava de uma guerra efetiva, mas de um confronto de ideias, explicitado por meio das palavras.

Guerra de Afrontas: outra expressão de época da independência do Brasil, utilizada pelos redatores de panfletos políticos e de periódicos para fazer referência à guerra de palavras e insultos, presente naqueles escritos. Fez-se presente no panfleto O Campeão Portuguez em Lisboa derrubado por terra a golpes da verdade e da justiça, por hum brasileiro natural do Rio de Janeiro, que a offerta e dedica aos amantes da causa do novo Império Brasiliense (Rio de Janeiro: Tip. de Torres & Costa, 1822, p. 4), escrito por Luís Gonçalves dos Santos, conhecido como o padre Perereca, grande polemista da época, em resposta aos insultos dos escritos portugueses em relação ao Reino do Brasil.

Guerra Literária: expressão também utilizada entre os anos de 1821-1822, anos de tensão política no Império português, pelos autores dos panfletos políticos para caracterizar a polêmica entre os panfletos redigidos entre os dois lados do Atlântico. O termo foi utilizado por Luís Gonçalves dos Santos, o já citado padre Perereca, no panfleto, Justa retribuição dada ao Compadre de Lisboa em desagravo dos brasileiros offendidos por varias asserções, que escreveo na sua carta em resposta ao Compadre de Belem, pelo Filho do Compadre do Rio de Janeiro, que a offerece, e dedica aos seus patricios. (Rio de Janeiro, Typographia Régia,1821, p. 5). Da mesma forma, tratava-se de resposta a um texto, repleto “de ódio” e de insultos contra o Brasil e seus habitantes.

Panfletos: na literatura de língua inglesa, na década de 1580, que pamphlet passou a ser visto como texto satírico de cunho político ou social (Joad Raymond. Pamphlets and pamphleteering in early modern Britain. Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 8). Na França, o termo pamphlet surgiu em meados do século XVII, com o sentido de escrito satírico, referido especialmente aos cerca de cinco mil impressos difundidos e lidos pelas ruas e praças conhecidos como mazarinades (Christian Jouhaud. Mazarinades: la Fronde des mots. Paris, Aubier, 1983). Nesse mesmo século, panfletos circularam durante as Revoluções Inglesas. No setecentos, tiveram grande sucesso na luta de independência dos Estados Unidos (a partir de 1776) e durante a Revolução Francesa (1780-1799) (Bernard Bailyn. As origens ideológicas da Revolução Americana. Bauru, SP, EDUSC, 2003. Antoine de Baecque. Panfletos: libelo e mitologia política. In: R. Darnton & D. Roche (orgs.). A revolução impressa. A imprensa na França. 1775-1800. São Paulo, Edusp, 1996, pp. 225-238). Ressalte-se que foram muitos os panfletos publicados na Inglaterra, na França, na Espanha e em Portugal no período napoleônico e nas guerras de independência das colônias ibéricas da América, nas primeiras décadas do oitocentos (N. Daupiás d’Alcochete. Les pamphlets portugais anti-napoléoniens. Arquivos do Centro Cultural Português. Paris, 11: 7-16, 1978. Lúcia Maria Bastos P. Neves. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810). François-Xavier Guerra. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México, Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992. José Antonio Aguilar Rivera. “Vicente Rocafuerte, los panfletos y la invención de la república hispanoamericana, 1821-1823”. In: Alonso, Paula (comp.). Construcciones impresas. Panfletos, diarios y revistas en la formación de los Estados nacionales en América Latina, 1820-1920. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2004. Los catecismos políticos americanos, 1811-1827. Madrid: Fundación Mapfre/ Ediciones Doce Calles, 2009. Maria Beatriz Nizza da Silva. Movimento constitucional e separatismo no Brasil: 1821-1823. Lisboa, Livros Horizontes, 1988).
No mundo luso-brasileiro, o termo aparece no século XIX, embora houvesse mais de uma denominação para tal tipo de publicação: panfleto, pasquim, folhas volantes, folheto, papéis, papelinhos. O Diccionário de Morais de 1813 não fala em panfleto, nem folheto, mas o Dicionário de Bluteau de 1728 registra Pasquim: sátira ou pasquinada; Pasquinada ou Pasquim: dito picante, posto em papel; sátira por escrito pregada nas ruas ou portas e Pasquinada: pasquimas (Raphael Bluteau. Vocabulario Portuguez & Latino. Lisboa, Officina de Pascoal Silva. V. 6, (1712-1727), p. 296. Antonio de Moraes Silva. Diccionario da lingua portuguesa. 2ª ed. Lisboa, Tip. de M. P. de Lacerdina, 1813. [Ed. fac-simile: Rio de Janeiro, 1922], v. 2, p. 405). O Dicionário da Língua Portugueza, por D. José Maria d’Almeida e Araújo, de 1862, só registra folheto definido como “opúsculo de pouca extensão, impresso e cosido” (Dicionário da Língua Portugueza: para uso dos portugueses e brasileiros. Lisboa, Francisco Arthur da Silva, 1862). Frei Domingos Vieira, na edição de 1871-4 de seu Grande Diccionário Portuguez, registra para panfleto: “termo considerado como galicismo, e que na língua portuguesa deve significar: folheto, livrinho, papeleta” (Grande Diccionário Portuguez. Porto, Ernesto Chardron e Bartolomeu H. de Moraes, 1871-1874).

Revolução Liberal do Porto: movimento revolucionário que eclodiu na cidade do Porto, em 24 de agosto de 1820, dando início ao fim do Antigo Regime português a fim de instaurar uma monarquia constitucional, mantendo-se a dinastia de Bragança. Seus organizadores – grupo constituído por militares, comerciantes e magistrados filiados ao Sinédrio – sociedade secreta constituída em 1818 – tinham Manuel Fernandes Tomás como seu líder. Moderados, desejavam o regresso de D. João VI do Brasil, o fim da tutela inglesa, um novo equilíbrio de poder no interior do Império português. Eram contrários às propostas de uma revolução que podia significar a anarquia, desejando uma “regeneração” inspirada em ideias liberais e constitucionais que possibilitasse o ingresso do Império português no âmbito da política moderna. O movimento foi importante para a consolidação desses novos ideais tanto em Portugal, quanto em outras partes do Império, como a do Brasil. Nesse caso, essas novas ideias inspiradas pelas Luzes contribuíram para a consolidação das propostas de uma política liberal que acabou por romper com os grilhões não só do despotismo, mas também dos muitos séculos de colonização de Portugal sobre o Brasil.

Santa Aliança: coalização, assinada em 26 de setembro de 1815, que reuniu as potências europeias conservadoras – a Rússia, a Áustria e a Prússia – com o objetivo de restaurar o Antigo Regime demolido pela Revolução Francesa e pela expansão das guerras napoleônicas, levando adiante uma paz definitiva na Europa. Além disso, preocupavam-se em restaurar o antigo mapa político alterado pelas invasões de Napoleão Bonaparte e conter a expansão dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade disseminados a partir da experiência francesa. Saía vitorioso o princípio monárquico, estabelecendo-se a partir de 1815, com o Congresso de Viena, um triunfo aparente da reação que tentava impor suas tendências, suas tradições e suas forças. Retornava-se a uma antiga ordem, em que o princípio da legitimidade, o respeito aos poderes estabelecidos, o sentido da hierarquia e da autoridade constituíam-se em pontos inquestionáveis na visão dos soberanos.

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Alumbrados: movimento religioso espanhol do século XVI que se revestiu de um caráter de seita mística, sendo considerado herético e relacionado ao protestantismo. Para o historiador Marcelino Menéndez y Pelayo, o movimento iniciou-se em 1492 (aparecendo a forma – Aluminados) em pequenas cidades da região central de Castela. Um dos seus primeiros líderes foi uma mulher, nascida em Salamanca, filha de um trabalhador e conhecida como La Beata de Piedrahita (Irmã Maria de Santo Domingo). Acusada pela Inquisição por afirmar que mantinha conversas com Jesus e com a Virgem Maria, foi salva de uma condenação mais rigorosa por influência de pessoas ligadas ao poder na época. Foi, porém, obrigada a abjurar de suas crenças em 1546.

Constituição outorgada: aquela que parte do soberano ou da autoridade que governa, sendo dada ao povo sem a participação e a discussão dos representantes da sociedade; por exemplo, a Constituição outorgada de 1824; já a Constituição promulgada é a que resulta de assembleias formadas pelos representantes de um povo.

Despotismo: “abuso de poder contra a razão, contra a lei; excesso do direito que faz o que governa”, segundo Dicionário de Morais e Silva de 1823.  Não significava a mesma coisa que tirania, na qual essa mesma vontade do soberano resultava na usurpação do governo, juntamente com a injustiça e o apoio da força.

Elite Coimbrã: grupo mais cosmopolita, com passagem pela Universidade de Coimbra e larga experiência da vida pública. Dotada tanto de capital econômico quanto de capital social e cultural, lia autores como Locke, Montesquieu, Constant e os ideólogos da Restauração Francesa. Ao assumir postura crítica em face do Antigo Regime, não endossava, porém, qualquer proposta de ordem nova por meios revolucionários. Acreditava num ideal reformista de cunho pedagógico, capaz de conduzir a uma reforma pacífica, harmoniosa, promotora da felicidade e da liberdade nacionais.

Elite Brasiliense: grupo jovem, que cresceu sob influência da Corte na América, e dispunha de um horizonte de expectativa mais circunscrito à realidade do Brasil. Próxima do ambiente de uma camada média urbana, que se formara após 1808, em regra geral, fez seus estudos no próprio Brasil, tendo a palavra impressa como o seu maior e, algumas vezes, único contato com o mundo estrangeiro. Acreditava que a soberania residia na nação. De maneira ousada para o meio em que vivia, incluía em suas reflexões alguns princípios de teor democrático.

Empenado: segundo o Dicionário de Antonio de Morais, significava aquele que se ia “curvando ou torcendo a madeira nova”.  Os empenados eram considerados “os filhos primogênitos dos corcundas”. Na época, traduzia-se como uma espécie de sinônimo de corcunda.

Tirania: no oitocentos, significava que o poder e a vontade do soberano eram apoiados pela força. O governo tirânico era aquele em que o príncipe era único e despótico e que havia usurpado o poder. Este privava de forma arbitrária os seus súditos dos bens, da liberdade civil, da vida e das honras. Seu significado, portanto, se voltava principalmente para a ausência de liberdade política e por seu posicionamento oposto “à vontade dos povos. O jornal baiano – O Constitucional –, para exemplificar o poder do tirano como de um único governante, firmava que Luís do Rego, antigo governador de Pernambuco, era, devido a seus “furores, maldades e crimes”, o “primeiro tirano brasílico” do século XIX. O termo tirano não aparece no Dicionário de Morais e Silva de 1813. Apenas encontra-se por meio das entradas – tirânico, tiranizar e tirano.

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Baluarte da liberdade: fundamento das liberdades individuais do cidadão. Na época, o voto e as eleições transformaram-se nesse esteio das liberdades da sociedade.

Bem público: objetivo em que todos estão engajados em uma singular e comum empresa. Cada indivíduo deve agir de acordo com o bem público de sua sociedade.

Compromissários: correspondiam à primeira etapa do processo eleitoral para as Cortes de Lisboa. Os eleitores, reunidos, em geral, na Casa da Câmara ou na igreja local da freguesia escolhiam os compromissários em número que variava em função dos eleitores da paróquia de cada freguesia.

Eleitores de paróquia: eleitores escolhidos pelos compromissários em uma paróquia (circunscrição judiciária). Estes, após eleitos, na cabeça da comarca, indicavam por escrutínio secreto e maioria simples, os eleitores daquela comarca (formada pelas freguesias e paróquias).

Ingênuos: crianças de mães escravas que nasciam livres, devido à “Lei do Ventre Livre” (1871). Esta lei, de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco”, criou a figura do filho livre da mulher escrava, isto é, as crianças “ingênuas”.

Opinião pública: nos primeiros anos do oitocentos, opinião pública significava uma opinião pública despolitizada, imagem de uma voz geral, fruto do julgamento moral da sociedade. Após o surgimento dos panfletos políticos e dos periódicos, entre 1820-1823, opinião pública conheceu um novo sentido, podendo ser identificada por meio de uma autêntica força política, cuja objetividade provinha da razão e cuja eficácia resultava do impulso propiciado pelo progresso das Luzes. Representava então a opinião dos ilustrados, dos homens de letra e da política, sendo contrária às transformações bruscas da ordem, ainda que destinada a assegurar o reinado da sabedoria e da prudência sobre a terra. Somente no século XX, opinião pública passou a representar a opinião da pluralidade dos indivíduos que se exprimem em termos de aprovação ou sustentação de uma ação, servindo de base a um determinado projeto.

Voto censitário: direito de votar para apenas um número de cidadãos, por meio de regras que indicam um padrão social ou econômico. No Brasil, depois das eleições para as Cortes de Lisboa, quando o voto era indireto, mas não censitário, passou-se a adotar essa modalidade que perdurou por todo o Império.

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Guerras Civis: Moraes Silva, em seu dicionário, edição de 1813, definiu Guerra Civil como a que “se faz entre os cidadãos do mesmo estado”. Assim, é possível considerar as guerras de independência como guerras civis, pois tratavam de lutas que tinham como objetivo a unidade do território sob a coroa imperial. Era uma guerra entre aqueles favoráveis à causa nacional ou à causa portuguesa. Da mesma forma, a possibilidade de uma guerra entre Brasil e Portugal, após a independência, também era vista como uma guerra civil, ou seja, uma guerra entre povos irmãos.

Províncias Coligadas: províncias que foram consideradas como aliadas a D. Pedro na época da Independência do Brasil. Foram as províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

 

Lucia Bastos P. Neves


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